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domingo, 1 de março de 2009

Há boas razões para acreditar que Deus existe? iv


Parte IV
A aposta de Pascal
O grande matemático e filósofo francês, Blaise Pascal (1632-1662), argumentou pela existência de Deus de maneira algo diferente:
"Deus existe ou Deus não existe… Que apostarás tu? De acordo com a razão, não poderás fazer nem uma coisa nem outra; de acordo com a razão não poderás defender nenhuma das opções… mas deves apostar. [E quanto à] tua felicidade? Pesemos ganhos e perdas apostando que Deus existe… Se ganhares (a aposta), ganhas tudo; se perderes, não perdes nada. Aposta então, sem hesitação, que Ele existe."
A base da aposta de Pascal parece ser esta: devemos apostar (acreditar) em que Deus existe ou em que Deus não existe. Se Deus não existe, aquilo em que apostarmos fará pouca diferença. Mas se ele existir, fazemos um grande negócio. Assim a pessoa esperta ou sensata apostará (acreditará) que Deus existe.
Objecções à aposta de Pascal
Em primeiro lugar, Pascal está enganado na sua crença de que devemos apostar contra ou a favor da existência de Deus. Podemos optar por permanecer nas margens como faz o agnóstico. Claro que nesse caso podemos perder o prémio, se houver um prémio, por termos apostado incorrectamente. Mas Pascal não pode provar que há tal prémio.
Em segundo lugar, a aposta não é tão simples como Pascal pensou porque há um número indefinido de possíveis criadores. O Deus cristão padrão em quem Pascal apostou é apenas um deles. Assim, o número de possibilidades para apostar é muito maior do que duas e jogadores racionais não têm a possibilidade de escolher mesmo que queiram escolher um Deus ou outro. Por outras palavras, se a aposta de Pascal faz sentido, será tão razoável apostar num deus lua ou deus sol como no Deus dos Judeus, Cristão ou Muçulmano.
E, finalmente, não há nenhuma prova ou razão para supor que ganhamos um prémio se apostarmos no Deus que de facto exista. Porque não podemos assumir sem razões que Deus recompense os crentes ou que puna os descrentes. (De facto, em última análise o próprio Pascal apelou à revelação ou fé). Pelo contrário, as intuições de muitos de nós dizem precisamente o contrário talvez porque quando nos tentamos pôr no lugar de Deus, percebemos que estaríamos inclinados a olhar a crença baseada na aposta de Pascal como sendo hipócrita. Deus, se existir, pode impressionar-se bem mais com a honestidade daqueles que não conseguiram apostar (acreditar) na ausência de provas do que com aqueles que acreditam porque pensam que é prudente fazê-lo.
Howard Kahane

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Há boas razões para acreditar que Deus existe? iii


Parte III
O Argumento do Desígnio
O Argumento do Desígnio (também conhecido como Argumento Teleológico) parte do facto de que o universo comporta toda a espécie de padrões ou de regularidades, tão diferentes como os intrincados padrões dos flocos de neve, a lei da atracção universal e a maravilhosa complexidade do corpo humano. Algumas espécies de ordem (como, por exemplo, a ordem num mecanismo de um relógio de pulso ou na construção de uma represa por um castor) são explicadas pelo homem ou por outros animais. Mas muitas regularidades não podem ser explicadas dessa maneira; por exemplo, a ordem dos cristais ou a constância do ponto de fusão de cada uma das diferentes espécies de elementos. O argumento do desígnio postula um deus para explicar essas espécies de ordem que não são explicadas de outra maneira. Eis uma versão do argumento do desígnio:
1. Há ordem no universo.
2. Mas a ordem não pode existir sem desígnio. (Isto é, sem um projectista).
3. Logo, deve haver um projectista: Deus.
A força psicológica e apelativa do argumento é óbvia. A estonteante e maravilhosa complexidade de algo como o corpo humano parece gritar por um projectista ― um ser que calculou como funcionaria e depois o compôs. Nem a teoria da evolução satisfaz esta necessidade, dado que os detalhes de tais teorias dependem de leis da física e da química que, elas mesmas, exibem maravilhosas regularidades. No entanto o argumento tem falhas sérias ou mesmo fatais.
Objecções ao Argumento do Desígnio
A objecção mais óbvia é a de que, no melhor dos casos, o argumento do desígnio apenas prova que há um projectista e não um Deus padrão, tal como o argumento da causa primeira apenas provaria que há uma primeira causa. O projectista, claro, não precisa de ser um Deus padrão; poderia muito bem ser o diabo, muitos deuses, um outro deus ou, talvez, um deus já falecido. Mas o argumento do desígnio nem sequer prova tanto porque a sua segunda premissa (a de que a ordem nem poderia existir sem um ordenador) é duvidosa, para não dizer pior. Porquê assumir que a ordem não pode existir sem um organizador?
Afirma-se muitas vezes que podemos justificar a existência de um projectista por um método chamado indução. Verifica-se que muitas coisas que manifestam ordem (relógios de pulso, por exemplo) foram deliberadamente compostas por projectistas humanos ou animais. Já vimos muitos relógios que sabemos que são projectados por humanos mas nunca vimos um que, sendo investigado, provasse não ter sido assim projectado. Portanto, se agora nós descobrirmos um relógio de pulso na areia de uma praia deserta. Assumimos (por indução) que ele também foi projectado por humanos.
Flocos de neve, as leis da natureza e o corpo humano manifestam ordem (apesar de, claro, nunca termos visto um projectista, humano ou não, a projectá-los). Sabemos, claro, que os seres humanos (ou noutros animais) não podem tê-los ordenado, pelo que concluímos, por indução, algum organizador não animal, nomeadamente Deus, deve tê-los feito assim.
Mas esta conclusão não está justificada. Quando concluímos por indução que o relógio de pulso encontrado na areia não se ajeitou sozinho ou que não apareceu completo por acidente, e que, portanto, deve ter sido projectado por seres humanos, estamos seguros. O nosso argumento assemelha-se a isto:
1. Já foram observados muitos relógios de pulso, e todos os que foram examinados foram projectados por humanos.
2. Este relógio deve ter sido projectado por seres humanos.
Podemos, inclusive, argumentar em termos mais gerais e, portanto, de uma maneira mais poderosa, assim:
1. Muitos dispositivos mecânicos foram já observados, e de todos os que foram examinados se concluiu que foram projectados por humanos.
2. Este dispositivo mecânico (que, por acaso, é um relógio de pulso) deve ter sido projectado por seres humanos.
Notemos agora quão mais geral um argumento teria de ser para nos levar até um projectista de flocos de neve, leis da natureza ou seres humanos:
1. Muitas das coisas organizadas têm sido observadas e de todas as que foram examinadas se concluiu que foram projectadas por humanos.
2. Esta coisa organizada (que, por acaso, é um floco de neve, uma lei da natureza ou um ser humano) deve ter sido projectada por um projectista.
O argumento é claramente defeituoso porque a sua premissa é obviamente falsa. Há um grande número de coisas ordenadas para as quais não descobrimos um projectista ou um organizador ― flocos de neve, arco-íris, cristais e seres humanos são alguns. (Se há um deus que projectou todas essas coisas, então, para observarmos o projectista de flocos de neve a trabalhar, teríamos de apanhar Deus no acto de os amoldar a partir de H20, ou, talvez, de o apanhar no acto de criar as leis da física de que resulta que H20 se compõe a si mesmo em flocos de neve).
O ponto é o de que as coisas que manifestam ordem parecem cair em duas classes distintas: aquelas que nós (ou outros animais) ordenaram; aquelas que não ordenámos. Já verificámos e encontrámos muitos itens da primeira classe que são projectados por humanos. Mas nunca encontrámos um projectista para um só membro da segunda classe. Portanto, não estamos autorizados a concluir por indução que toda a ordem implica um organizador ou um projectista, logo o argumento pelo desígnio não pode ser apoiado pelo raciocínio indutivo. Se estamos prontos para o aceitar, devemos estar a fazê-lo sem razão, isto é, pela fé.

Howard Kahane

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Há boas razões para acreditar que Deus existe? ii


Parte II
O Argumento da Primeira Causa
Os argumentos da primeira causa resultam das nossas observações quotidianas das maneiras pelas quais as coisas ou acontecimentos da vida de todos os dias parecem ser causados para ser ou para ocorrer. Observamos, por exemplo, que pôr açúcar na chávena do café causa a doçura do seu gosto, que pôr água na planta causa o seu crescimento e que riscar um fósforo na presença de oxigénio o faz arder. No entanto, parece impossível explicar a existência de tudo em termos de causa e efeito, porque isso significaria que deveria haver uma série infinita (ou sem fim) de causas, o que parece impossível.
Eis uma maneira pela qual estas ideias têm sido usadas para argumentar a favor da existência de Deus:
1. Na vida de todos os dias, descobrimos que tanto os objectos como os acontecimentos são causados por outros (tal como o crescimento das plantas é provocado pela absorção de nutrientes).
2. Mas uma série infinita de causas desse tipo é impossível porque então não haveria uma primeira causa, e, portanto, não haveria uma segunda, terceira, etc.
3. Logo, deve haver uma primeira causa: Deus.
Objecções ao argumento da Causa Primeira
Em termos aproximados, podemos dizer que um argumento é conclusivo (deve persuadir-nos a aceitar a respectiva conclusão) apenas se satisfaz duas condições:
1. As suas premissas são aceitáveis ou estão justificadas.
2. As suas premissas (justificadas) fornecem provas ou razões suficientes para justificar a aceitação da conclusão (neste caso o argumento é dito válido).
Muitas pessoas que rejeitam o argumento da primeira causa acreditam que argumentos deste tipo sofrem todos de um de dois defeitos: ou as suas premissas são tão inaceitáveis ou questionáveis como as suas conclusões; ou as respectivas conclusões não se seguem validamente das premissas. Por exemplo, uma objecção levantada contra o argumento da primeira causa é o de que a segunda premissa não é aceitável (quase todas as pessoas aceitam a sua primeira premissa). Os matemáticos em particular têm argumentado a favor da possibilidade de séries infinitas de eventos ou causas em termos técnicos e alguns filósofos têm aceitado o seu raciocínio.
Suponhamos, no entanto, que rejeitamos a ideia de que pode haver uma série infinita de causas, de tal modo que ambas as premissas do argumento da causa primeira se tornam aceitáveis. Apesar disso o argumento ainda falharia em ser válido e, portanto, a aceitação da sua conclusão também não se justificaria.
Em primeiro lugar, o argumento apenas provaria que cada série de causas tem uma causa primeira ou incausada, mas não prova que todas as causas sejam parte de uma série única de causas que tenha a única primeira causa, porque é possível que nem todas as causas sejam partes de uma série única de causas. Por outras palavras, o argumento provaria que há uma ou mais causas primeiras, mas não que exista apenas uma.
Em segundo lugar, apenas provaria, no melhor dos casos, que a primeira causa existe, não que essa primeira causa seja Deus. Em vez disso, a primeira causa poderia ter sido o Diabo (um candidato plausível, dada a natureza do universo). E mesmo que o argumento tivesse provado que a primeira causa tinha de ser um deus, não provaria que ele tivesse de ser o seu Deus (se for um crente) ou um deus que encaixasse na imagem padrão que os cristãos, judeus ou muçulmanos têm de Deus. Poderia ser qualquer um dos milhares de deuses diferentes em que os seres humanos acreditam ou, talvez, um em que um ser humano nunca tenha pensado. De facto, o argumento da primeira causa abre a possibilidade de que tenha existido um Deus que criou o universo (ou talvez muitos deuses), mas que agora Deus esteja morto.
Qual é a causa da existência de Deus?
Para além das duas objecções que acabámos de levantar contra o argumento da primeira causa, há uma objecção geral a todas as espécies de provas cosmológicas da existência de Deus. Lembremos que a força do argumento cosmológico reside na ideia de que não é plausível pensar que o universo tenha brotado para a existência apenas por si mesmo. Por outras palavras, parece a muitos crentes que uma coisa tão grandiosa como o universo requer, como seu criador, um ser que seja pelo menos tão grandioso.
Mas esta linha de raciocínio põe-nos em apuros. Se um universo requer um deus para explicar a sua existência, o que explica a existência do próprio Deus? Da mesma maneira, ou Deus existiu desde sempre ou apenas apareceu ou então deve ter tido uma causa. No entanto, é tão implausível pensar que Deus sempre existiu ou que tenha simplesmente surgido, como pensar que também foi assim com o universo. O próprio raciocínio que nos leva a propor um deus como causa do universo deve levar-nos a propor um supradeus como sendo a causa de Deus. E, claro, o supradeus também precisa de uma causa, o suprasupradeus e assim infinitamente.
Portanto, sejam quais forem as voltas que dermos, o que obtemos no fim é igualmente implausível. É tão implausível um deus incausado como um universo incausado, e é tão incrível uma série infinita de causas como uma série infinita de deuses.
Em resumo, podemos desafiar as provas cosmológicas da existência de Deus de, pelo menos, três maneiras importantes. Primeiro, podemos desafiar a ideia de que uma série infinita de causas não seja possível. Segundo, podemos questionar a validade da conclusão de que há apenas uma primeira causa e de que a primeira causa seja Deus. Terceiro, podemos defender que qualquer deus proposto como primeira causa para explicar o universo precisa tanto de uma causa como o próprio universo e, assim, o argumento, se provar a existência de um deus, provará a existência de uma série infinita de deuses.
Os argumentos cosmológicos tentam explicar a existência do universo postulando um criador. Outros argumentos concluem por um deus, não para explicar o universo como um todo mas apenas para explicar alguns dos seus aspectos, tais como a existência do bem ou o facto de o universo ser ordenado em vez de ser caótico.

Howard Kahane

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Há boas razões para acreditar que Deus existe?


É racional acreditar na existência do Deus padrão? Poderá apresentar-se uma boa razão ou um argumento irresistível a favor da sua existência? Alguns teístas dizem que não e baseiam a sua crença na fé, ou seja, acreditam sem provas ou razões. Outros teístas, pelo contrário, pensam que se podem construir argumentos para provar que o Deus padrão existe.
De facto, muitas espécies de razões foram apresentadas para acreditar em Deus (e as mesmas razões foram expostas para acreditar em deuses diferentes e incompatíveis). Algumas razões são facilmente classificadas de insatisfatórias. Por exemplo, o argumento de que Deus deve existir porque em quase todas as sociedades as pessoas acreditam nele. A aceitação generalizada de uma crença não é, decerto, uma boa razão para a aceitar. Muitas crenças falsas são ou foram quase universais (por exemplo, a de que a Terra é plana). Mais ainda, apesar de a crença num deus ou noutro ser quase universal, não há um deus em que a maioria das pessoas acredite. Como poderia, por exemplo, o facto de algumas pessoas acreditarem num deus crocodilo justificar a crença no Deus cristão? (Lembremos que a grande maioria dos crentes não acredita no Deus cristão)
Falta de razões para acreditar no contrário
Alguns crentes, notando que os agnósticos afirmam que não podemos provar que Deus não existe, seguem outra via. Argumentam que se não podemos provar que Deus não existe, então eles estão autorizados a acreditar que ele existe. Mas os ateus podem virar este argumento do avesso. Podem fazer notar que os agnósticos também afirmam que nós não podemos provar que Deus existe. Logo, se não podemos provar que Deus existe, estamos igualmente autorizados a acreditar que ele não existe. Um método de raciocínio que nos permite "provar" ambos os lados de uma disputa, não prova nenhum. A ausência de prova do contrário não é uma boa razão para acreditar em alguma coisa.
Argumentos cosmológicos
Vários argumentos estreitamente relacionados para a existência de Deus baseiam-se na aparente necessidade de o universo como um todo ter uma causa. Parecem existir três possibilidades. Ou o universo começou a existir por si só ou existiu desde sempre ou, então, foi trazido para a existência por alguma força ou ser extremamente poderoso. Geralmente, aqueles que acreditam em Deus acham incrível que o universo possa ter chegado à existência apenas por si mesmo e igualmente incrível que ele possa ter já existido durante uma quantidade infinita de tempo. Acreditam que um ser extremamente poderoso, Deus, o deve ter criado. Esta é uma das razões que as pessoas dão com mais frequência para acreditar em Deus.

Howard Kahane

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio v


Parte V
Há ainda uma última objecção ao argumento do desígnio, que tem a ver com o problema do mal. É pela palavra de Fílon que, uma vez mais, Hume discute os vários pontos do argumento do desígnio, desta vez referindo-se ao problema do mal, com a clara intenção de, ao referi-lo, ridicularizar o argumento inicial:
«Numa palavra, Cleantes, um homem que siga a vossa hipótese é talvez capaz de afirmar ou de conjecturar que o universo surgiu a dado momento de algo como o desígnio; mas, além dessa posição, não poderá asseverar uma circunstância única e pode depois fixar todos os pontos da sua teologia com toda a licença da fantasia e do hipotético. Este mundo, que ele saiba, tem muitas falhas e imperfeições, comparado com um padrão superior; e foi apenas a primeira tentativa rude de uma qualquer divindade infantil, que mais tarde o abandonou, envergonhada com o seu deficiente desempenho; é a obra apenas de uma divindade dependente e inferior, e é objecto de troça dos seus superiores; é o produto da idade avançada e da senilidade de uma qualquer divindade aposentada, e desde a sua morte tem continuado por inércia, a partir do primeiro impulso e força activa que dele recebeu. [...] E, pela minha parte, não posso pensar que um sistema de teologia tão selvagem e instável seja preferível a nenhum.» (Op. Cit., pp. 37-38)
Fílon ridiculariza, de facto, o argumento do desígnio: dado que o mundo é tão cheio de imperfeição e de mal, a ter sido criado segundo o desígnio de uma divindade, essa divindade só poderia ser ou inexperiente ou estar já incapacitada. Obviamente, estas duas hipóteses não se põem com seriedade. Servem apenas para mostrar como o argumento do desígnio acaba por ser a melhor objecção contra si mesmo: se se infere do mundo e da sua ordem, tal como o conhecemos, a existência de Deus que o criou segundo um plano que ele próprio concebeu, isso implica que esse Deus não pode ser perfeitamente bom e sumamente justo, como os teístas normalmente o qualificam. E este é o problema do mal: se Deus existe e se é o criador do mundo, e se entre as suas qualidades se contam a omnipotência e a perfeita bondade, então porque é que há mal (e tanto mal, diga-se!) no mundo? Se é certo que há mal no mundo, não é certo que Deus exista sequer, sendo ainda menos certo que seja omnipotente e perfeitamente bom. O que é certo é que, exista ou não, ou é omnipotente, ou é perfeitamente bom, não podendo ter ambas as qualidades. Os ateístas afirmam que Deus não é nem uma coisa nem outra, pois não existe. E, considerando as objecções tão fortes que são apresentadas contra os tão implausíveis argumentos teístas, será pelo menos mais prudente aceitar as teses ateístas.
Para finalizar, o argumento do desígnio — nomeadamente a analogia do relojoeiro — levanta esta espada de dois gumes aos teístas: se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é grande, para reforçar a sua tese da semelhança entre os desígnios e as obras dos humanos e de Deus, então isso implica que as características de Deus se assemelhem de tal modo às humanas, que a imperfeição, a finitude e as limitações várias terão que estar incluídas neste rol de semelhanças. Ora, daqui segue-se que um Deus tão parecido com os humanos, e, por consequência, tão limitado e imperfeito como estes últimos, não poderia ter construído o mundo. Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações em que precisa de se apoiar. Por outro lado, se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é remota, para não correr este risco que acabamos de apontar, então isso implica reconhecer que a analogia é de facto frágil e remota, e implica também que não podemos, desse modo, saber quais as características de Deus; logo, não sabemos se ele teria ou não sido capaz de conceber e criar o mundo (para além de nem sequer sabermos se existe). Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações que precisa de preservar também para ser mantido. O que descobrimos é que, de uma maneira ou de outra, considerando esta e as objecções que já apresentei e analisei anteriormente, o argumento do desígnio não nos oferece, de facto, uma explicação séria e fiável, sendo, pelo contrário, ilógico porque inconsistente, cientificamente errado e contraditório, e auto-refutante.
Conclusão
Procurei apresentar e discutir o argumento do desígnio na sua formulação tradicional, baseando-me para isso nos célebres Diálogos sobre a Religião Natural de David Hume, em que o autor trata este argumento de uma forma reconhecidamente rigorosa. A todas as objecções que o próprio David Hume apresentou ao argumento do desígnio, juntei alguns pontos críticos meus e baseei-me em alguns pontos críticos de apoio apresentados por John L. Mackie, Simon Blackburn, Richard Dawkins e pelo próprio Richard Popkin, na sua introdução aos Diálogos.
Espero que este trabalho seja elucidativo e que permita perceber como é que o argumento do desígnio é formulado, quais as suas implicações, as objecções que lhe são levantadas, e por que razão, afinal, falha no seu objectivo: não prova a existência de Deus. Espero também que este trabalho possa ser um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões sobre o problema analisado.
Miguel Moutinho

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio iv


Parte IV
Os teístas poderão objectar que este argumento de Fílon continua a deixar questões em aberto, como a causa da "geração animal ou vegetal", ou, para ser mais preciso, a reprodução biológica. Mas Fílon tem tanta legitimidade para parar a sua explicação neste argumento como têm os teístas para parar a sua explicação na conclusão da analogia do relojoeiro, isto, é que Deus existe. Afinal, podemos questionar tanto a causa da reprodução biológica — que Fílon não avança — como podemos questionar a causa de Deus — que Cleantes também não avança. A diferença, e Hume não a poderia prever, é que a causa da reprodução biológica viria a ser satisfatoriamente explicada pelo darwinismo; o mesmo não se pode dizer, no entanto, da hipótese teísta, uma vez que, até à actualidade, o mais que os teístas conseguiram avançar sobre a causa de Deus é que ele é causa de si mesmo, auto-explicativo. Ora, esta é uma explicação circular, ou seja, nada explica nem acrescenta ao nosso conhecimento. Mesmo que admitíssemos a existência de Deus e do seu desígnio como explicação para a causa do universo (explicação que a ciência dá como bastante mais simples, pela mera casualidade dos acontecimentos naturais), teríamos uma nova questão, certamente ainda mais difícil de explicar: sendo Deus um ser inteligente e omnipotente capaz de conceber o mundo segundo um determinado plano ou desígnio, então a sua causa e existência carecem de uma explicação porventura mais urgente do que a causa do universo. Qual é a causa de Deus e porque é que existe? É certo que os teístas não têm uma resposta para estas novas questões que eles mesmos levantam. Porquê, então, admitir a hipótese que apresentam, se nada tem de plausível? Mas vejamos o que diz Fílon ainda sobre a sua escolha da "geração animal ou vegetal" como explicação preferível:
«Se baseio o meu sistema de cosmogonia no primeiro, de preferência ao segundo, é por escolha minha. A questão parece-me completamente arbitrária. E, quando Cleantes me pergunta qual é a causa da minha grandiosa faculdade de geração animal ou vegetal, tenho igualmente o direito de lhe perguntar qual é a causa do seu grande princípio racional. [...] A julgar pela nossa experiência, limitada e imperfeita, a geração tem alguns privilégios sobre a razão; pois todos os dias vemos esta última surgir da primeira, mas nunca a primeira da última.» (Op. Cit., p. 47)
Como víamos atrás, a escolha pode ter sido arbitrária para Hume (ou para Fílon, neste caso), mas hoje não podemos dizer o mesmo, uma vez que, enquanto a hipótese teísta já nem de probabilidades se pode sustentar com muita segurança, já a hipótese científica, da qual Hume apresenta, sem saber (mas parece intuitivamente apostar estar certo), um esboço embrionário, está perfeitamente sustentada e merece toda a credibilidade.
Outra das objecções possíveis ao argumento do desígnio, e que voltam a mostrar o quão frágil e remota é a analogia do relojoeiro, assenta no facto de que, enquanto nós temos experiência da construção de relógios, casas, entre outras obras e segundo os mais diversos fins, não temos qualquer experiência da construção de universos, muito menos de qualquer desígnio respeitante a estes. Não tendo esta experiência e a informação crucial que dela resultaria para apoiar a analogia do relojoeiro, este argumento é claramente inválido. Veja-se o que diz Fílon sobre isto:
«Quando duas espécies de objectos foram sempre observadas a combinarem-se juntas, eu posso inferir, pelo hábito, a existência de uma onde quer que veja a existência da outra; e a isto chamo um argumento a partir da experiência. Mas onde este argumento possa ter lugar onde os objectos, como no caso presente [da analogia do relojoeiro], são singulares, individuais, sem paralelo ou semelhança específica, pode ser difícil de explicar. E dir-me-á algum homem com uma tranquilidade séria que um universo ordenado tem que surgir de algum pensamento ou sabedoria como a humana porque nós temos experiência disso? Para estabelecer este raciocínio seria preciso que tivéssemos experiência da origem dos mundos; e não é suficiente, certamente, que tenhamos visto barcos e cidades surgirem da sabedoria e inventividade humanas.» (Op. Cit., p. 20-21)
Realmente, a nossa experiência limitada não nos permite inferir daquilo que, dentro das nossas possibilidades e capacidades, temos experiência, realidades — como a existência de Deus, o seu desígnio e a realização construtiva deste — das quais não temos e não podemos ter qualquer experiência nem informação. Uma tal inferência seria completamente errada, como já vimos.

Miguel Moutinho

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio iii


Parte III
É a personagem Fílon, nos Diálogos de Hume, que discute principalmente este argumento que Cleantes apresenta. Fílon começa por apresentar outras analogias que podem ser estabelecidas entre acontecimentos naturais e cujas conclusões são reconhecidamente erradas, acabando por evidenciar a dissimilitude entre os relógios, casas (outro dos exemplos muito usados pelos teístas) e outras obras humanas, e os objectos e acontecimentos naturais, afirmando que só uma conjectura falível poderia pressupor uma causa similar entre objectos e fenómenos de semelhança tão remota. Mas uma das objecções mais fortes que Fílon apresenta a Cleantes e ao seu argumento do desígnio é a seguinte:
«Mas, permitindo que possamos tomar as operações de uma parte da natureza sobre outra como o fundamento do nosso juízo com respeito à origem do todo (o que nunca se pode admitir), porquê, todavia, seleccionar um princípio tão minúsculo, tão fraco, tão limitado como a razão e o desígnio dos animais que encontramos neste planeta? Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação do cérebro a que chamamos "pensamento" que temos assim de fazer dela o modelo de todo o universo? A nossa parcialidade a nosso próprio favor apresenta-a de facto sempre que pode; mas a filosofia sólida deve proteger-se cuidadosamente de uma ilusão tão natural.» (Op. Cit., p. 19)
É deste modo que Fílon torna evidente a fragilidade da analogia. É que do facto de haver operações mentais como o pensamento e a intenção em algumas partes da natureza, nomeadamente nos humanos e noutros animais, não se segue que essa possa ser a regra do todo que é a natureza, que excede em muito esta parte de que Fílon fala. Chegar à explicação do todo partindo apenas de uma parte, sem mais, torna o argumento muito frágil. Ao mesmo tempo, como diz Fílon, se estamos preparados para admitir (ainda que não o devamos fazer) este método de raciocínio como válido, porquê, então, escolher a parte da natureza que mais nos diz respeito, e não outra? Isto leva-nos a outra das objecções contra o argumento do desígnio, que é a arbitrariedade com que os teístas escolhem a hipótese de Deus e do desígnio como a explicação certa, quando muitas outras são possíveis, umas igualmente frágeis (ou mesmo absurdas), outras bastante mais sérias. Eis o que diz Fílon a Cleantes propósito de outras explicações possíveis:
«Se o universo suporta uma maior semelhança com os corpos animais e vegetais do que com as obras da sabedoria humana, é mais provável que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros do que à da última, e a sua origem deva mais propriamente ser atribuída à geração animal ou vegetal do que à razão ou ao desígnio. A tua conclusão, mesmo de acordo com os teus próprios princípios, é portanto fraca e imperfeita. [...] O mundo assemelha-se mais a um animal ou a um vegetal do que a um relógio ou tear. É mais provável, portanto, que a sua causa se assemelhe à causa dos primeiros. A causa dos primeiros é a geração animal ou vegetal. Podemos inferir, portanto, que a causa do mundo é algo semelhante ou análogo à geração animal ou vegetal.» (Op. Cit., pp. 44-45) De facto, esta hipótese de Fílon, para além de ser mais lógica e plausível do que a hipótese teísta de Cleantes, é a que se aproxima mais das teorias darwinistas da evolução das espécies por selecção natural, que surgiriam um século mais tarde (séc. XIX), bem como se aproxima de todas as descobertas científicas posteriores, não só da biologia, como da química, e sobretudo da física, quanto às possíveis certezas que podemos ter sobre a criação do universo. Segundo a ciência, foram os acontecimentos naturais que, numa sucessão de acasos (sem qualquer desígnio especial ou divino), embora de acordo com as "leis da natureza", deram origem à criação do mundo e à sua existência tal como o conhecemos. Assim, antes ainda de poder sonhar sequer com as teses darwinistas e o modo como estas revolucionaram o conhecimento científico, Hume, através do seu personagem Fílon, já apresentava uma objecção ao argumento do desígnio que nem ele poderia imaginar que viesse a ser uma das bases científicas mais devastadoras para este argumento.

Miguel Moutinho

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio ii


Parte II
O Argumento do Desígnio Apresentado e Discutido por Hume
Eis como, nos Diálogos sobre a Religião Natural, de David Hume, o personagem Cleantes apresenta o argumento do desígnio:
«Observa o mundo em redor; contempla a sua totalidade e todas as suas partes; verás que não é senão uma grande máquina, subdividida num número infinito de máquinas mais pequenas, que admitem uma vez mais subdivisões que ultrapassam o que os sentidos e as faculdades humanas conseguem registar e explicar. Todas estas várias máquinas, e mesmo as suas partes mais ínfimas, se ajustam entre si com uma precisão que impõe admiração a todos os homens que as contemplaram. A curiosa adaptação de meios a fins, em toda a natureza, assemelha-se exactamente, apesar de exceder em muito, aos produtos do artifício humano: ao desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência humanos. Portanto, uma vez que os efeitos se assemelham entre si, somos conduzidos a inferir, segundo todas as regras da analogia, que as causas também são semelhantes: e que o Autor da Natureza é de algum modo análogo ao espírito humano, apesar de estar dotado de faculdades muito maiores, proporcionais à grandiosidade da obra que executou. Demonstramos imediatamente por este argumento a posteriori, e só por ele, a existência de uma divindade e a sua semelhança ao espírito e inteligência humanos.» (Hume 1776:15)
O modo como o argumento do desígnio está aqui apresentado é uma das formulações clássicas deste argumento, muito conhecida como a analogia do relojoeiro. Podemos formular este argumento da seguinte maneira:
O relógio, pela sua complexidade e pelo modo como está ordenado, é uma máquina que tem que ter um autor e construtor inteligente, com capacidades proporcionais à sua obra — o relojoeiro humano.
O mundo, pela sua complexidade e pelo modo como está ordenado, é como um relógio.
Logo, o mundo também tem que ter um autor e construtor inteligente, com capacidades proporcionais à sua obra — o relojoeiro divino (Deus).
Basicamente, este argumento defende que, do mesmo modo que, perante um relógio, podemos pressupor a existência de um ser inteligente que o tenha construído segundo um determinado fim, também perante o mundo podemos pressupor igualmente a existência de um ser inteligente que o tenha construído segundo um determinado fim, dadas as semelhanças entre um relógio e o mundo. Enquanto no primeiro caso a hipótese mais plausível para o construtor do relógio seria um relojoeiro humano, no segundo caso a hipótese mais plausível para o construtor do mundo seria um "relojoeiro divino", pois só este poderia ser capaz de uma tal obra.
Este argumento é uma analogia, mas, como veremos seguidamente, levanta vários problemas. Vejamos: é óbvio que o mundo é complexo, tem uma ordem e os acontecimentos naturais têm uma regularidade; ainda assim, a analogia com o relógio é frágil, remota e redutora. Em primeiro lugar, é frágil, pois enquanto o relógio é uma máquina perfeita, já o mundo é uma "máquina" cheia de imperfeições e irregularidades que fogem à sua ordem ou regularidade normal. Em segundo lugar, é remota, porque as eventuais semelhanças entre o relógio e o mundo só poderão ser consideradas como semelhanças muito distantes, apenas em alguns aspectos — não se pode dizer, com segurança, que a ordem do mundo é semelhante à ordem do relógio, pois enquanto temos a certeza, pela experiência, de que o relógio e a sua ordem foram criados segundo um fim, não temos certeza nenhuma, por não termos tido qualquer experiência disso, de que o mundo e a sua ordem foram sequer criados, muito menos de que existem também segundo um fim (que seria divino) e não apenas pelo acaso natural (esta última explicação é, de resto, a explicação científica). Em terceiro lugar, é uma analogia redutora, porque, enquanto o relógio é uma máquina com uma complexidade limitada às suas pequenas dimensões, já o mundo é uma "máquina" de dimensões não comparáveis às do relógio, pelo que a sua complexidade também não poderá ser comparada à do relógio. Ora, se uma analogia só pode ser estabelecida a partir de um exemplo que seja semelhante num aspecto relevante — no caso da analogia do relógio, o exemplo seria o relógio e o aspecto semelhante seria a complexidade do relógio comparável à complexidade do mundo —, e se acabámos de ver que este argumento por analogia não preenche estas condições, concluímos que a analogia não é válida, logo, o argumento é inválido e não deve ser considerado como uma boa prova da existência de Deus.

Miguel Moutinho

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio


Introdução
Neste ensaio, apresento, analiso e discuto um dos argumentos mais utilizados pelos teístas para defender a existência de Deus — o argumento do desígnio.
Apresento logo no início deste trabalho uma citação bíblica que mostra que o argumento do desígnio tem um forte fundamento bíblico. Para a análise do argumento, considerarei o argumento do desígnio conforme foi formulado pelo filósofo empirista David Hume, no séc. XVIII. Para a discussão do argumento, considerarei as objecções que lhe foram levantadas pelo próprio David Hume. Devo dizer que, na discussão do argumento, guiar-me-ei também pela análise dos filósofos contemporâneos John L. Mackie e Simon Blackburn, e terei em séria consideração as objecções científicas que o biólogo darwinista Richard Dawkins apresenta contra o argumento do desígnio.
Com este trabalho, pretendo demonstrar que o argumento do desígnio não é logicamente válido e que é refutado pela ciência, nomeadamente pela teoria darwinista da evolução das espécies pela selecção natural.
O Argumento do Desígnio
«Depois disso o Senhor respondeu a Job de um redemoinho, dizendo: Quem é este que escurece o conselho com palavras sem conhecimento? Agora cinge os teus lombos, como homem; porque te perguntarei, e tu me responderás. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faz-mo saber, se tens entendimento. Quem lhe fixou as medidas, se é que o sabes? ou quem a mediu com o cordel? Sobre que foram firmadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra de esquina, quando juntas cantavam as estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?» (Job 38, 1-7)
A partir desta passagem do "Livro de Job", do Antigo Testamento, podemos inferir que a concepção de Deus que nela está presente é a de um Deus Criador, que lançou as fundações do mundo, que lhe deu forma e regularidade — enfim que o construiu. A ideia de Deus como Criador e construtor do mundo, da sua complexidade e perfeição, é, em termos gerais, a ideia defendida pelo argumento do desígnio.
O argumento do desígnio é um dos argumentos mais usados pelos teístas para defender a existência de Deus. De acordo com este argumento, o modo regular, ordenado e complexo como o universo está organizado revelam o desígnio de um ser divino criador do universo. Mais concretamente, os "sinais do desígnio" (do original "marks of design", expressão utilizada em Mackie 1982 para designar os fenómenos e objectos naturais como provas do desígnio) são os seguintes:
Todos aqueles objectos naturais que se assemelham a máquinas feitas pelo homem;
O modo como as partes na natureza se juntam e se combinam entre si; e
A adaptação dos meios aos fins.
Destes "sinais do desígnio", estabelecendo uma analogia entre os desígnios e as obras humanas e os desígnios e obras divinas, os teístas inferem a existência de um autor divino cuja inteligência e planeamento sejam de algum modo análogos às dos humanos. Esse autor é Deus, o suposto criador do universo.
Do argumento do desígnio, destacam-se as seguintes características: é um argumento
A posteriori;
Teleológico;
Por analogia; e
Probabilístico.
É a posteriori, porque parte de dados empíricos — a observação empírica do modo complexo e regular como o universo está ordenado e, mais concretamente, dos "sinais do desígnio" — para deles inferir a existência de Deus; é teleológico, uma vez que pressupõe que o universo existe segundo um fim, e que esse fim é um desígnio de Deus; é por analogia, porque é muitas vezes formulado e sustentado com analogias, sendo exemplo disso o clássico argumento por analogia do relojoeiro (que apresentarei e discutirei mais adiante); e é probabilístico, porque a argumentação baseia-se sempre em (e depende de) probabilidades, nomeadamente a probabilidade de que
A ordem, a complexidade e a regularidade do universo resultem de um desígnio;
De que certos objectos e acontecimentos naturais sejam sinais desse desígnio;
E de que, por último, dada a evidência desse desígnio, Deus exista de facto, pois só Deus o poderia planear e realizar.Ao analisar e discutir o argumento do desígnio, demonstrarei que, seja qual for o modo como for formulado, é um argumento inválido, com muitas fragilidades e incorrecções, que não serve para provar a existência de Deus.

Miguel Moutinho
Retirado de www.criticanarede.com

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Argumentos do Desígnio ii


Parte II
Felizmente existe um padrão destes que usamos constantemente na explicação dos fenómenos mundanos. Chamo-lhe explicação pessoal. Quando explicamos o facto de o livro estar na mesa, ou das palavras destas frases estarem no meu papel, explicamo-los em termos da acção de uma pessoa com capacidades para mudar as coisas e um propósito que procura assim realizar. As palavras que estão no papel têm de ser explicadas como causadas por uma pessoa (eu) com uma capacidade de mover o meu corpo de certos modos (i.e. escrever), e um propósito (ter um artigo para mandar ao editor). As explicações científicas postulam com frequência inobserváveis (e.g. protões e electrões) para explicar os dados observáveis; e os fundamentos para a suposição que fazem é que a hipótese explicativa é simples e leva-nos a esperar com alguma probabilidade os dados que de outra forma não esperaríamos. As explicações pessoais em termos de pessoas inobserváveis têm de ser aceites por razões análogas. A simplicidade de uma hipótese consiste em postular poucas entidades com poucas propriedades simples.
Os dados inexplicáveis pela ciência para os quais chamei a atenção ― o comportamento uniforme dos objectos de acordo com as leis da natureza, e o carácter especial dessas leis e das condições iniciais (ou limite) do Universo ― são facilmente explicáveis em termos de um Deus, omnipotente (todo-poderoso), omnisciente (conhece tudo) e perfeitamente livre. Está em actividade constante, movendo as estrelas e os átomos de forma regular (tal como podemos mover os nossos corpos de forma regular nos padrões de uma dança), e de modo a que, em conjunto com a matéria primeva que ele fez, dar origem aos animais e aos seres humanos. Sendo omnipotente, pode fazer isto. Sendo omnisciente, verá uma boa razão para fazê-lo. Um mundo que evolui regularmente é bonito, e os seres humanos que surgirão podem eventualmente aprender como funciona, o que só poderão fazer se houver leis da natureza simples, que entendam e possam depois até certo ponto escolher como modelar o mundo para o bem ou para o mal. É bom que existam seres humanos desempenhando um papel no processo de criação. Deus, sendo perfeitamente livre, não será impedido por forças irracionais de criar o que percebe ser bom.
Diz-se às vezes que sendo as leis da natureza como são, e sendo as condições iniciais como são no nosso Universo, este seria explicado se existisse um trilião de outros universos com leis e condições iniciais diferentes. Seria então muito provável que existisse um universo em que estes factores fossem exactamente os correctos para a evolução dos animais e dos seres humanos. Mas seria o cúmulo da irracionalidade postular um trilião de universos (por oposição a um Deus) a fim de explicar o nosso Universo, a menos que existam características particulares do nosso Universo que sejam melhor explicadas por uma super-teoria que tenha como consequência o trilião de universos. Mas mesmo até uma tal super-teoria teria de postular condições limite muito especiais para o super-Universo de universos e super-leis da natureza muito especiais, que tivessem como consequência a evolução de uma variedade tal de universos que tornasse muito provável que pelo menos num houvesse a evolução da vida. A maior parte das super-teorias (para além de serem muito complicadas) não terão essa consequência. Assim temos o problema de saber precisamente porque o super-Universo tinha as leis da natureza e as condições limite que tinha. E assim uma vez mais, quer se trate de um universo ou de um super-universo, ou a sua ordem e o seu carácter 'afinado' são factos brutos e inexplicáveis ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.
A hipótese do teísmo é uma hipótese muito simples. Postula um ser pessoal, não muitos. As pessoas são seres com poderes para mudar o mundo, conhecimento de como fazê-lo, e algum grau de liberdade na forma de fazê-lo. Deus é postulado como um género muito simples de pessoa ― tendo graus infinitos de poder, conhecimento e liberdade; ou, pondo negativamente, limite zero ao seu poder, conhecimento e liberdade. Os cientistas postulam sempre graus infinitos (ou zero) de propriedades como a hipótese mais simples, se o podem fazer consistentemente com os dados. Postulam que os fotões têm massa em repouso zero, em vez de alguma massa em repouso muito, muito pequena que iria predizer os dados igualmente bem; e costumavam postular que a força da gravidade tinha velocidade infinita até que outras considerações os obrigaram a aceitar uma hipótese diferente. Postular Deus é postular um ser de um género muito simples, e esta hipótese faz com que seja não improvável que encontremos os dados para que chamámos a atenção.
Supor que os dados são apenas factos brutos e inexplicáveis parece, contudo, altamente irracional. Supor simplesmente que é uma grande coincidência que cada pedaço de matéria por todo o Universo se comporte exactamente da mesma forma é terrivelmente irracional ― e ainda mais quando há uma hipótese rival simples que nos leva a esperar esses dados, assim como que o mundo esteja afinado para produzir os animais e os seres humanos. A razão conduz-nos inevitavelmente da Natureza para a Natureza de Deus.

Richard Swinburne

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Argumentos do Desígnio


As razões para acreditarmos que há um Deus existem desde que existem pessoas que sustentam esta crença; e os filósofos tentaram transformar estas razões em 'argumentos' com uma forma mais rigorosa desde que existem filósofos. O meu ponto de vista é o de que quando estes argumentos são articulados da forma correcta (i.e. de uma forma análoga à dos argumentos da ciência ou da história) e tomados em conjunto, constituem um caso poderoso e cumulativo a favor da existência de Deus.
Parece-me que entre os argumentos mais fortes a favor da existência de Deus, estão duas formas do argumento do desígnio ― a que chamarei o argumento da ordem temporal e o argumento da ordem espacial. O argumento da ordem temporal começa por chamar a atenção para o facto de que em todo o tempo e espaço possivelmente infinitos, os objectos materiais comportam-se da forma simples codificada pelas leis científicas.
Podemos ainda não saber o que são exactamente as leis mais fundamentais da natureza ― talvez sejam as equações de campo da Teoria da Relatividade Geral, ou talvez as leis da Teoria da Grande Unificação ou de uma teoria ainda maior a ser formulada. Dizer que essas leis governam a matéria é precisamente dizer que todo o pedaço de matéria, todo o neutrão, protão e electrão em todo o espaço e tempo infinitos comportam-se exactamente da mesma maneira (i.e. de acordo com exactamente as mesmas leis fundamentais). Isto é extraordinário!
É claro que isto não poderá ser sempre explicado cientificamente ― porque a explicação científica da operação de uma lei natural consiste em mostrar que é uma consequência de algumas leis ainda mais fundamentais ― explicamos a operação das leis da queda de Galileu mostrando que são uma consequência, para as circunstâncias particulares da Terra, das leis do movimento de Newton; e poderemos vir a ser capazes de explicar a operação das leis de Einstein pelas da Teoria da Grande Unificação. Mas o meu interesse é pela operação das leis mais fundamentais de todas. Ou a existência de tais leis é um facto bruto e inexplicável, ou tem de ser explicada por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.
A segunda forma de argumento ― o argumento da ordem espacial ― chama a nossa atenção para a complexa construção das plantas, dos animais e dos seres humanos. Eles estão organizados para apanhá-los, a criarem-se e a reproduzirem-se ― eles são como máquinas muito complicadas. Ora, como é óbvio, há uma explicação bem conhecida de tudo isto em termos de evolução por Selecção Natural. Há muito tempo, diz a história, existiram organismos muito simples, e eles tiveram descendentes que diferiram dos progenitores de várias formas (alguns sendo maiores, outros mais pequenos, alguns mais simples e alguns mais complexos do que os seus progenitores). Os melhor adaptados à sobrevivência (e muitas vezes a complexidade de organização fornece uma vantagem selectiva) fizeram-no e por sua vez produziram descendentes com características que diferem ligeiramente das suas em direcções aleatórias; e foi assim que as plantas, os animais e os seres humanos complexos evoluíram. Esta história é de certeza basicamente correcta. Mas por que é que começaram a existir organismos simples? Presumivelmente porque a matéria-energia na altura do 'Big Bang' quando o Universo (ou de alguma forma o seu estado actual) começou há 15 biliões de anos tinha precisamente a quantidade, densidade e velocidade inicial para conduzir com o tempo à evolução de organismos. E porque há no Universo leis da evolução? Isto é, leis que provocam a mutação aleatória dos genes dos animais, que levam a que os animais produzam muitos descendentes, etc.? Presumivelmente porque estas leis derivam da leis fundamentais da natureza. Apenas um determinado tipo de disposição crítica da matéria e determinados géneros de leis da natureza darão origem a tais organismos. Recente trabalho científico sobre a 'afinação' do Universo mostrou que a matéria inicial e as leis da natureza tiveram de ter de facto características muito, muito especiais para que os organismos pudessem evoluir. Por exemplo, o Big Bang teve de ser exactamente do tamanho certo ― se tivesse sido ligeiramente maior, os quanta de energia ter-se-iam afastado uns dos outros demasiado depressa para que a matéria se pudesse condensar nas galáxias, estrelas e planetas e assim permitir que os organismos evoluam. Se o Bang tivesse sido ligeiramente menor, o Universo teria colapsado antes de ser suficientemente frio para que a química dos elementos se formasse e assim permitir que os organismos evoluam. Se as leis da natureza tivessem a forma actual, mas as constantes físicas que entram nelas tivessem valores ligeiramente diferentes dos actuais (ou se elas tivessem tido uma das muitas outras formas diferentes), também não teria havido evolução. É, assim, extraordinário que as condições iniciais e as leis estivessem tão 'afinadas' que permitissem a produção das plantas, dos animais e dos seres humanos! Uma vez mais, isto não só não é, como, devido à própria natureza da ciência, nunca poderá ser explicável cientificamente. A ciência não poderá explicar por que razão as leis básicas da natureza são como são, nem porque na altura do Big Bang (ou perpetuamente, se não houve começo) tinham as características que tinham. Tudo isto é donde a ciência começa, o que explica outras coisas em termos de. Daí que, uma vez mais, ou estes são factos brutos e inexplicáveis, ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

Richard Swinburne

quinta-feira, 3 de julho de 2008

DEUS EXISTE?

Segundo a Bíblia, que é a verdade literal, Deus existe, sempre existiu e criou o universo em sete dias, há alguns milhares de anos. Os argumentos históricos são aparentemente satisfatórios para aqueles que os aceitam, mas simplesmente não podem ser introduzidos numa investigação séria, visto que são manifestamente questionáveis. Não é possível conceder a nenhum texto o estatuto de “verdade divina” sem excluir, à partida, toda e qualquer investigação racional.
Restam-nos os argumentos tradicionais debatidos longamente pelos filósofos e teólogos ao longo dos séculos, alguns empíricos – como o Argumento do Desígnio – e alguns puramente a priori ou lógicos – tais como o Argumento Ontológico e o Argumento Cosmológico.
Os argumentos lógicos são considerados por muitos pensadores, incluindo muitos filósofos que os examinaram cuidadosamente durante anos, como truques de magia ou puzzles intelectuais, mais do que propostas cientificamente sérias. Consideremos o Argumento Ontológico, formulado pela primeira vez por Santo Anselmo, no século XI, como uma resposta directa ao Salmo 14:1, sobre o que o insensato diz no seu coração. Se o insensato compreende o conceito de Deus, afirma Santo Anselmo, deveria compreender que Deus é (por definição) o maior ser concebível – ou, numa famosa expressão de malabarismo mental, o Ser maior do que o qual nada pode ser concebido. Mas entre as perfeições que o maior Ser concebível teria de ter está a existência, visto que, se Deus carecesse de existência não seria o Ser maior do que o qual nada pode ser concebido, mas essa é a definição de Deus e, por consequência, Deus tem de existir. Este argumento parece-lhe convincente? Ou suspeitam que se trata de uma espécie de “truque com espelhos” lógico? (Poderíamos usar o mesmo esquema de argumento para provar a existência do gelado mais perfeito que é concebível conceber – visto que, se não existisse, haveria um mais perfeito concebível: nomeadamente, um que existisse?)
O Argumento Cosmológico, que, na sua forma mais simples, postula que, já que tudo tem de ter uma causa, o universo tem de ter uma causa – nomeadamente Deus – não mantém a simplicidade por muito tempo. Algumas pessoas negam a premissa, já que a Física Quântica nos ensina que nem tudo o que acontece tem de ter uma causa. Outras pessoas preferem aceitar a premissa e em seguida perguntar – O que causou Deus? A resposta que Deus é auto-causado (de alguma forma) suscita refutação: Se alguma coisa pode ser auto-causada, por que não pode o universo no seu todo ser a coisa que é auto-causada?
DENNETT, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 196-197