Entre os seres, uns parecem providos de espírito, outros não. Os cinzeiros, as bolas de neve, os ramos de salsa pertencem, inegavelmente, à segunda categoria. Os seres humanos, os símios, as chinchilas pertencem, inegavelmente, à primeira categoria. Esta distinção permite esclarecer a noção de espírito, que apenas remete para alguns tipos de actividade mental. Todo o ser que experimente algo do “interior” e a quem podemos razoavelmente atribuir propriedades mentais é dotado de espírito.
O ponto de partida do problema poderá ser o seguinte. Por um lado, o corpo e o espírito estão em estreita relação – um, exerce uma influência considerável sobre o outro. Por outro lado, parece possível imaginá-los funcionando autonomamente, independentemente um do outro.
A primeira afirmação, que sublinha a existência de interacções entre o corpo e o espírito, parece incontestável. Basta decidir esticar o braço esquerdo para que o meu braço esquerdo se estique. O mesmo acontece se eu decidir pôr a língua de fora ou voltar a cabeça. Reciprocamente, o meu corpo também influencia o meu espírito. Basta que bata com o dedo do pé numa porta para que sinta uma dor.
Tudo se passa como se o espírito condicionasse certos movimentos do corpo, e como se aquilo que acontece ao corpo pudesse condicionar certos estados ou acontecimentos mentais.
A segunda afirmação, que sublinha que o espírito e o corpo poderão funcionar um sem o outro, como duas realidades bem distintas, baseia-se em vários indícios. A crença numa existência autónoma do espírito funda-se no facto de que não é difícil imaginar que existimos no corpo de outro qualquer, ou sem corpo. Quanto à crença numa existência autónoma do corpo, ela baseia-se na hipótese do homem-zombie: um autómato humano sem a mais pequena das consciências não é inconcebível. Uma criatura desse género não experimentaria nada de “interior”, tal qual acontece como uma torradeira ou um qualquer brinquedo.
No entanto, se não é difícil imaginar com que se parecerá num corpo sem espírito – um elevador, um legume, um calhau -, o mesmo já não podemos dizer a propósito de um espírito sem corpo. Afinal, poder imaginar uma situação não é suficiente para que possamos afirmar que essa situação é possível.
Mas se parece natural aceitar que existem estas correspondências entre o espírito e o corpo via cérebro, já o mesmo não acontece se postularmos uma identidade estrita entre o cérebro e o espírito. Se a=b, então tudo o que é verdadeiro para a é verdadeiro para b. Dito de outro modo, se meu espírito=meu cérebro, então tudo o que pode ser dito do meu espírito poderá ser igualmente dito do meu cérebro. E isto não é o que se passa neste caso. O meu cérebro é, por natureza, objectivo, é um órgão, ou seja, um corpo localizado no espaço e no tempo. O meu espírito é, por natureza, subjectivo, não é um órgão, mas um ponto de vista. Se o meu cérebro fosse idêntico ao meu espírito, o que é objectivo seria subjectivo, o que constitui uma contradição nos termos. Defender que o cérebro é idêntico ao espírito significa acreditar que um livro é idêntico ao facto de lê-lo, o que parece absurdo.
Em conclusão, podemos afirmar, que o espírito, se é que posso dizê-lo, é entregue ao corpo e só dele depende. Todavia, não se reduz a isso.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 70-75
O ponto de partida do problema poderá ser o seguinte. Por um lado, o corpo e o espírito estão em estreita relação – um, exerce uma influência considerável sobre o outro. Por outro lado, parece possível imaginá-los funcionando autonomamente, independentemente um do outro.
A primeira afirmação, que sublinha a existência de interacções entre o corpo e o espírito, parece incontestável. Basta decidir esticar o braço esquerdo para que o meu braço esquerdo se estique. O mesmo acontece se eu decidir pôr a língua de fora ou voltar a cabeça. Reciprocamente, o meu corpo também influencia o meu espírito. Basta que bata com o dedo do pé numa porta para que sinta uma dor.
Tudo se passa como se o espírito condicionasse certos movimentos do corpo, e como se aquilo que acontece ao corpo pudesse condicionar certos estados ou acontecimentos mentais.
A segunda afirmação, que sublinha que o espírito e o corpo poderão funcionar um sem o outro, como duas realidades bem distintas, baseia-se em vários indícios. A crença numa existência autónoma do espírito funda-se no facto de que não é difícil imaginar que existimos no corpo de outro qualquer, ou sem corpo. Quanto à crença numa existência autónoma do corpo, ela baseia-se na hipótese do homem-zombie: um autómato humano sem a mais pequena das consciências não é inconcebível. Uma criatura desse género não experimentaria nada de “interior”, tal qual acontece como uma torradeira ou um qualquer brinquedo.
No entanto, se não é difícil imaginar com que se parecerá num corpo sem espírito – um elevador, um legume, um calhau -, o mesmo já não podemos dizer a propósito de um espírito sem corpo. Afinal, poder imaginar uma situação não é suficiente para que possamos afirmar que essa situação é possível.
Mas se parece natural aceitar que existem estas correspondências entre o espírito e o corpo via cérebro, já o mesmo não acontece se postularmos uma identidade estrita entre o cérebro e o espírito. Se a=b, então tudo o que é verdadeiro para a é verdadeiro para b. Dito de outro modo, se meu espírito=meu cérebro, então tudo o que pode ser dito do meu espírito poderá ser igualmente dito do meu cérebro. E isto não é o que se passa neste caso. O meu cérebro é, por natureza, objectivo, é um órgão, ou seja, um corpo localizado no espaço e no tempo. O meu espírito é, por natureza, subjectivo, não é um órgão, mas um ponto de vista. Se o meu cérebro fosse idêntico ao meu espírito, o que é objectivo seria subjectivo, o que constitui uma contradição nos termos. Defender que o cérebro é idêntico ao espírito significa acreditar que um livro é idêntico ao facto de lê-lo, o que parece absurdo.
Em conclusão, podemos afirmar, que o espírito, se é que posso dizê-lo, é entregue ao corpo e só dele depende. Todavia, não se reduz a isso.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 70-75
2 comentários:
Recebeu os jornais? Iam lá os indereços electrónicos. Não recebi mail.
Bom trabalho.
Isa
Já recebi e já enviei duas vezes um e-mail par o gmail. Não sei o que se passa. Daqui a bocado vou enviar o mesmo mail para os seus três e-mails. Depois diga se recebeu.
António Paulo
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