segunda-feira, 30 de junho de 2008

O AMOR

Se fosse expressão do amor amar a primeira criatura que surgisse, então poder-se-ia entender que o indivíduo não se conseguisse explicar melhor, mas como a expressão do amor é amar uma única criatura, uma só no mundo inteiro, então parece que um acto de selecção tão desmesurado teria que conter em si uma dialéctica dos fundamentos à qual seria preciso não dar ouvidos, não tanto porque nada explicasse, mas antes porque seria demasiado extensa para se lhe dar atenção. Mas não, o amante não consegue explicar coisa alguma. Viu centenas e mais centenas de mulheres, terá porventura avançado nos anos, nada sentiu; de súbito vê-a, ela, a única.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, p. 65

UMA OBJECÇÃO À TEORIA DE COLLINGWOOD

A noção de verdadeira arte de Collingwood admite muitas coisas que não são obviamente arte; ao mesmo tempo, exclui alguns casos paradigmáticos de arte. Inclui demasiado porque parece implicar que qualquer expressão imaginativa de emoção irá ser automaticamente qualificada como obra de arte. É óbvio que a expressão de uma emoção não precisa de ser uma obra de arte. A expressão de emoções, mesmo no sentido em que Collingwood usa o termo “expressão”, não é certamente uma condição suficiente para que algo seja uma obra de arte. Por exemplo, a transferência e a contratransferência entre um psicoterapeuta e o seu cliente poderia muito bem ter a forma de um sentimento vago, quase inconsciente, aperfeiçoado numa emoção precisamente expressa; contudo, poucas pessoas defenderiam que é, por isso, uma obra de arte. E mais: a descrição de Collingwood do papel apropriado do observador de uma pintura parece transformar esse observador num artista. O observador reexprime a emoção que se encontra no âmago da obra.
Ao mesmo tempo que a teoria admite demais no domínio da verdadeira arte, exclui muitas obras de arte paradigmáticas. Uma aplicação rigorosa dos comentários acerca da arte mágica, por exemplo, parece impedir a maioria das pinturas da Renascença de serem obras de arte. A função da arte religiosa é “evocar, e constantemente reevocar, certas emoções cuja descarga terá lugar nas actividades da vida quotidiana”. Retábulos e outras pinturas devocionais são criadas como ponto de convergência da oração e com uma função particular em mente. Não as deveremos tomar como obras de arte?
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte?, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 72-73

domingo, 29 de junho de 2008

A ARGUMENTAÇÃO BIOLÓGICA A FAVOR DO EGOÍSMO

Haverá realmente algo na nossa natureza biológica que nos leve a sermos egoístas? Será este o equivalente biológico do Pecado Original? Quando alguns biólogos eminentes atestam que há factos biológicos estabelecidos a mostrar a impossibilidade de um altruísmo genuíno, terão razão?
Eis, numa forma popular, a substância do argumento biológico que leva muitos a pensar que o egoísmo é inevitável:
Os seres humanos modernos são resultado de uma longa e incessante luta evolutiva. Nessa luta, alguns indivíduos conseguem alimentar-se e sobreviver o tempo suficiente para se reproduzirem. Outros, não. Aqueles que o conseguem, passam os seus genes à geração seguinte; os genes dos perdedores são eliminados da população. Os egoístas que agem fundamentalmente e acima de tudo em função dos seus próprios interesses têm uma maior probabilidade de vencer, em relação aos altruístas que colocam a ajuda aos outros para que estes vençam acima da maximização das suas próprias possibilidades de vitórias. Uma vez que traços como o egoísmo são, pelo menos em parte, determinados pelos nossos genes, isto significa que o número de egoístas aumentará e o número de altruístas diminuirá. Ao longo prazo – e a evolução já se faz mesmo há muito tempo – não haverá quaisquer verdadeiros altruístas.
Confrontados com o exemplo da dedicação de Madre Teresa, ao longo de toda a sua vida, às pessoas de rua doentes e moribundas de Calcutá, observaram que se tratava de uma cristã e, por conseguinte, acreditava vir a receber uma recompensa no céu. Outro sociobiólogo, Pierre van den Berghe, afirmou, simplesmente: “Estamos programados para nos preocuparmos apenas connosco próprios e com os nossos familiares”.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 163-164

A VOCAÇÃO DE LUTERO E A GRAÇA DE CALVINO

A crescente influência da classe comercial na Europa medieval colocou a perspectiva tradicional cristã sob uma pressão constante; mas foi o advento da religião protestante que estilhaçou definitivamente a antiga visão. Lutero via os padres como pessoas corruptas, que serviam os seus interesses e constituíam uma barreira entre o crente e Deus. Isto levou-o a rejeitar a divisão da comunidade cristã em castas: os padres e os vulgares leigos crentes. A apoiar esta divisão da cristandade católica havia a noção de que aqueles que se ordenavam tinham uma “vocação”, ao passo que os restantes, devido ao pecado de Adão, tinham de trabalhar. Opondo-se a esta visão, Lutero afirmou que cada um de nós tinha uma “vocação”; os mercadores e camponeses tinham-na, tal como os líderes religiosos, e ser bem sucedido na sua vocação era um dever religioso. Assim, era necessário abandonar completamente a velha ideia de que ser um mercador era inerentemente indigno e dificultava a salvação. Sem dúvida que o abandono desta visão também aproveitava aos rebeldes protestantes. Para resistirem ao poder da Igreja estabelecida, precisavam do apoio da classe média em ascensão, cuja riqueza e poder económico eram, na altura, na proporção inversa da estima que a Igreja lhes dedicava.
Um elemento característico da teologia de Calvino é a doutrina da predestinação, segundo a qual a salvação não pode ser merecida através de boas acções, e nem mesmo de uma vida moralmente irrepreensível, tendo, ao invés, de ser concedida por graça divina. Calvino via o êxito terreno como um sinal de graça. Os calvinistas, então, inverteram a anterior perspectiva cristã: a riqueza, longe de pôr em risco as possibilidades de salvação, era um sinal de salvação, e, quanto mais riqueza se tivesse, mais indubitável era o sinal.
Calvino ridicularizou a doutrina de Aristóteles de que o dinheiro se destina a ser meramente um meio de troca e, por conseguinte, não é natural usá-lo para ganhar mais dinheiro. Uma criança consegue ver, diz-nos Calvino, que o dinheiro fechado numa caixa é estéril. Mas os que pedem dinheiro emprestado não pretendem deixá-lo ocioso. Por exemplo, se o dinheiro compra um terreno, então o dinheiro gera mais dinheiro. Os mercadores pedem dinheiro emprestado para aumentar as suas existências em bens e, para eles, o dinheiro pode, muito correctamente, ser tão fértil como qualquer outro tipo de bem.
Igualmente convincente era a desdenhosa rejeição da casuística dos escolásticos que, nesta altura, tinham já desenvolvido muitas excepções à regra que proibia a usura. Calvino recuou até à Regra de Ouro: a usura é pecaminosa apenas se prejudicar o próximo. E quando é que a usura prejudica o próximo? Não se deve – pregava Calvino – esperar que um eclesiástico conheça todos os pormenores do negócio. Deixe-se que a consciência de cada crente seja o seu guia. Talvez aqui Calvino seja um pouco ingénuo acerca da natureza do negócio e da eficácia da consciência, não guiada por quaisquer princípios específicos, quando enfrenta o impulso para o lucro. Ou talvez ele estivesse sobretudo interessado em obter o apoio da comunidade mercantil para os seus ensinamentos. Na prática, o que dizia respeito à cobrança de juros, “deixe-se que a consciência de cada crente seja o seu guia” significava: vale tudo.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 127-130

sábado, 28 de junho de 2008

A ARTE DA RECORDAÇÃO

Não é fácil a arte de recordar, porque a recordação, no momento em que é preparada, pode modificar-se, enquanto a memória se limita a flutuar entre a lembrança certa e a lembrança errada. Por exemplo, o que é a saudade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudade gera-se simplesmente pelo facto de se estar ausente. Arte seria conseguir sentir-se saudade sem se estar ausente. Para tanto é preciso estar-se treinado em matéria de ilusão. Viver numa ilusão, em que o crepúsculo é contínuo e nunca se faz dia, ou alguém ver-se reflectido numa ilusão, não é tão difícil como alguém reflectir-se para dentro de uma ilusão e ser capaz de deixá-la agir sobre si, com todo o poder que é o da ilusão, apesar de se ter pleno conhecimento disso.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, p. 20

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A CRENÇA NA CRENÇA EM DEUS

Muitas pessoas crêem em Deus. Muitas pessoas crêem na crença em Deus. Qual é a diferença? As pessoas que crêem em Deus têm a certeza de que Deus existe, o que as encanta porque consideram Deus a coisa mais maravilhosa de todas. As pessoas que, além disso, crêem na crença em Deus têm a certeza de que a crença em Deus existe (e quem o poderia duvidar?) e pensam que este estado de coisas é bom, algo a ser fortemente encorajado e promovido, sempre que possível: se ao menos a crença em Deus estivesse mais espalhada! Deveríamos acreditar em Deus. Deveríamos tentar acreditar em Deus. As pessoas deveriam sentir inquietação, remorsos, um vazio, deveriam até sentir-se culpadas em descobrirem que não acreditam em Deus. É uma falha, mas acontece.
É inteiramente possível ser ateu e crer na crença em Deus. Essas pessoas não crêem em Deus mas, mesmo assim, pensam que crer em Deus seria um estado de espírito maravilhoso, se fosse possível criá-lo. As pessoas que crêem na crença em Deus tentam levar outras a crer em Deus e, sempre que sentem que a sua crença em Deus está a desfalecer, fazem o que podem para a restaurar.
DENNETT, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, p. 183

A NOITE ESTRELADA (1889)

“ Experimento uma terrível clareza em momentos que a natureza é tão linda. Perco a consciência de mim e os quadros vêm como em sonho.”
Vincent Van Gogh

Há um quadro do pintor holandês Vicent Van Gogh que me fascina particularmente – “A Noite Estrelada.” É possivelmente um dos quadros mais famosos do artista, poderia mesmo dizer, uma das suas obras-primas.
O que é que Van Gogh imprimiu na tela? Um acontecimento cósmico. Duas enormes galáxias envolvem-se uma na outra, onze estrelas gigantes com as suas coroas de luz atravessam a noite, uma luz cor-de-laranja mais parecida com o sol, “meio lua meio sol” em fase de quarto decrescente, uma larga faixa de luz atravessa-se pelo horizonte, o céu profundamente azul, parece mover-se num turbilhão de energia cósmica.
Contemplo o quadro e observo as formas curvas contínuas, serpenteadas e ondulantes e a textura de linhas nítidas, tracejadas e aos ziguezagues. As formas são dotadas de vida, cheias de tensão, revelando um estilo de pintura cheio de comoção pelo acontecimento cósmico. Mas o artista não fixa apenas na tela o movimento cósmico, “essa natureza tão linda”. Experimenta “uma terrível clareza” e pinta a cidade adormecida. Esta surge em primeiro plano em traços curtos e rectilíneos. Reparo nas luzes quadradas e amarelas das casas adormecidas em contraste com a circularidade das estrelas. O amarelo…”Oh, como é lindo o amarelo!” diria Van Gogh numa das cartas ao seu irmão Theo.
Observo a aguçada torre da igreja elevando-se a pique com as montanhas ao fundo. As montanhas, essa porta para os Alpes no vale do Ródano aparecem como vida transmitida pelo universo.
Olho para os ciprestes que cortam o horizonte, poderosos, flamejantes, que se agigantam como agulhas querendo penetrar a sua verticalidade na circularidade do firmamento. Reparo no contraste do quadro: as curvas contínuas ondulantes do céu, opostas às linhas rectilíneas da paisagem terrestre.
Os ciprestes com a sua verticalidade fascinavam o pintor. Van Gogh escreveria ao seu irmão, no Verão de 1889: “Os ciprestes ocupam-me continuamente. Gostaria de fazer algo semelhante às minhas pinturas de girassóis, pois me admira que nunca tivessem sido pintados como eu os vejo. São tão bonitos em linha e proporção como um obelisco egípcio.”
A “Noite Estrelada”, pode significar o desejo do homem querer alcançar as estrelas, captar-lhes o sentido, a grandeza, o mistério. Quem não olhou o céu num Junho de noites estreladas e luminosas e não quis recolher nas mãos uma estrela? O artista prendeu na tela um momento fugidio, imortalizou essas noites. Mas o significado mais profundo da obra é a libertação das emoções poderosas, a tentativa do pintor expressar em imagem a sua saudade do infinito.
O quadro é um dos mais representativos do período final do pintor o que, segundo alguns críticos da arte exprime um total estado de alucinação, -“perco a consciência de mim” – o momento em que o génio e a loucura se encontram produzindo a derradeira obra-prima.
A visão que muitos críticos de arte nos dão das pinturas de Van Gogh como “ uma invenção imaginária”, “uma visão submersa no misticismo”, falando de um homem em
“ comunhão extática com as forças celestes”, é hoje posta em causa. O próprio Van Gogh, nas suas cartas ao irmão, sempre se revoltou contra “esse misticismo.”
A análise dos aspectos celestes presentes na pintura sugere um artista com preocupações científicas, sociais e filosóficas de acordo com a época e padrões de representação bem conscientes.
A “Noite Estrelada” foi concluída em 19 de Junho de 1889, da janela do asilo de Saint-Rémy-en-Provence, onde o artista tinha entrado em Maio do mesmo ano, após um período de conturbação metal.
O historiador de Arte Albert Boime, professor de História de Arte na Universidade da Califórnia, recriou o céu pintado por Van Gogh, e concluiu haver mais realismo e reflexão na famosa obra do que muitos críticos têm apontado. Este historiador de Arte conseguiu determinar o momento a que se refere a pintura: são as quatro da madrugada da noite de 18 para 19 de Junho. Diz o historiador: “verifica-se que o pintor nunca se baseou unicamente na imaginação mas partiu sempre da Natureza, pois era da natureza que Van Gogh gostava e era esse apego que queria transmitir.”
Em carta ao irmão, Van Gogh diria: “ É a emoção, a sinceridade do sentir a natureza que nos conduz a mão”.Quer a Obra de Arte – “A Noite Estrelada” tenha sido concebida num momento de alucinação, de loucura, de sonho, quer num momento consciente, de sinceridade, ela é fascinante, misteriosa, estranha e bela. Apela ao regresso à origem, ao refluxo do cosmos.

Isabel Laranjeira, docente de Filosofia da Escola Frei Rosa Viterbo - Sátão

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O DIREITO NATURAL


Aquilo que as pessoas possuem em superabundância, seja o que for, destina-se, nos termos do direito natural, ao auxílio dos pobres. Por esta razão, Ambrósio diz: “O pão que arrecadas é do faminto, o manto que guardas é do nu, e o dinheiro que escondes na terra é o preço do resgate e da liberdade do pobre”.
Contudo, uma vez que há muitas pessoas necessitadas e sendo impossível serem todos auxiliados pela mesma coisa, a cada um é confinada a administração das suas próprias coisas, de forma que, com elas, possa ir ao auxílio daqueles que mais necessitam. Ainda assim, se a necessidade for tão manifesta e urgente que seja evidente que a necessidade presente tem de ser remediada por quaisquer meios à disposição (por exemplo, quando uma pessoa se encontra num perigo iminente e não há outro remédio possível), então é legítimo que um homem satisfaça a sua necessidade recorrendo à propriedade de outrem, tomando-a quer aberta quer secretamente, e isto não constitui, estritamente falando, assalto nem roubo. Em caso de tal necessidade, um homem pode igualmente apropriar-se secretamente da propriedade de outrem para satisfazer as necessidades do seu próximo.
S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, cit. p. SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 125-126

PODE UM MERCADOR SER AGRADÁVEL A DEUS?

Quando consideramos a outra fonte principal das ideias ocidentais, a tradição judaica e cristã, vemos que as antigas escrituras hebraicas condenam igualmente a cobrança de juros sobre empréstimos, mas propõem a este respeito bem como a muitos outros, uma ética tribal, adequada a um pequeno grupo de pessoas a viver entre outros grupos. Assim, no Deuteronómio, lemos:
Não emprestes ao teu irmão com juros, quer se trate de empréstimo em dinheiro, quer em alimentos ou qualquer outra coisa sobre a qual é costume cobrar juros.
Quando, muito mais tarde, o cristianismo surgiu entre o povo judeu, propôs uma ética universal. Todos sabemos que Jesus nos instou a amarmos os nossos inimigos; menos conhecido, hoje em dia, é o facto de ele nos ter dito igualmente para deixarmos de lhes cobrar juros.
Obedecendo a estes ensinamentos, as primeiras comunidades cristãs parecem ter possuído em comum a pouca propriedade que detinham. Os ensinamentos dos Doutores da Igreja eram coerentes com isto. As esmolas dadas aos pobres não eram uma questão de misericórdia, mas de justiça, pois a terra era encarada como algo que pertencia a todas as pessoas e ninguém tinha direito a mais do que lhe era necessário. Gregório Magno, numa passagem memorável, afirmou que, tal como há tarefas menores que sujam o corpo, como limpar os esgotos, também há outras que mancham a alma, e o câmbio é uma delas.
Não surpreende, pois, que a tradição cristã não veja com bons olhos o lucro. No século V, o Papa Leão I afirmou, numa carta dirigida ao bispo de Narbonne, que é difícil evitar o pecado no processo de compra e venda. Em 1139, o Concílio de Latrão condenou a usura – o que significa cobrar juros a dinheiro emprestado, por moderada que seja a taxa – como “ignominioso”. Quarenta anos mais tarde, outro Concílio de Latrão decidiu que os usurários tinham de ser excomungados, não podiam ter um enterro cristão e as suas oferendas e presentes seriam recusados. A proibição da usura deu igualmente um impulso fatal ao anti-semitismo: como os cristãos não podiam emprestar dinheiro, este papel passou a caber aos judeus, e o ódio sentido pela usura inflamou os preconceitos existentes relativos aos já desprezados “assassinos de Cristo”.
Algumas das justificações para a condenação da usura fazem um contraste intrigante com os nossos modos actuais de pensar. Um teólogo medieval, Tomás de Chobham, considerava a usura repreensível porque “o usurário pretende obter lucro sem qualquer trabalho e mesmo enquanto dorme, o que é contrário ao ensinamento do Senhor: ‘Ganharás o pão com o suor do teu rosto’.” Além disso, acrescenta Tomás, o usurário nada vende que verdadeiramente lhe pertença: vende apenas tempo, que pertence a Deus. Isto transformava o usurário num ladrão e, efectivamente, a usura é muitas vezes classificada como uma forma de assalto ou roubo. Mas era também comparada frequentemente com a prostituição, outra ocupação que era simultaneamente bem conhecida e vergonhosa. Tomás considerada a comparação injusta para a prostituta: ela, pelo menos, trabalhava para ganhar o dinheiro, embora o trabalho fosse ignominioso.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 117-122

quarta-feira, 25 de junho de 2008

A ARTE DE FAZER DINHEIRO EM ARISTÓTELES


As origens dos modos ocidentais de pensar encontram-se em dois locais: na antiga Grécia e na tradição judaico-cristã. Se considerarmos a Grécia em primeiro lugar, encontramos um vigoroso debate filosófico acerca da verdadeira natureza da vida boa; mas nenhum dos principais filósofos que participam neste debate vê o êxito em termos de aquisição de dinheiro ou bens materiais. Quando Platão, em A República, esboçou uma comunidade ideal, fê-la com três classes, das quais a inferior – os agricultores e artífices – trabalharia para obter lucro e acumular propriedades. Os governantes ou guardiães nem sempre possuiriam as suas próprias habitações, e teriam de viver em comum. Isentos do efeito corruptor do dinheiro, ficariam mais aptos a governar sábia e justamente.
Nos termos da ideia de Platão de posse comum, objectava Aristóteles, as pessoas não partilhariam equitativamente o trabalho que seria necessário fazer. Aqueles que trabalhavam arduamente veriam com maus olhos as outras que “trabalham pouco e recebem ou consomem muito”. Reconhecia igualmente os prazeres da posse e considerava-os legítimos, pois “o amor de si é um sentimento implantado pela natureza e não doado em vão, embora o egoísmo seja correctamente censurado; este, contudo, não se trata de mero amor de si, mas do amor de si em excesso, como o amor do avaro pelo dinheiro”.
Fazer dinheiro pode ser um meio para alcançar o fim de fornecer ao agregado aquilo de que este necessita, mas, porque é apenas um meio, está limitado pela natureza do próprio fim.
Algumas pessoas, diz Aristóteles, confundiram o meio com o fim. Acreditam que dinheiro é riqueza. Para provar que isto não pode ser correcto, Aristóteles aponta como exemplo a história do Rei Midas, que, gananciosamente, desejou que tudo aquilo em que tocasse se transformasse em ouro e morreu de fome quando a comida se transformou em ouro na sua boca. Como pode algo ser riqueza, pergunta retoricamente Aristóteles, se se pode possuí-lo em superabundância e, no entanto, morrer de fome?
Para Aristóteles, adquirir bens para satisfazer as necessidades é natural e, por conseguinte, “a arte de fazer dinheiro a partir de frutos e animais é sempre natural”; mas adquirir o dinheiro pelo dinheiro não é natural e é errado. A transacção como comércio ou meio de fazer dinheiro, segundo Aristóteles, não é natural, sendo “justamente censurado”, pois trata-se de “um modo através do qual os homens ganham uns com os outros”. Quando cultivamos os campos ou criamos animais, obtemos o nosso ganho a partir da natureza, aumentando a quantidade de bens disponíveis para os seres humanos; por outro lado, quando compramos um produto e tornamos a vendê-lo por mais dinheiro do que aquele que demos por ele, não aumentámos o valor do produto. Obtemos o nosso lucro à custa dos outros, dispostos a comprar os nossos bens por um valor superior ao da aquisição original.
Aristóteles acrescentou que o tipo de comércio mais odioso é ganhar dinheiro a emprestar dinheiro, pois isto “permite um ganho a partir do próprio dinheiro, e não do uso natural deste. O dinheiro destina-se a ser usado em troca, e não a reproduzir-se devido ao juro. Daí que, de todos os modos de fazer dinheiro, este seja o menos natural”.
Esta ideia passou a ser conhecida como a doutrina aristotélica da esterilidade do dinheiro. Que os animais e as plantas se reproduzam, é natural. Mas o dinheiro é estéril, e fazer dinheiro a partir da sua reprodução não é natural.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 113-117

terça-feira, 24 de junho de 2008

ARTE COMO EXPRESSÃO

Collingwood é um expressionista na medida em que define a arte como a expressão imaginativa das emoções; ao mesmo tempo é um idealista uma vez que em momentos cruciais afirma que uma obra de arte não precisa estar incorporada num material particular; pode estar puramente na mente do artista.
A sua ideia aqui parece ser que uma obra de arte não precisa de ser tangível: Pode existir meramente como uma ideia, na mente do artista. Tipicamente, os artistas fazem de facto objectos quando exprimem as suas emoções artisticamente. O seu envolvimento com os meios – seja tinta, barro, ou outro material – pode fazer parte do processo: Mas estes objectos são sempre simplesmente os meios através dos quais os observadores podem construir o trabalho por si próprios na sua própria mente. A verdadeira obra existe na forma de ideias na mente do seu criador, e na mente de quem está a apreciar a obra.
Para Collingwood, a apreciação da arte envolve a imaginação. “Uma verdadeira obra de arte é uma actividade total que a pessoa que dela desfruta apreende ou tem dela consciência pelo uso da sua imaginação.”
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte?, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 68-69

“VIVEMOS PARA ADQUIRIR BENS”

O que distingue o capitalismo é a ideia da aquisição pela aquisição enquanto modo de vida eticamente sancionado. Antes da era moderna, o dinheiro e as pessoas eram valorizados enquanto apenas relativamente àquilo que se podia fazer com eles. A um nível mínimo, o dinheiro e as posses significavam que se podia ter acesso a comida, abrigo e roupa; a um nível de maior abundância, o dinheiro e as posses significavam uma vasta propriedade, serviçais, diversão sofisticada, viagens, porventura também a capacidade de atrair amantes ou granjear poder político. Na era capitalista, o dinheiro é valorizado em si, e não apenas por aquilo que pode comprar. Nos níveis mais elevados de rendimento, a ordem natural das coisas inverte-se: em vez de o dinheiro ser valorizado pelas coisas que compra, as coisas tornam-se valiosas pela quantidade de dinheiro que custam. Os Lírios de Van Gogh teriam tido muito menos interesse para o abastado australiano Alan Bond se ele tivesse podido adquiri-los por meio milhão de dólares. O facto de ele ter pago quase cem vezes esse valor transformou o quadro Lírios na pintura mais cara do mundo, e possuir a pintura mais cara do mundo era o que Bond, que pouco sabe de arte, quis quando se encontrava no apogeu do êxito. Para o homem capitalista, o único objectivo do trabalho de uma vida é, nas palavras de Weber, “afundar-se na campa sob o peso de uma grande carga material de dinheiro e bens”. Não adquirimos bens para vivermos; em vez disso, vivemos para adquirir bens.

SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 112-113

segunda-feira, 23 de junho de 2008

QUE CONCEPÇÃO DE VIDA BOA?

O consumo de recursos insubstituíveis constitui uma forma rápida e fácil de nos enriquecermos; e despejar os nossos resíduos no vazadouro universal é mais barato do que as alternativas ecologicamente sustentáveis. Se reduzirmos estas formas de nos enriquecermos, o prejuízo económico sentir-se-á noutro sítio. Os produtos agora feitos a partir de recursos insubstituíveis ou cuja produção polui o ambiente, tornar-se-ão mais caros e, portanto, não poderemos adquirir a quantidade a que estamos habituados.
Durante séculos, a sociedade ocidental procurou retirar satisfação do santo graal da abundância material. A demanda foi empolgante e ficámos a conhecer muitas coisas que valeram a pena a descoberta, mas, e, tendo o nosso objectivo alguma vez sido sensato, já o alcançámos há muito tempo. Infelizmente, esquecemo-nos de que podia haver também outros objectivos. Para quê vivermos, senão para sermos mais ricos do quer os outros e mais ricos do que éramos antes? Muitos daqueles extraordinariamente bem sucedidos nos termos da concepção materialista de sucesso descobrem que as recompensas para as quais trabalharam tão arduamente perderam a sua atracção, uma vez alcançadas. A demanda da felicidade através da riqueza material baseia-se num logro. Quando a ideia de crescimento ilimitado se tornou insustentável, o mesmo sucedeu à nossa concepção de vida boa. Então quais é que devem ser os nossos objectivos? A necessidade ecológica premente de mudar a nossa economia oferece-nos a melhor oportunidade em séculos para reflectirmos sobre esta questão e para descobrirmos o que é realmente viver bem.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 108-110

MERCADO DE DEUS

Tradicionalmente, o Papa reza pela paz todas as Páscoas e o facto de nunca ter tido o efeito de prevenir ou terminar qualquer guerra nunca o demove. O que passará pela cabeça ao Papa, ao ser sempre rejeitado? Será que Deus lhe tem cisma?
Andy Rooney, Sincerely

Quem pode ser leal a um Deus a quem não é possível pedir nada? Não tem de ser maná dos céus. Como o actor cómico Erno Philipps disse uma vez: “Quando era pequeno, costumava rezar a Deus para que me desse uma bicicleta. Mas depois compreendi que Deus não funciona dessa maneira – por isso roubei uma bicicleta e rezei para que me perdoasse!” E, como Stark observa: “Há sempre um fornecimento limitado de recompensas e algumas encontram-se inteiramente indisponíveis – pelo menos não estão disponíveis, aqui e agora, através de meios convencionais”. Um dos principais problemas de marketing para as religiões é, pois, como convencer o cliente a aguardar.
Recuperar de um cancro é algo menor, quando comparado com a vida eterna. Mas talvez o aspecto mais significativo das recompensas do outro mundo seja o facto de a realização destas recompensas ser adiado (frequentemente até depois da morte). Por consequência, em busca de recompensas do outro mundo, os seres humanos aceitarão uma relação de troca de prazo alargado com os Deuses. Ou seja, os seres humanos farão pagamentos periódicos, ao longo de um período substancial de tempo, com frequência até à morte.
Na medida em que uma pessoa se sente motivada pelo valor religioso, deve preferir um fornecedor que pratique preços mais elevados. Os grupos religiosos mais dispendiosos não somente oferecem um produto mais valioso, mas, ao fazê-lo, geram também os níveis individuais de confiança na religião.
DENNETT, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 161-162

domingo, 22 de junho de 2008

A ORIGEM DA RIQUEZA DAS NAÇÕES

Adam Smith afirmou que, numa economia de mercado, cada um de nós apenas se pode tornar rico se for mais eficiente do que os seus concorrentes na satisfação das necessidades dos seus clientes – pensamento traduzido na sua famosa frase: “Não é da benevolência do talhante que esperamos o nosso jantar, mas da sua consideração próprio.” Para servir os nossos próprios interesses, procuraremos produzir bens mais baratos e melhores do que aqueles que já existem. Se formos bem sucedidos, o mercado recompensar-nos-á com riqueza; se fracassarmos o mercado expulsar-nos-á. O resultado colectivo do desejo individual de riqueza é uma nação próspera, que beneficia não só os ricos, mas também “a pessoa mais miserável de um país civilizado”.
Esta tornou-se a justificação-padrão para a desigualdade que resulta da demanda de riqueza num sistema de livre iniciativa. É-nos dito que mesmo os mais pobres não têm razões de queixa, pois estão muito melhor do que estariam se tivessem permanecido numa sociedade pré-industrial. Na verdade, estão muito melhor do que um rei em África.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 82-83

A CRIAÇÃO DAS SOCIEDADES

Hobbes publicou o seu grande livro, Leviatã, em 1651, no rescaldo da Guerra Civil Inglesa e do derrube dos monarcas Stuart que afirmavam governar por Direito Divino. Hobbes começou pelo pressuposto de que toda a humanidade tem um objectivo básico: “um perpétuo e agitado desejo de poder atrás de poder, que apenas cessa com a morte”. Por esta razão, no estado de Natureza da humanidade todos os seres humanos viveriam num estado de guerra: “onde cada homem é Inimigo. E a vida do homem, solitária, pobre, desagradável, animalesca e breve.” Isto colocava um problema imediato: de tais seres impiedosamente centrados em si, a viver numa tal situação terrível, como poderia alguma vez ser criada uma sociedade, ou, depois de criada, sobreviver? A sociedade só é criada através da aplicação de uma força superior. A sociedade existe porque é do interesse de todos nós haver paz e a paz só vigorará se instituirmos um soberano com autoridade ilimitada e suficiente poder para punir aqueles que violam a paz.
A teoria autoritária de Hobbes da sociedade como contrato social foi seguida pela de John Locke. Locke era mais optimista do que Hobbes na sua visão da natureza e, portanto, inclinou-se para uma forma de governo mais limitada, na qual os cidadãos individuais detinham direitos em relação ao governo; mas, ainda assim, via a sociedade em grande medida como uma associação frouxa e, na verdade, opcional, de indivíduos.
A concepção de sociedade de Locke influenciou consideravelmente os revolucionários americanos e os autores da Constituição americana. Tocqueville, na década de 1830, considerou que a América já era, notavelmente, uma nação de indivíduos, e embora admirasse a auto-suficiência e a independência dos seus cidadãos, temia o destino final daquilo.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 69-71

sábado, 21 de junho de 2008

O DILEMA DOS PRISIONEIROS

Problema clássico da teoria dos jogos. Dois prisioneiros conjuntamente acusados de um crime são mantidos separados e a cada um é dada a opção de confessar ou de não confessar. Se nenhum confessar, cada um terá uma pena de dois anos. Se os dois confessarem, cada um deles é condenado a 6 anos. Se o prisioneiro A confessar e B não, A é libertado e B sofre uma pena agravada de 10 anos. Se o prisioneiro B confessar e A não, B é libertado e A sofre uma pena agravada de 10 anos. A matriz é a seguinte:
A verdade surpreendente acerca do jogo é que, faça o outro prisioneiro o que fizer, qualquer deles fica a ganhar se confessar (se A confessar, B fica a ganhar se confessar; e se A não confessar, B fica também a ganhar se confessar; o mesmo acontece com A, quer B confesse quer não). A confissão domina a não confissão. No entanto, o resultado social no qual A e B seguem este raciocínio é o pior de todos (resultando em 12 anos de prisão ao todo); teriam ambos ficado muito melhor se não confessassem (4 anos de prisão ao todo). Muitas situações políticas (e.g., se devemos votar quando isso implica custos, se devemos evitar reivindicar aumentos, se devemos ser bons cidadãos e deixar de regar o jardim quando há falta de água) podem ser representados como dilemas dos prisioneiros. A estrutura mostra que nem sempre se dás o caso de o bem social ser eficazmente aprofundado quando cada pessoa faz o que está no seu interesse fazer: mesmo que uma “mão invisível” faça que cada pessoa fique a ganhar quando se dão largas ao interesse pessoal, parece existir um castigo invisível que faz que cada pessoa fique a perder.
Um dilema dos prisioneiros reiterado é uma sequência finita ou infinita de situações deste género. Num interessante estudo, Robert Axelrod mostrou que uma política eficiente nestas situações é “pagar na mesma moeda”: A começa por cooperar com B (não confessando) até ser confrontado com a confissão de B, altura em que A confessa, em retaliação; mas então, se B se arrepender, A volta atrás e nega a confissão, até que tudo volte a acontecer. Para além de ser uma boa estratégia, “pagar na mesma moeda” tem alguma justificação moral intuitiva. Contudo, a estratégia é sensível à proporção entre as recompensas e as penas que estão em jogo, não podendo dizer-se que é a melhor estratégia em todas as circunstâncias.
in BLACKBURN, Simon, Dicionário de Filosofia, 1ª edição, 1997. Lisboa: Gradiva.

PARADOXO DO HEDONISMO

O paradoxo segundo o qual os agentes que procuram deliberadamente maximizar os seus próprios prazeres correm maior risco de não o conseguir do que aqueles que se importam com outras coisas e com as outras pessoas, para benefício destas.Peter Singer afirma que a maioria das pessoas não seria capaz de encontrar a felicidade ao decidir deliberadamente gozar a vida sem se preocupar com ninguém nem coisa alguma. Os prazeres assim obtidos pareceriam vazios e em pouco tempo tornar-se-iam insípidos. Procuramos um sentido para a vida que vá para além do prazer pessoal e sentimo-nos realizados e felizes quando fazemos as coisas que consideramos plenas de sentido. Se a nossa vida não tiver sentido algum além da nossa própria felicidade, é provável que, ao conseguirmos aquilo que julgamos necessário para essa felicidade, constatemos que a própria felicidade continua a escapar-nos.Tem-se dado o nome de ‘paradoxo do hedonismo’ ao facto de as pessoas que procuram a felicidade pela felicidade quase nunca a conseguirem encontrar, ao passo que outras a encontram numa busca de objectivos totalmente diferentes. Não se trata, por certo, de um paradoxo lógico, mas de uma tese sobre o modo pelo qual chegamos a ser felizes.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

O SENTIDO DA VIDA

Hoje em dia, a afirmação de que a vida não tem significado já não nos chega dos filósofos existencialistas que a tratavam como uma descoberta chocante: chega-nos das bocas de adolescentes aborrecidos, para quem é já um truísmo. Talvez o responsável por isto seja o lugar central ocupado pelo interesse próprio, e a forma como concebemos o nosso próprio interesse. A busca do interesse próprio, tal como é geralmente concebido, corresponde a uma vida sem qualquer significado que não o nosso próprio prazer ou satisfação individual. Mas os antigos já conheciam o “paradoxo do hedonismo”, segundo o qual quanto mais explicitamente nós perseguíssemos o nosso desejo de prazer, mas inapreensível descobriríamos a sua satisfação.
Embora o estudo da ética possa não progredir da forma extraordinária como progride o estudo da física ou da genética, durante o último século conheceu-se muita coisa. O progresso não apenas na área da filosofia, mas também na das ciências, contribuiu para o nosso conhecimento da ética. A “teoria da escolha racional” – ou seja, a teoria sobre o que é escolher racionalmente em situações complexas que envolvem incertezas – chamou a atenção para um problema não discutido pelos pensadores antigos, conhecido como o “Dilema do Prisioneiro”. A discussão moderna deste problema sugere que quando cada uma de duas ou mais pessoas, agindo bastante racionalmente, deliberadamente, e com a melhor informação possível, persegue independentemente os seus interesses, podem ambas acabar pior do que se tivessem agido de forma menos racionalmente centrada nos seus interesses.
Uma vida ética é aquela em que nos identificamos com outros objectivos, mais amplos, conferindo assim sentido às nossas vidas. A perspectiva de que a vida ética e a vida do interesse próprio esclarecido são uma e a mesma é antiga, mas é agora frequentemente desdenhada por quem é demasiado cínico para acreditar em tal harmonia. A opinião antiga era a de que uma vida eticamente boa é também uma vida boa para a pessoa que a vive. Jamais foi tão urgente que as razões para aceitar esta visão mais antiga sejam amplamente compreendidas. Para isso, temos de pôr em causa a visão do interesse próprio que domina a sociedade ocidental há muito tempo.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 49-51

ÉTICA E INTERESSE PESSOAL ii

Subsistem dúvidas pessoais acerca da ética. Viver eticamente, supomos, será duro e desconfortável, envolverá sacrifício próprio e, em termos gerais, não será compensador. Vemos a ética como contrapondo-se ao interesse próprio: pressupomos que aqueles que fazem fortuna recorrendo a informações internas ignoram a ética, mas são bem sucedidos na satisfação dos seus interesses (desde que não sejam apanhados). Nós próprios fazemos o mesmo, ao aceitar um emprego na qual a remuneração é superior à de outro, mesmo significando isso que estamos a ajudar a fabricar ou promover um produto que não faz qualquer bem ou, na verdade, faz adoecer as pessoas. Por outro lado, considera-se que quem recusa oportunidades de subir na carreira devido a “escrúpulos” éticos sobre a natureza do seu trabalho, ou quem doa a sua riqueza a boas causas, está a sacrificar os seus interesses próprios de forma a obedecer aos ditames da ética. Ainda pior, podemos considerá-los palermas, desperdiçando todas as coisas boas de que poderiam usufruir, enquanto outros se aproveitam da sua generosidade inútil.
Esta ortodoxia corrente acerca do interesse próprio e da ética traça um quadro da ética como algo externo a nós, hostil mesmo aos nossos próprios interesses. Vemo-nos constantemente divididos entre o impulso de contribuir para o nosso interesse próprio e o receio de sermos apanhados a fazer algo que os outros condenarão, e pelo qual seremos punidos. Encontra-se também na ideia de que os seres humanos se situam no ponto intermédio entre o céu e a terra, partilhando o reino espiritual dos anjos ao mesmo tempo que estão aprisionados pela sua natureza corporalmente grosseira a este mundo das bestas. O filósofo alemão Immanuel Kant retomou esta ideia ao retratar-nos como seres morais apenas na medida em que subordinamos os nossos desejos físicos naturais às ordens da natureza universal que percebemos através da nossa capacidade de raciocínio. É fácil ver uma relação entre esta ideia e a visão de Freud das nossas vidas dilaceradas pelo conflito entre id e super-ego.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 46-48

quinta-feira, 19 de junho de 2008

UMA OBJECÇÃO À TEORIA DE BELL ii


Outra acusação que se pode fazer à teoria da arte de Bell é a de ser elitista. Bell, presumivelmente, não a veria como uma objecção à sua teoria, mas antes como uma descrição imparcial do seu conteúdo. Aqueles que não sentem o tipo de emoção que Bell sente perante grandes obras de arte são rejeitados como “homens surdos num concerto”. Bell acredita que apenas um pequeno conjunto de afortunados poderá fazer os tipos relevantes de discriminação acerca da arte visual. Portanto, neste sentido a teoria de Bell é elitista. Uma razão pela qual Bell é tão frequentemente acusado de elitismo é talvez o facto de acreditar claramente que ele e os seus amigos poderiam discernir a forma significante e quem discordava dos seus juízos artísticos não podia.
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte?, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 39-40

UMA OBJECÇÃO À TEORIA DE BELL

Uma das objecções mais sérias feitas à teoria de Bell é a de que é viciosamente circular. A alegada circularidade ocorre na definição dos dois termos centrais: “forma significante” e “emoção estética”. Um é definido unicamente em função do outro. Não são introduzidos mais elementos no círculo, e assim temos uma teoria pouquíssimo informativa baseada em dois termos técnicos mutuamente definidos. Nada há de intrinsecamente errado com a circularidade dos argumentos e definições. Pensa-se num bom dicionário: qualquer palavra definida nesse dicionário está definida em função de palavras que também são definidas nesse dicionário e, por isso, a um certo nível todo o dicionário é circular. Este tipo de circularidade é perfeitamente aceitável. O que não é aceitável é o tipo de definição que define um termo unicamente em termos de outro e vice-versa. Assim, por exemplo, se procurarmos “sim” e a definição dada for “o contrário de não”; e depois formos ver “não” e a definição dada for “o contrário de sim”, teremos boas razões para nos sentirmos consternados. Aplicando isto à teoria de Bell, vemos que há uma explicação da forma significante: é um padrão de linhas, formas e cores. Contudo, uma vez que isto apenas serve para encontrar a forma e não a forma significante, não adianta muito na caracterização de uma teoria satisfatória da arte. A melhor maneira de definir a forma significante é aquilo que causa a emoção estética. Ora, esta é simplesmente a emoção sentida na presença da forma significante.
Bell poderia ter evitado este problema se desse uma definição mais abrangente de “forma significante” ou de “emoção estética”. Sem a ajuda de tais guias úteis, a teoria de Bell continua a ser, no seu cerne, desprovida de conteúdo, quando tratada como uma teoria e não como um manifesto.
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte?, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 36-38

quarta-feira, 18 de junho de 2008

INTERESSE INDIVIDUAL E INTERESSE COMUM


Karl Marx teria respondido à pergunta de Gláucon dizendo que ela não poderia ter uma resposta satisfatória, a menos que alterássemos a natureza da sociedade. Enquanto vivermos numa sociedade em que a produção económica se destina a satisfazer os interesses de uma classe particular, haverá necessariamente conflito entre o interesse próprio individual e os interesses da sociedade como um todo. Nessa situação, o pastor agiria bastante racionalmente ao utilizar o anel mágico para se apoderar do que lhe aprouvesse e matar quem desejasse. Todavia, uma vez organizados os meios de produção a bem do interesse comum, Marx diria que a natureza humana, que não é fixa, mas condicionada socialmente, se alteraria com eles. Os cidadãos da nova sociedade, baseada na propriedade comum, encontrariam a sua própria felicidade no trabalho para o benefício de todos.
Para muitos críticos de Marx, era claro desde o início que isto não passava de um sonho. Mas, com o colapso das sociedades comunistas na Europa de Leste e da antiga União Soviética, a natureza utópica do pensamento marxista tornou-se evidente para todos. Pela primeira vez, vivemos num mundo que possui um modelo social dominante para as sociedades desenvolvidas. A esperança de resolução do conflito entre interesse próprio individual e o bem de todos através da construção de uma alternativa à economia de mercado livre é agora um fracasso assumido. Parece que a visão individualista do interesse próprio é a única ainda viável.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 38-39

O ANEL DE GYGES

Há dois mil e quinhentos anos, no dealbar do pensamento filosófico ocidental, Sócrates tinha reputação de ser o homem mais sábio da Grécia. Um dia, Gláucon, um jovem ateniense abastado, desafiou-o a responder a uma questão sobre como havemos de viver. O desafio constitui um elemento-chave na República de Platão, uma das obras estruturantes da história da filosofia ocidental. É também uma formulação clássica de uma escolha última.
Segundo Platão, Gláucon começa por contar uma vez mais a história de um pastor que servia o soberano de Lídia. Um dia, estava o pastor com o seu rebanho quando se abateu uma tempestade sobre o local onde se encontrava e se abriu um abismo no solo. Ele desceu pelo abismo e, uma vez lá no fundo, encontrou um anel de ouro, que colocou no dedo. Alguns dias depois, sentado com outros pastores, calhou começar a brincar com o anel e, para seu espanto, descobriu que, quando girava o anel de determinada forma, tornava-se invisível aos olhos dos seus companheiros. Uma vez feita esta descoberta, arranjou maneira de ser um dos mensageiros enviados pelos pastores ao rei, para dar conta do estado dos rebanhos. Chegado ao palácio, usou o anel para seduzir a rainha, conspirou contra o rei, matou-o e, assim, obteve a coroa.
Gláucon considera que esta história encerra uma visão comum sobre a ética e a natureza humana. A implicação da história é que qualquer pessoa que possuísse tal anel faria tábua rasa de todos os padrões éticos.
De seguida, Gláucon desafia Sócrates a provar que esta opinião comum da ética é errada. Prova-nos, diz ele, que uma pessoa sensata que descobrisse o anel continuaria, ao contrário do pastor, a fazer o que era certo. Segundo Platão, Sócrates convenceu Gláucon e os outros atenienses presentes de que, seja qual for o lucro que a injustiça pareça proporcionar, só aqueles que agem de forma correcta são realmente felizes.
Que outra resposta poderíamos dar a Gláucon?
Uma “resposta” que não é resposta alguma consiste em ignorar o desafio. Há muitas pessoas que o fazem. Vivem e morrem irreflectidamente, sem alguma vez se terem perguntado quais os seus objectivos e por que fazem o que fazem.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 30-33

terça-feira, 17 de junho de 2008

OMNIPOTÊNCIA E INFORMAÇÃO ESTRATÉGICA

Ao contrário de outras espécies, que têm de se preocupar permanentemente com predadores à espreita e com a escassez de fontes de alimentos, os seres humanos trocam em larga medida essas preocupações por outras. O preço que a nossa espécie pagou pela segurança de viver em grandes grupos de comunicadores em interacção com diferentes projectos consiste em ter de monitorizar esses projectos complexos e relações instáveis. Em quem posso confiar? Quem confia em mim? Quem são os meus rivais e os meus amigos? A quem devo e que dívidas deveria eu perdoar ou cobrar? O mundo humano fervilha com essa informação estratégica, para usar o termo de Pascal Boyer. Será que ela sabe que eu sei que ela quer deixar o marido? Será que alguém sabe que eu roubei aquele porco? Todos os enredos de todas as grandes sagas, tragédias e romances, mas também de todas as séries de televisão e livros aos quadradinhos dependem das tensões e complexidades que surgem, devido ao facto de os agentes no mundo não partilharem todos a mesma informação estratégica.
E se realmente existissem agentes que tivessem acesso a toda a informação estratégica?! Que ideia incrível! É fácil ver que um tal ser seria uma criação que atrairia a atenção, mas, para além desse facto, de que serviria? Por que seria mais importante do que qualquer outra fantasia? Bem, poderia ajudar as pessoas a simplificar os raciocínios que têm de ser feitos para descobrir o que fazer.
DENNETT, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 111-112

ÉTICA E INTERESSE PESSOAL

Se formos honestos connosco próprios, admitiremos que, pelo menos às vezes, quando a ética e o interesse próprio colidem, escolhemos o interesse próprio e isso não é apenas uma questão de ter falta de força de vontade ou ser irracional. Sentimo-nos genuinamente inseguros quanto à decisão racional a tomar, porque quando a colisão é tão fundamental a razão não parece ter forma de a resolver.
O estado do mundo nos finais do século XX implica que mesmo que nunca sejamos tentados por formas não éticas de fazer dinheiro, teremos sempre de decidir até que ponto devemos viver em função de nós próprios e em função dos outros. Há pessoas que têm fome, estão malnutridas, não possuem casa nem cuidados básicos de saúde e há organizações voluntárias que angariam dinheiro para ajudar estas pessoas. É verdade que o problema é tão grande que uma pessoa não pode ter grande impacto nele e sem dúvida que algum dinheiro será engolido pela administração, ou desviado, ou não chegará às pessoas necessitadas por qualquer outra razão. Apesar de estes problemas inevitáveis, a discrepância entre a riqueza do mundo desenvolvido e a pobreza das pessoas mais pobres dos países em vias de desenvolvimento é de tal modo gritante que se apenas uma pequena fracção daquilo que damos chegar às pessoas que mais precisam, essa fracção fará uma diferença maior para as pessoas que recebem do que a totalidade do dinheiro doado faria para as nossas vidas. Que nós, individualmente, não tenhamos grande impacto na totalidade do problema não parece nada relevante, uma vez que podemos provocar impacto nas vidas de famílias particulares. Envolver-nos-emos, então, numa dessas organizações? Seremos capazes de dar, não uma moeda quando nos agitam uma caixa debaixo do nariz, mas quantias substanciais que diminuirão a nossa capacidade de levar um modo de vida luxuoso?
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 26-28

segunda-feira, 16 de junho de 2008

COMO HAVEMOS DE VIVER?

Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, para além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de “algo pelo qual viver” tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incómoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que, de momento, lhes falta. Mas para que outra coisa poderemos viver? No presente livro, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias actuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.
Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças a morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência.
O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbe de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 13-15

PARADIGMA

Um sentido de “paradigma” é global, abarcando todos os empenhamentos partilhados por um grupo científico; o outro isola um género particularmente importante de empenhamento, e é assim um subconjunto do primeiro.
Um paradigma é o que os membros de uma comunidade científica, e só eles, partilham. Reciprocamente, é a respectiva possessão de um paradigma comum que constitui uma comunidade científica, formada, por sua vez, por um grupo de homens diferentes noutros aspectos. Com generalizações empíricas, estes dois enunciados podem ser defendidos. Mas, no livro, funcionam, pelo menos em parte, como definições, e o resultado é uma circularidade com algumas consequências viciosas. Para se explicar convenientemente o termo “paradigma”, devemos, primeiro, reconhecer que as comunidades científicas têm uma existência independente.
Nesta acepção, uma comunidade científica consiste nos praticantes de uma especialidade científica. Unidos por elementos comuns da respectiva educação e aprendizagem, vêem-se a si mesmos e são vistos pelos outros como os responsáveis pela prossecução de um conjunto de objectivos partilhados, incluindo a formação dos sucessores. Tais comunidades são caracterizadas pela relativa abundância de comunicação no interior do grupo e pela relativa unanimidade do juízo grupal em matérias profissionais. Numa dimensão notória, os membros de uma dada comunidade terão absorvido a mesma literatura e estruturado conclusões a partir dela.
KUHN, Thomas, A Tensão Essencial, 1ª edição, 1989. Lisboa: Edições 70, pp. 354-356

domingo, 15 de junho de 2008

CIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA

Até agora, restringi a minha atenção ao papel da medição na prática normal da ciência natural, o género de prática em que todos os cientistas estão principalmente empenhados e a maioria estão-no sempre. Mas a ciência natural também apresenta situações anormais – tempos em que os projectos de investigação se extraviam e em que nenhuma técnica habitual parece suficiente para os restaurar – e é através destas situações raras que a medição mostra os seus grandes pontos fortes. Em particular, é através de estados anormais de investigação científica que a medição acaba, ocasionalmente, por desempenhar um importante papel na descoberta e na confirmação.
Deixem-me, em primeiro lugar, esclarecer o que quero dizer por uma “situação anormal” ou por aquilo que algures chamo “estado de crise”. Já apontei que é uma resposta, por uma parte da comunidade científica, ao conhecimento que tem de uma anomalia na relação, em geral concordante, entre teoria e experimento. Mas não é, sejamos claros, uma resposta exigida por toda e qualquer anomalia. A prática científica corrente abarca sempre inúmeras discrepâncias entre teoria e experimento. Durante o decurso da sua carreira, todo o cientista natural verifica e passa constantemente por anomalias quantitativas e qualitativas que, de modo concebível, podiam, ser prosseguidas, ter resultado em descobertas fundamentais. Mas muitas dessas discrepâncias desaparecem depois de uma pesquisa mais pormenorizada. Podem revelar-se efeitos instrumentais, ou podem resultar de aproximações na teoria previamente não verificadas, ou podem, simples e misteriosamente, deixar de ocorrer quando o experimento se repete sob condições ligeiramente diferentes.
Mas nem sempre se põem as anomalias de lado e, naturalmente, não se deveriam pôr. Se o efeito for particularmente amplo, então é provável que se lhe dedique um projecto de investigação especial. Neste ponto, a discrepância provavelmente desaparecerá com um ajustamento da teoria ou do aparelho; como tivemos ocasião de ver, poucas anomalias resistem por muito tempo a um esforço persistente. Mas esta pode resistir e, se assim for, podemos ter o início de uma “crise” ou “situação anormal” afectando aqueles em cuja área habitual de investigação se encontra a discrepância persistente.
Essas crises podem emergir e ser resolvidas no trabalho de um só indivíduo; mais usualmente, envolverão a maior parte dos que estão empenhados numa especialidade científica particular; ocasionalmente, absorverão a maior parte dos membros de uma profissão científica inteira.
KUHN, Thomas, A Tensão Essencial, 1ª edição, 1989. Lisboa: Edições 70, pp. 249-251

EMOÇÃO ESTÉTICA

O tipo de sentimento que, segundo alguns filósofos, só as obras de arte conseguem despertar em nós e que se distingue dos sentimentos provocados por quaisquer outros objectos. De acordo com esses filósofos, o que nos permite identificar uma verdadeira obra de arte é o facto de ela provocar em nós um tipo peculiar de emoção, a emoção estética. O filósofo e crítico de arte Clive Bell (1881-1964) considera que há nas obras de arte, e só nelas, uma certa propriedade que provoca em nós emoções estéticas. A essa propriedade dá o nome de forma significante. Nem todos os filósofos admitem a existência de emoções estéticas.

sábado, 14 de junho de 2008

ARGUMENTO DA QUESTÃO EM ABERTO

Argumento usado por Moore nos Principhia Ethica (1903) para mostrar que não podemos definir um termo valorativo de maneira que seja equivalente ao conjunto das características que usamos como critério para a sua aplicação. Suponhamos que uma pessoa valoriza todas as coisas que criam felicidade, e só essas coisas. Ainda assim, Moore procura mostrar que isso não é o que a palavra “bem” significa na boca dessa pessoa. O argumento diz-nos que, mesmo que esse seja o critério dessa pessoa, ela terá de reconhecer que faz sentido perguntar se todas as coisas que criam felicidade, e só elas, são boas. Esta é uma questão substancial ou “em aberto”, mas, segundo Moore, não o seria se os dois termos tivessem o mesmo significado.
in BLACKBURN, Simon, Dicionário de Filosofia, 1ª edição, 1997. Lisboa: Gradiva.

FALÁCIA NATURALISTA

Alegada falácia identificada por Moore nos Principhia Ethica (1903), que consiste em identificar um conceito ético com um conceito “natural”, ou com uma descrição das características das coisas que as tornam, hipoteticamente, boas ou más. Assim, se formos utilitaristas, dizer que uma acção é boa significa exactamente o mesmo que dizer que essa acção gera mais felicidade do que uma acção rival. É quase certo que esta identidade de significado é incorrecta, mas os estudos posteriores não confirmaram se os opositores de Moore, particularmente J. S. Mill, a estabeleceram realmente ou se cometeram qualquer erro de raciocínio baseado nela.
in BLACKBURN, Simon, Dicionário de Filosofia, 1ª edição, 1997. Lisboa: Gradiva.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O INTUICIONISMO

Se quisermos tratar a teoria de Bell como mais do que um mero manifesto e levar a sério as suas pretensões de responder à questão “o que é a arte?”, então teremos de enfrentar algumas objecções bastantes sérias. Algumas destas objecções surgem da sua tendência intuicionista. Apesar de não ser um filósofo profissional, Bell foi profundamente influenciado pelo filósofo G. E. Moore. No seu livro Principia Ethica (1903) Moore, defendeu que “bom”, quando usado num sentido moral, era indefinível. Não poderia ser dividido em partes constituintes mais pequenas. A forma como distinguimos boas das más acções ou de acções perversas é através da intuição. Qualquer teoria que tentasse explicar de uma forma geral o que tornava uma acção moralmente boa ou má era afastada por cometer a “falácia naturalista”: o alegado erro de tentar dividir juízos de valor unicamente a partir de factos. Se, por exemplo alguém declarasse que uma acção particular, como dar dinheiro a instituições de caridade, era moralmente boa porque maximizava a felicidade; Moore diria que isto era um non sequitur. Uma vez demonstrada que uma acção maximiza a felicidade, continuaria a ser uma questão em aberto saber se era ou não uma acção moralmente boa. Moore argumentou que não poderíamos deduzir conclusões valorativas de descrições factuais, mas que deveríamos simplesmente reconhecer a virtude moral de certos tipos de acções.
O crítico sensível sabe quando está ou não perante uma forma significante através de algo equivalente a uma intuição, nomeadamente, através de um episódio de emoção estética. Esta emoção estética não pode ser dividida em partes constituintes mais pequenas. É simplesmente a emoção que é sentida na presença das obras de arte. Do mesmo modo, a forma significante não pode ser explicada em função das suas partes. As pessoas sensíveis podem apenas reconhecer essas coisas. Alguém que tentasse deduzir o valor estético de uma pintura a partir de uma simples descrição das suas características objectivamente observáveis estaria a cometer um erro lógico. Descreva-se qualquer característica de uma obra de arte e continuará a ser uma questão em aberto saber se é ou não se é uma boa obra de arte, e, na verdade, se é de todo em todo uma obra de arte.
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte?, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 31-33

quinta-feira, 12 de junho de 2008

FORMA SIGNIFICANTE ii

A teoria de Bell pode ser resumida na expressão “A arte é forma significante”. A teoria é essencialmente a seguinte: alguns objectos, criados por mãos humanas, foram, por algum motivo, dotados com o poder de produzir uma emoção estética nos espectadores sensíveis. Estes objectos estão por todo o lado; e quando estamos interessados neles enquanto obras de arte é irrelevante quando foram feitos, quem os fez ou porquê. O poder para produzir uma emoção estética é inerente à forma significante. A forma significante é uma combinação de linhas, formas e cores em certas relações. Nem toda a forma é significante; mas se um objecto tem uma forma significante, tem-na por causa das relações entre essas linhas, formas e cores. A forma significante, defendeu Bell, é “a única qualidade comum a todas as obras de arte visual”. A representação – o que uma pintura pinta – é irrelevante para a nossa apreciação das obras de arte como arte. Não se trata de Bell achar que existe algo de intrinsecamente errado com a representação; mas antes que o valor artístico da arte visual se encontra noutro lado.
Assim, a arte não é acerca da vida, mesmo quando parece sê-lo. O único conhecimento relevante que o observador precisa de ter é um sentido da forma, da cor e do espaço tridimensional.
Poderá parecer que ao falar da forma significante Bell está simplesmente a descrever e a celebrar as nossas reacções à beleza. As pinturas podem ser belas mesmo quando representam pessoas ou acontecimentos feios; as verdadeiras paisagens podem ser belas apesar de não representarem coisa alguma. Contudo, esta não é a posição de Bell. A emoção estética – que desempenha um papel tão central na sua teoria – não é normalmente sentida perante qualquer outra coisa que não seja a obra de arte. A emoção estética é própria da nossa apreciação da arte, e nos raros casos em que é despertada por objectos naturais isto é de certo modo derivado do seu significado primário. A beleza que reconhecemos e sentimos quando olhamos para as asas de uma borboleta ou para uma flor não é, para Bell, do mesmo tipo que a forma significante de uma pintura.
WARBURTON, Nigel, O que é a Arte? , 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 22-25

AGÊNCIA

As coisas que começam como luxos úteis que nos conferem uma vantagem num mundo em movimento acelerado costumam transformar-se em necessidades. Hoje em dia, todos nos perguntamos como poderíamos viver sem telefones, sem carta de condução, cartões de crédito ou computadores. O mesmo aconteceu em tempos com a linguagem e com a postura intencional. O que começou a ser um Bom Truque transformou-se rapidamente numa necessidade prática da vida humana, à medida que os nossos antepassados foram sendo mais sociais, mais linguísticos. À prática da atribuição exagerada de intenções a coisas com movimento no ambiente chamamos animismo, literalmente, “dar alma” (do Latim anima) à coisa que se move. As pessoas que se dirigem ao seu automóvel com ternura ou amaldiçoam o computador estão a exibir traços fossilizados de animismo. Provavelmente, não levam os seu actos de fala totalmente a sério, mas estão somente a agir de uma forma que as faz sentirem-se melhor e, aparentemente, ser praticada por pessoas de todas as culturas sugere o quão profundamente arreigado na biologia humana se encontra o impulso de tratar as coisas como agentes com crenças e desejos. Mas se, actualmente, os nossos ataques de animismo tendem a ser irónicos e atenuados, houve um tempo em que o desejo do rio de correr para o mar e a intenção benigna ou malévola das nuvens eram tomadas de forma tão literal e séria que podiam transformar-se numa questão de vida ou de morte – por exemplo, para aquelas pobres almas que eram sacrificadas para aplacar os desejos insaciáveis do deus da chuva.
As ninfas, fadas, duendes e demónios que povoam as mitologias de todos os povos são o fruto imaginativo de um hábito hiperactivo de descobrir agência onde quer que algo nos intrigue ou assuste. Este hábito gera maquinalmente uma vasta superpopulação de ideias de agentes, a maior parte das quais é demasiado estúpida para prender a nossa atenção por um momento; somente algumas delas, bem concebidas, ultrapassam o torneio de repetição, sofrendo mutações e aperfeiçoando-se neste processo.
DENNET, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 105-110

terça-feira, 10 de junho de 2008

SEXO

Segundo Freud, o alvo do desejo sexual é “a união dos órgãos sexuais no acto conhecido como cópula, que conduz à libertação da tensão sexual e à extinção temporária do instinto sexual – uma satisfação análoga ao saciar da fome”. Esta imagem científica do desejo sexual originou, na altura própria, o relatório Kinsey, e faz agora parte da mercadoria padronizada do desencantamento.
O que é exactamente o prazer sexual? Assemelha-se ao prazer de comer e beber? Ao de repousar num banho quente? Ao de olhar a nossa criança a brincar? É claramente como todos eles e diferente de todos eles. É diferente do prazer de comer no facto do seu objectivo não ser consumido. É diferente do prazer do banho no facto de envolver ter prazer numa actividade, e na outra pessoa que se junta. É diferente do de olhar a nossa criança a brincar no facto de envolver sensações corporais e uma entrega ao desejo físico. O prazer sexual assemelha-se no entanto, num ponto crucial, ao prazer de olhar algo: tem intencionalidade. Não é apenas uma sensação de formigueiro; é uma resposta a outra pessoa, e ao acto em que se está envolvido com ele ou ela. A outra pessoa pode ser imaginária: mas é na direcção de uma pessoa que os nossos pensamentos estão orientados, e o prazer depende do pensamento.
Esta dependência no pensamento significa que o desejo sexual pode ser enganado, e que cessa quando o engano é conhecido. Apesar de eu ser um pateta se não saltar de um banho relaxante depois de me ter sido dito que o que tomei por água é na realidade ácido, não é por ter cessado de sentir sensações agradáveis na minha pele. No caso do prazer sexual, as descobertas de que é uma mão indesejada que me toca extingue de imediato o meu prazer. Uma mulher que faz amor com o homem que se disfarçou de seu marido não deixa de ser vítima de violação, e a descoberta do seu engano pode levar ao suicídio. Não é simplesmente por o consentimento obtido por fraude não ser consentimento; mas porque a mulher foi violada, no próprio acto que lhe causou prazer.
O que torna um prazer num prazer sexual é o contexto da excitação. E excitação não é o mesmo que intumescência. É uma “propensão para” o outro, um movimento na direcção do acto sexual, que não pode ser separado, nem dos pensamentos em que é fundado nem do desejo a que conduz. A excitação é uma resposta ao pensamento do outro como um agente consciente de si, que está consciente de mim, e que é capaz de ter “intenções” em mim.
SCRUTON, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, 2007. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., pp. 155-157

segunda-feira, 9 de junho de 2008

DIREITOS E DEVERES

Como o próprio Kant notou, a lei moral tem um carácter absoluto. Os direitos não podem ser arbitrariamente ultrapassados, ou comparados com o benefício que se retira da sua ignorância. Os direitos não podem ser arbitrariamente rejeitados, ou cancelados pelos maus resultados da obediência devida. Tenho que respeitar o teu direito, sem olhar a conflitos de interesse, uma vez que só tu podes renunciar a ele ou cancelá-lo. Este é o ponto do conceito – oferecer uma barreira absoluta contra a invasão. Um direito é um interesse a que é dado protecção especial e que não pode ser ultrapassado ou cancelado sem o consentimento da pessoa que o detém. Descrevendo um interesse como um direito elevamo-lo do cálculo do custo e benefício, e colocamo-lo no recinto sagrado do eu.
Do mesmo modo, para existir, o dever tem que ter um carácter absoluto. Um dever só pode ser rejeitado quando cessa de ser um dever – só quando for cumprido ou cancelado. Pode haver conflitos de direitos e conflitos de deveres: mas estes conflitos são dolorosos justamente porque não podem ser resolvidos. Pesamos os direitos uns contra os outros e damos primazia àquele que acreditamos ser o mais sério – como quando tiramos comida que pertence ao João para salvar a vida do esfomeado Henrique. O direito do Henrique a ajuda assume primazia sobre o direito do João à sua propriedade; apesar disso, o direito do João subsiste, e o João é defraudado pelo acto que socorre o Henrique. As questões aqui implícitas são profundas e complexas. Basta dizer que qualquer tentativa para destituir os conceitos de direito e dever do seu carácter absoluto também os destitui da sua utilidade. Devemos deste modo libertar-nos do supremo instrumento oferecido pela razão, e viver com os outros de acordo com isso, respeitando a sua liberdade, a sua individualidade e a soberania sobre a vida que é sua. É isto que significa, em última análise, tratar uma pessoa como um fim em si mesma: designadamente reconhecer-lhe os seus direitos contra nós, e os nossos deveres para com ela, e reconhecer que nem o dever nem o direito podem ser cancelados por qualquer outro bem. Traduzindo a lei moral por outras palavras, declaremos que ela nos diz que as pessoas têm que ser tratadas como sujeitos, não como objectos; e isto significa que os direitos têm que ser respeitados, e os deveres cumpridos.
SCRUTON, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, 2007. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., pp. 135-136

domingo, 8 de junho de 2008

HISTÓRIA INTERNA

Quais são as máximas da nova historiografia interna? Na medida do possível (nunca é totalmente assim, nem a história se poderia escrever, se o fosse), o historiador deveria pôr de lado a ciência que conhece. A sua ciência deveria ser apreendida dos livros e revistas do período que estuda, e deveria dominar estes e as tradições intrínsecas que exibem, antes de abordar os inovadores cujas descobertas ou invenções mudaram a direcção do avanço científico. Ao lidar com inovadores, o historiador deveria tentar pensar como eles. Ao reconhecer que os cientistas são muitas vezes famosos por resultados que não pretenderam, ele deveria indagar que problemas elaboraram e como é que estes se tornaram problemas para ele. Ao reconhecer que uma descoberta histórica raramente é a que foi atribuída por inteiro ao seu autor em textos mais tardios o historiador deveria perguntar o que pensou o seu cientista ter descoberto e o que considerou ele ser a base dessa descoberta. E neste processo de reconstrução, o historiador deveria prestar atenção particular aos erros evidentes do seu homem, não por si mesmos, mas porque eles revelam muito mais o espírito em acção do que as passagens em que um cientista parece registar um resultado ou um argumento que a ciência moderna ainda detém.
KUHN, Thomas, A Tensão Essencial, 1989. Lisboa: Edições 70, pp. 74-75

sábado, 7 de junho de 2008

A ORIGEM DA RELIGIÃO

Talvez o leitor ou a leitora acreditem que a sua religião passou a existir, quando a verdade fundamental foi revelada por Deus a alguém, que em seguida a transmitiu a outras pessoas. Continua a prosperar actualmente, porque o leitor ou a leitora e as outras pessoas da sua fé sabem que é a verdade e que Deus vos abençoa e anima a manterem a vossa fé. É tão simples como isso para si. E por que é que todas as religiões existem? Se estas pessoas estão simplesmente erradas, por que será que as suas crenças não se desmoronam tão prontamente como as falsas ideias sobre métodos de cultivo ou as práticas de construção obsoletas? Desmoronar-se-ão a seu tempo, pensa talvez, e deixarão de pé somente a verdadeira religião, a sua religião. Indubitavelmente, tem alguma razão em pensar assim. A acrescentar às principais religiões do mundo actual – aqueles cujos fiéis atingem as centenas ou milhares de milhões – existem milhares de religiões reconhecidas com um número inferior de fiéis. Surge duas ou três religiões todos os dias e o seu prazo de duração é, tipicamente, de menos de uma década. Não existe qualquer forma de saber quantas religiões distintas se desenvolveram durante algum tempo, nos últimos dez ou quinze mil anos, e cujos vestígios se perderam para sempre, mas talvez o seu número ascenda aos milhões.
A história confirmada de algumas religiões remonta a vários milénios – mas somente se formos generosos na definição de fronteira. A Igreja Mórmon tem menos de duzentos anos, como o seu nome oficial nos recorda: Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. O Protestantismo tem menos de quinhentos anos, a religião islâmica menos de mil e quinhentos, o Cristianismo menos de dois mil. O Judaísmo nem chega a ter o dobro dessa idade e os Judaísmos dos nossos dias sofreram uma evolução significativa desde o Judaísmo mais antigo identificável, embora as suas variedades não sejam nada, quando comparadas com o crescimento disparado de variações originadas pelo Cristianismo, nos dois últimos milénios.
Biologicamente falando, estes períodos de tempo são curtos. Nem sequer são longos, quando comparados com a idade de outras características da cultura humana. A escrita tem mais de cinco mil anos, a agricultura mais de dez mil e a linguagem – quem sabe? – talvez tenha “somente” quarenta mil anos ou seja dez ou vinte vezes mais velha do que isso. Será a linguagem mais antiga que a religião? Independentemente da forma como datemos o seu início, a linguagem é muito, muito mais antiga do que qualquer religião existente ou até mesmo do que qualquer religião da qual tenhamos qualquer conhecimento histórico ou arqueológico. Os indícios arqueológicos de religião mais antigos são os cemitérios Cro-Magnon na República Checa, altamente estruturados e com cerca de vinte e cinco mil anos.

DENNET, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 93-94

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ALGUNS MITOS SOBRE A CIÊNCIA MODERNA

O que é que havia de novo, se é que havia, a propósito do movimento experimental do século XVII? Alguns historiadores sustentaram que a própria ideia de basear a ciência em informação adquirida através dos sentidos era nova. Aristóteles, de acordo com esta visão, acreditava que as conclusões científicas podiam deduzir-se de primeiros princípios axiomáticos; até ao fim do renascimento, os homens não conseguiram subtrair-se à sua autoridade o suficiente para estudarem a natureza em vez dos livros. Estes resíduos da retórica do século XVII são, contudo, absurdos. Os escritos metodológicos de Aristóteles contêm muitas passagens que insistem tanto na necessidade da observação cuidadosa como os escritos de Francis Bacon. Randall e Crombie isolaram e estudaram uma importante tradição metodológica medieval que, desde o século XIII até princípios do século XVII, elaborou regras para o estabelecimento de conclusões sólidas a partir da observação e da experimentação. As Regulae de Descartes e o Novum Organon de Bacon devem muito a essa tradição. Não era novidade uma filosofia empírica da ciência ao tempo da Revolução Científica.
KUHN, Thomas, A Tensão Essencial, 1989. Lisboa: Edições 70, pp. 74-75

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A ANÁLISE DE CAUSA DE ARISTÓTELES

Até cerca de 1600, a principal tradição em física era aristotélica e a análise de causa de Aristóteles era também dominante. No entanto, esta última continuou a usar-se muito depois da primeira ter sido rejeitada e, por conseguinte, merece um exame separado no início. De acordo com Aristóteles, toda a mudança, incluindo a vinda à existência, tinha quatro causas: material, eficiente, formal e final. Estas quatro esgotavam os tipos de respostas que se podiam dar a uma solicitação sobre a explicação da mudança. No caso de uma estátua, por exemplo, a causa material da sua existência é o mármore; a causa eficiente é a força exercida sobre o mármore pelos instrumentos do escultor; a causa formal é a forma idealizada do objecto acabado, presente desde o início na mente do escultor; e a causa final é o aumento do número de objectos belos acessíveis aos membros da sociedade grega.
Em princípio, qualquer mudança possuía quatro causas, uma de cada tipo, mas, na prática, a espécie de causa invocada para explicação efectiva variava grandemente de campo para campo. Ao considerarem a ciência física, os aristotélicos em geral só faziam uso de duas causas, formal e final, e estas habitualmente fundiam-se numa. As mudanças violentas, que interrompiam a ordem natural do cosmos, atribuíam-se decerto a causas eficientes, a impulsos e puxões, mas as mudanças desta espécie consideravam-se como incapazes de mais explicações e, assim, ficavam fora da física. Esta lidava apenas com a restauração e a manutenção da ordem natural, que dependia só das causas formais. Assim, as pedras caíam para o centro do universo porque a sua natureza ou forma só se poderia inteiramente realizar nessa posição; o fogo subia para a periferia pela mesma razão; e a matéria celeste realizava a sua natureza rodando regular e eternamente no lugar apropriado.
KUHN, Thomas, A Tensão Essencial, 1989. Lisboa: Edições 70, pp. 54-55

LIVRE-ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE

Imagina-te a descer por uma rua, metido na tua própria vida, enquanto és subitamente confrontado por um assaltante. Sem consideração pelos teus desejos, ou sentimentos na questão, ele deita-te ao chão, tira-te a carteira, e afasta-se calmamente enquanto tu ficas a tratar das tuas feridas. Se existe tal coisa como uma acção livre, esta foi uma. Tu não te limitas a condenar o assaltante; tu e outros procurarão puni-lo, e sentir-se-ão zangados e ressentidos enquanto ele estiver livre. Ele é responsável pela tua perda, pelas tuas feridas, e pela ruína da tua paz de espírito: ele agiu deliberadamente ao causar-te sofrimento, e não se importou senão com o seu proveito próprio.
Imagina um caso ligeiramente diferente. Entregaste o teu filho por um dia ao cuidado de um amigo, tendo sido chamado a outro sítio por um trabalho urgente e sendo a criança demasiado pequena para cuidar de si. Sem má intenção, mas bebendo mais do que devia, o teu amigo deixa a criança entregue a si própria, tendo como resultado ela ser atraída até à estrada e ferida por um carro que passa. Nesta circunstância ninguém agiu deliberadamente para causar o ferimento à criança. Mas o teu amigo foi ainda assim responsável. A negligência dele foi o factor chave na catástrofe, uma vez que negligenciando o seu dever tornou o acidente mais provável. Dizer que ele negligenciou o seu dever é dizer que há coisas que ele deveria ter feito e que deixou por fazer. Estás zangado e ressentido, censura-lo; e atribuis-lhe as culpas pelo acidente à sua porta.
Imagina ainda um outro caso. Pediste a alguém para olhar pela tua criança, o que essa pessoa faz escrupulosamente até que é subitamente chamada por um grito de aflição vindo da casa da porta ao lado. Enquanto ele está ausente, a ajudar o seu vizinho, que teria morrido sem o seu apoio, a tua criança deambula até à estrada e é ferida. Primeiro declaras a responsabilidade do teu amigo, estás zangado e recriminador; mas ficando a saber de todos os factos, ficas a ter o conhecimento de que ele agiu correctamente, dadas as circunstâncias, e que não é portanto de culpar.
Os três casos ilustram a ideia, fundamental a todas as relações humanas. Mostram que uma pessoa pode ser declarada responsável, não apenas por aquilo que faz deliberadamente, mas também pelas consequências daquilo que não faz. E mostram que a responsabilidade é mitigada por desculpas e aumentada pela negligência ou pela indiferença auto-centrada. Se se estudar a lei da negligência ou o conceito geral da “responsabilidade diminuída”, ver-se-á que a distinção absoluta que podemos ser tentados a desenhar, entre acções livres e não livres, não é mais do que um verniz filosófico numa distinção que não é de todo absoluta, mas uma distinção de grau. As pessoas são a matéria de uma constante contabilidade moral, e as nossas atitudes em direcção a elas são moldadas por isso. Este é o âmago da prática social, o qual confere ao conceito de liberdade o seu sentido.
SCRUTON, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, 2007. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., pp. 122-123