quinta-feira, 31 de julho de 2008


O Sophia vai de férias.
Desejamos aos nossos leitores umas óptimas férias.
Até já...

O QUE É O EXISTENCIALISMO?

Mas o que é então o Existencialismo? Sartre define-o, como vimos, a partir do princípio de que, não existindo Deus, “há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por um conceito”, sendo este ser “o homem, ou, como diz Heidegger, a “realidade humana”. Para Sartre, portanto, o homem primeiro existe e depois é,; primeiro age e depois define-se a partir de tal acção. Não tem o homem pois uma “natureza” dada previamente, não se define antes de existir, mas a sua definição, o que ele é, a sua “essência”, será o que ele fizer, será o que ele se constrói, existindo. O homem, pois, faz-se ou é, genericamente, a “soma” dos seus actos. Digamos antes de mais que Heidegger recusou essa interpretação do seu pensar – uma vez que Sartre o liga à responsabilidade daquilo que ele próprio, Sartre, expõe. Tal pensar deduziu-se da afirmação de que o “que é” desse ente até onde pode falar-se dele, tem de conceber-se partindo do seu ser (“existência”). Ou de outro modo, “este ente é, no seu ser, determinado pela existência”. Quer dizer, pois: “a existência precede a essência”. Simplesmente Heidegger recusa a interpretação de “existência” dada por Sartre (o existir, o ser existente) e atribui-lhe apenas o radical sentido de ek-sistência – o “estar fora de”, o “ser- aí” (Da-sein), a estrutura ek-stática do “eu”. Dizer pois que “a existência precede a essência” significaria em Heidegger apenas o que é o manifestar-se, o estar-fora-de-si do Dasein, que este Dasein originariamente define. Aliás, para sermos mais rigorosos, a “essência” e “existência” do Dasein (digamos, do homem) são, segundo Heidegger, elementos que se implicam, originando um círculo inevitável, mas não propriamente “vicioso”. Porque faz parte da “essência” o manifestar-se, o estar fora, o ser ek-sitência; mas na ek-sistência implica-se o que o homem é, ou seja, a sua “essência”, porque é esse “estar fora” que constitui o que o define.
Vergílio Ferreira
SARTRE, Jean-Paul; FERREIRA, Vergílio, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 59-60

quarta-feira, 30 de julho de 2008

AS DISCIPLINAS DA FILOSOFIA ii

Parte II
O grupo seguinte de disciplinas da filosofia são menos centrais do que as anteriores:
Filosofia da religião
Filosofia política
Estética e filosofia da arte
Filosofia da ciência
Filosofia da mente
Filosofia da linguagem

Afirma-se que uma disciplina como a ética, por exemplo, é mais central do que a filosofia política, por exemplo, porque de algum modo a filosofia política estuda problemas éticos específicos da vida numa sociedade politicamente organizada, tal como a filosofia da ciência estuda aspectos metafísicos, lógicos e epistemológicos da ciência. Evidentemente, a distinção entre estes dois grupos de disciplinas é algo vaga: não há critérios de diferenciação que permitam traçar uma fronteira nítida. Mas a ausência de fronteira clara não é a ausência clara de fronteira.
A filosofia da religião estuda temas como os seguintes: argumentos a favor e contra a existência de Deus, como os argumentos ontológico, do desígnio ou cosmológico, e o problema do mal; a racionalidade e a epistemologia da fé; a natureza de Deus e as suas propriedades; filosofia da linguagem religiosa; a ideia de alma e de imortalidade. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são os argumentos a favor de Deus e as suas críticas, o problema do mal e o fideísmo.
A filosofia política estuda o modo como podemos viver em sociedade e o modo como devemos fazê-lo, o que levanta problemas como os seguintes: a justificação do estado e da obrigação política; a justificação do anarquismo; a natureza da justiça; a justificação da democracia; a igualdade; o liberalismo político, a liberdade e os mercados livres; a propriedade privada; os direitos naturais; o problema da punição. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são o problema da justificação do estado, as teorias contratualistas e a liberdade.
A estética e a filosofia da arte são subtilmente distintas, mas hoje em dia estuda-se sobretudo a última. A estética estuda a natureza do juízo estético em geral; a filosofia da arte estuda problemas como a definição de obra de arte e o valor da arte. O tema introdutório mais comum no que respeita a esta disciplina é a definição de obra arte, estudando-se em geral as várias teorias que respondem a este problema.
A filosofia da ciência estuda aspectos epistemológicos, metafísicos e lógicos relacionados com as ciências em geral, incluindo as ciências da natureza e as ciências humanas. Eis alguns dos temas estudados nesta disciplina: a relação entre teoria e observação; a confirmação de teorias científicas; a interpretação da probabilidade; a noção de explicação científica e de leis da natureza; realismo e anti-realismo científicos; incomensurabilidade de teorias; o estatuto dos inobserváveis; unidade e diversidade das ciências. A filosofia das ciências tem dado origem a várias subdisciplinas especializadas: filosofia da biologia, filosofia da física, filosofia das ciências humanas e filosofia da história. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são a relação entre observação e teoria, o problema da confirmação (indutivismo e falsificacionismo), realismo e anti-realismo científicos, e o problema da demarcação (entre ciências e não ciências).
A filosofia da mente estuda problemas metafísicos e epistemológicos relacionados com os fenómenos mentais. Eis alguns dos temas estudados nesta disciplina: a relação mente-corpo — fisicalismo, dualismo, funcionalismo; o problema da causalidade mental; a existência de mentes alheias (o problema do solipsismo); o valor da introspecção e a autoridade da primeira pessoa com respeito aos seus estados mentais; os fenómenos mentais: consciência e experiência, qualia, conteúdo perceptivo; intencionalidade e atitudes proposicionais; internalismo e externalismo mental; o papel e a natureza das emoções; a natureza da acção; acrasia. Tanto a filosofia da linguagem como a metafísica e a filosofia da psicologia estão intimamente relacionadas com a filosofia da mente. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são as teorias fisicalistas, dualistas e funcionalistas sobre o problema da mente-corpo e o problema do solipsismo.
A filosofia da linguagem estuda todos os problemas relacionados com o funcionamento da linguagem e o fenómeno do significado linguístico. Eis alguns dos temas desta disciplina: a natureza do significado — significado, verdade e realismo, indeterminação; pragmática; a natureza do conhecimento do significado e das regras linguísticas; o problema da referência: indexicais e demonstrativos, nomes próprios, descrições definidas, quantificação e anáfora; atitudes proposicionais; sentido, força e modo; advérbios e quantificação sobre acontecimentos; a distinção entre diferentes línguas, linguagens e idiolectos; o significado das metáforas. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são as teorias da referência e as descrições definidas.
Disciplinas decididamente menos centrais e mais especializadas, sendo muitas vezes subdisciplinas das anteriores, são as seguintes:
Filosofia da acção e filosofia da psicologia — Partes próprias da filosofia da mente, da filosofia da ciência e da metafísica.
Filosofia do direito — Parte própria da filosofia política e da ética.
Filosofia das ciências humanas — Parte própria da filosofia da ciência.
Filosofia da matemática — Parte própria da metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem.
A história da filosofia está sempre presente no estudo das diferentes disciplinas filosóficas sumariamente apresentadas acima. Ao estudar as diferentes disciplinas filosóficas, verifica-se que muitos dos problemas, teorias e argumentos foram originalmente estudados por autores clássicos como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Hume, Leibniz, Kant, Russell, Frege, Wittgenstein, etc. Por exemplo, ao estudar ética deontológica discutem-se ideias clássicas de Kant, mas também as contemporâneas; ao estudar o problema da definição de conhecimento discutem-se ideias de Platão, mas também as ideias contemporâneas.
No estudo directo da história da filosofia discute-se explicitamente o pensamento dos autores clássicos mais importantes, dos pré-socráticos à actualidade. O estudo introdutório da história da filosofia é também tematicamente orientado. Dado que não se pode ter a veleidade de estudar todos os aspectos do pensamento de todos os principais filósofos clássicos, é comum escolher as contribuições filosóficas mais significativas dos principais filósofos, estudando-se apenas esses aspectos. Isto, por sua vez, implica a capacidade para transmitir ao estudante os problemas, as teorias e os argumentos filosóficos que estão em causa e que tornam essas contribuições filosoficamente significativas. Por exemplo, para estudar o Teeteto, de Platão, é necessário explicar, tirando partido do entendimento que hoje temos das coisas, o que é o problema da definição de conhecimento. É por esta razão que não se pode estudar história da filosofia sem dominar a própria filosofia: a filosofia é prévia à sua história. E como deveria ser evidente, estudar um problema do ponto de vista do próprio autor implicaria nunca avançar na compreensão das coisas; seria como estudar a poesia de Camões da perspectiva de Camões, sem todo o conhecimento que entretanto ganhámos da poesia: um exercício fútil.
Desidério Murcho
Retirado de http://www.criticanarede.com/

terça-feira, 29 de julho de 2008

AS DISCIPLINAS DA FILOSOFIA


Parte I
No que respeita à formulação de um programa de estudos, tanto para o ensino secundário como para o superior, exige-se, da parte do professor, uma visão abrangente das diferentes disciplinas da filosofia. Só essa visão permite hierarquizar quer as disciplinas quer as matérias obedecendo ao princípio simples de começar pelo mais central e intuitivo, avançando para o mais especializado e menos intuitivo. Evidentemente, tal hierarquização terá sempre um certo grau de vagueza ou oscilação, e estará sempre sujeita a revisão, de acordo com o progresso da investigação. Por exemplo, a filosofia da mente, secundária no princípio do séc. XX, assume cada vez mais importância hoje em dia. E a tese metodológica da prioridade da linguagem, que foi tão popular na filosofia de meados do séc. XX, e que tanta proeminência deu à filosofia da linguagem, é hoje recusada pela maior parte dos filósofos.
Em qualquer área de estudos, o estudante e o investigador carecem de orientação na selva luxuriante de livros e artigos existentes. Evidentemente, tal orientação, para ser de qualidade, deverá basear-se em ampla informação da parte dos professores, e deverá ser tão objectiva quanto possível. Por exemplo, só porque a área de especialização de um professor é a metafísica da modalidade, ele não deve impor aos estudantes esta área de estudos nem os seus autores preferidos, como se fossem centrais e como se a sua disciplina favorita fosse a mais importante. Quando este tipo de falta de seriedade educativa acontece, os planos de estudos tornam-se batalhas campais, tentando cada professor, por todas as vias, impor as suas preferências. O resultado são planos de estudos aparentemente aleatórios, como acontece com os programas do ensino secundário, não obedecendo a quaisquer princípios científicos ou didácticos, mas apenas aos gostos pessoais dos seus autores, ou ao facto de alguém que é nosso amigo nos ter telefonado na véspera a «sugerir» que também o seu autor preferido, acabado de reeditar, fosse contemplado.
As disciplinas mais centrais e gerais da filosofia são as seguintes:
Metafísica
Epistemologia
Ética
Lógica

A filosofia é uma disciplina muito vasta e o espaço não permite que descrevamos, nem em geral, a maior parte dos problemas, teorias e argumentos das suas diferentes disciplinas. O que se segue é uma mera sinopse.
A metafísica estuda problemas relacionados com os aspectos mais gerais da estrutura da realidade, nomeadamente os seguintes: a natureza da verdade; a independência do mundo relativamente à nossa experiência; a natureza da objectividade e da subjectividade; a identidade pessoal; o livre-arbítrio; o sentido da vida; a natureza da modalidade e a existência de mundos possíveis; a identidade, a persistência e a substância dos objectos; acontecimentos e substâncias; universais e particulares; a noção de causalidade e de lei da natureza; problemas conceptuais do espaço e do tempo. A ontologia é a parte da metafísica que estuda a existência ou o que há: que tipo de existência têm os números, ou os universais? Que tipo de existência tem um acontecimento ou uma proposição? Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à metafísica são a identidade pessoal, o livre-arbítrio e a persistência dos objectos.
A epistemologia estuda problemas relacionados com o conhecimento em geral, nomeadamente os seguintes: a análise de conhecimento como crença verdadeira justificada; a estrutura da justificação cognitiva (fundacionalismo, coerentismo, externalismo, teorias causais, etc.); o problema do cepticismo; fontes de conhecimento (conhecimento a priori e a posteriori, indução, testemunho, etc.). Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à epistemologia são a análise de conhecimento, as teorias da justificação (fundacionismo e coerentismo) e o problema do cepticismo.
A ética (ou a filosofia moral) estuda problemas relacionados com o modo como devemos viver e com o que devemos valorizar. A ética abrange três áreas ou subdisciplinas distintas: a metaética, a ética normativa e a ética aplicada. A metaética estuda problemas mais abstractos, relacionados com a natureza da própria ética; a ética normativa estuda diferentes sistemas éticos; e a ética aplicada estuda problemas práticos, como o aborto ou a eutanásia. Eis alguns problemas da ética em geral: o egoísmo (ético e psicológico); a Regra de Ouro; a natureza da normatividade e da razão prática; a objectividade do juízo ético; responsabilidade moral, deliberação e decisão; acrasia; relativismo ou realismo éticos; a incomensurabilidade de valores. Algumas das teorias normativas mais importantes são a teoria das virtudes, o utilitarismo e a ética deontológica. Alguns dos problemas mais estudados em ética aplicada são os seguintes: o aborto, a eutanásia, o estatuto moral dos animais não humanos, a ética do meio ambiente e o problema ético da pobreza no mundo. A ética aplicada deu entretanto origem a várias subdisciplinas próprias, como a ética empresarial, a ética jornalística, a ética médica, a bioética em geral, a ética universitária, etc. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à ética prática são o aborto, a eutanásia e os direitos dos animais; no que respeita à ética normativa, esses temas são o utilitarismo, a ética de Kant e o egoísmo; e no que respeita à metaética o tema mais comum é o relativismo ético.
A lógica estuda e sistematiza a argumentação válida. A lógica tornou-se uma disciplina praticamente autónoma em relação à filosofia, graças ao seu elevado grau de precisão e tecnicismo. Hoje em dia, é uma disciplina que recorre a métodos matemáticos, e os lógicos contemporâneos têm em geral formação matemática. Todavia, a lógica elementar que se costuma estudar nos cursos de filosofia é tão básica como a aritmética elementar e não tem elementos matemáticos. A lógica elementar é usada como instrumento pela filosofia, para garantir a validade da argumentação.
Quando a filosofia tem a lógica como objecto de estudo, entramos na área da filosofia da lógica, que estuda os fundamentos das teorias lógicas e os problemas não estritamente técnicos levantados pelas diferentes lógicas. Hoje em dia há muitas lógicas além da teoria clássica da dedução de Russell e Frege (como as lógicas livres, modais, temporais, paraconsistentes, difusas, intuicionistas, etc.), o que levanta novos problemas à filosofia da lógica.
A filosofia da lógica distingue-se da lógica filosófica, que não estuda problemas levantados por lógicas particulares, mas problemas filosóficos gerais, que se situam na intersecção da metafísica, da epistemologia e da lógica. São problemas centrais de grande abrangência, correspondendo à disciplina medieval conhecida por «Lógica & Metafísica», e abrangendo uma parte dos temas presentes na própria Metafísica, de Aristóteles: a identidade de objectos, a natureza da necessidade, a natureza da verdade, o conhecimento a priori, etc. Precisamente por ser uma «subdisciplina transdisciplinar», o domínio da lógica filosófica é ainda mais difuso do que o das outras disciplinas. Para agravar as incompreensões, alguns filósofos chamam «lógica filosófica» à filosofia da lógica (e vice-versa). Em qualquer caso, o importante é não pensar que a lógica filosófica é um género de lógica, a par da lógica clássica, mas «mais filosófica»; pelo contrário, e algo paradoxalmente, a lógica filosófica, não é uma lógica no sentido em que a lógica clássica é uma lógica, isto é, no sentido de uma articulação sistemática das regras da argumentação válida.
A lógica informal estuda os aspectos da argumentação válida que não dependem exclusivamente da forma lógica. O tema introdutório mais comum no que respeita à lógica é a teoria clássica da dedução (lógica proposicional e de predicados, incluindo formalizações elementares da linguagem natural); a lógica aristotélica é por vezes ensinada, a nível universitário, como complemento histórico e não como alternativa à lógica clássica.
Desidério Murcho

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O QUE É A FILOSOFIA? ii

Parte ii
Porquê estudar filosofia?
Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir quaisquer conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é virtualmente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.
Qual é afinal a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes de fazer o que quer que seja, paralisados por fazer demasiadas perguntas. Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.
A vida examinada
Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz com que algumas acções sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.
A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar. Persistir numa exis­tência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos jus­tificadamente confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficien­temente bem até agora; mas esta confiança pode ser completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharem precisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se baseia podem ser inteiramente sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza disso.
Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos a nossa vida, podemos estar a empobrecê‑la ao recusarmo‑nos a usar a nossa capacidade de pensar. Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente inquietante colocar este tipo de questões fundamentais: podem sentir‑se satisfeitas e confortáveis com os seus preconceitos. Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de encontrar respostas a questões filosóficas que representem um desafio.
Aprender a pensar
Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do pensamento filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar os ar­gumentos a favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser aplicadas noutras áreas da vida. Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as suas aptidões em profissões tão diferentes quanto o di­reito, a informática, a consultoria de gestão, o funciona­lismo público e o jornalismo ‑ áreas onde a clareza de pensamento é um grande trunfo. Os filósofos usam tam­bém a perspicácia que adquirem acerca da natureza da existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foram também romancistas, críticos, poe­tas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.
A filosofia é difícil?
A filosofia é muitas vezes descrita como uma disci­plina difícil. Há vários tipos de dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.
Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos pro­blemas com os quais os filósofos profissionais lidam exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento abstracto. Contudo, o mesmo se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a esse respeito, a filosofia não é diferente da física, da teoria literária, da informática, da geologia, da matemática ou da história. Tal como acontece com estas e outras áreas de estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmente original na área respectiva não deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o conhecimento dos avanços dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.
Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar claramente as suas próprias ideias. Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em atingir uma pequeníssima audiência de leitores especializados; outras vezes, porque usam uma gíria desnecessariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não estão familiarizados. Os termos especializados podem ser úteis para evitar explicar certos conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos usam expressões latinas apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis. Um parágrafo cheio de palavras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma desconhecida pode intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada por eles. Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.
Os limites do que a filosofia pode fazer
Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam que a filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam que a filosofia lhes irá revelar o sen­tido da vida e explicar todas as facetas das nossas com­plexas existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões fundamentais rela­cionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma imagem acabada, se é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alter­nativa ao estudo da arte, da história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da política e da ciência. Estas diferentes disciplinas concentram‑se em diferen­tes aspectos da vida humana e oferecem diferentes tipos de esclarecimentos. Alguns aspectos da vida das pessoas resistem à análise filosófica e até talvez a qual­quer outro tipo de análise. É por isso importante não esperar demasiado da filosofia.
WARBURTON, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, 1ª edição, 1998. Lisboa: Gradiva, pp. 19-27

domingo, 27 de julho de 2008

O QUE É A FILOSOFIA?

Parte I
O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode mesmo assim ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a filosofia.
A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.
Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas - uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.
A filosofia e a sua história
Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.
Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores.
WARBURTON, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, 1ª edição, 1998. Lisboa: Gradiva, pp. 19-27

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O SIGNIFICADO FILOSÓFICO DA ALEGORIA DA CAVERNA

Platão escreveu esta alegoria há mais de dois mil anos mas ela permanece importante para nós porque nos diz muito sobre o que a filosofia é.
Em primeiro lugar, na alegoria, a filosofia corresponde a uma actividade, a uma viagem que nos deve conduzir do fundo da caverna em direcção à luz.
Sendo uma actividade, a filosofia não é um simples conjunto de teorias. É evidente que os filósofos produziram muitas teorias sobre muitas questões fundamentais. Mas não se trata em filosofia de estudá-las para simplesmente as memorizar. Vais estudá-las, em vez disso, para aprender como se faz filosofia. Ao compreenderes como alguns dos melhores filósofos fizeram filosofia, ao considerares os problemas a que tentaram responder com as suas teorias e o modo como construíram essas teorias terás ao teu dispor um instrumento precioso para saber o que é filosofar e filosofares.
Em segundo lugar, a alegoria de Platão mostra-nos que a filosofia (sair da caverna e regressar a esta) é uma actividade difícil. Porquê? Porque a viagem que nos faz subir da caverna em direcção à luz exterior implica questionar as nossas crenças mais básicas, crenças que nos parecem dados adquiridos e incontestáveis. Mais claramente, é difícil porque ao questionarmos as nossas crenças fundamentais podemos ter de enfrentar a incompreensão dos outros, das pessoas que se satisfazem com ideias feitas. É difícil também porque exige disciplina intelectual, esforço crítico e autocrítico. Vamos por partes.
Dispormo-nos a examinar as nossas crenças mais básicas não é tarefa fácil porque pode fazer-nos chegar a conclusões que a maioria dos membros da sociedade desaprovam e porque exige uma atitude crítica que lança a dúvida sobre o que nos habituámos a considerar verdadeiro. Por exemplo, a filosofia examina as crenças básicas nas quais se apoia a religião quando pergunta Será que Deus existe? Que razões temos para acreditar nisso? Há uma vida para além da morte? Também questiona as ideias fundamentais que constituem os pressupostos das nossas relações sociais ao perguntar O que é uma sociedade justa? Será que devemos obedecer a quem nos governa? O Estado é uma instituição necessária? Estas questões podem ser consideradas como desafios às ideias estabelecidas e falta de respeito pelo que a tradição definiu. Basta pensares nos problemas que enfrentam os que defendem, por exemplo, a ideia de direitos dos animais.
A atitude filosófica é também difícil porque exige que pensemos criticamente e rigorosamente acerca de crenças fundamentais que nos foram transmitidas e que aceitámos de forma acrítica. Com efeito, em muitos casos adquirimos ideias como quem contrai gripe, por contágio. À semelhança do vírus da gripe, as crenças estabelecidas parecem fazer parte do nosso ambiente e respiramo-las quase sem dar por isso. Assim, as crenças que eram da nossa cultura tornam-se as nossas crenças. Até podem ser verdadeiras e excelentes, mas como havemos de o saber se as interiorizámos de forma acrítica, sem pensar? Ao examinarmos as ideias básicas, nossas e dos outros, que se transformaram em hábitos mentais, devemos como filósofos perguntar: O que justifica essas crenças? Que razões temos para supor que são verdadeiras? Podemos definir a filosofia como a actividade que critica e rigorosamente examina as razões subjacentes às nossas crenças fundamentais. Sair da caverna é procurar encontrar crenças fundamentais que sejam racionalmente justificadas.
Velasquez, Manuel, Philosophy, A text with readings, Wadsworth, 1999, pp 8-9.
Retirado de O Laboratório do Pensamento

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A ALEGORIA DA CAVERNA


Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
– Estou a ver – disse ele.
– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
– Semelhantes a nós – continuei -. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
– Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?
– É forçoso.
– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?
– Por Zeus, que sim!
– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.
– É absolutamente forçoso – disse ele.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
– Muito mais – afirmou.
– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
– Seria assim – disse ele.
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?
– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
– Pois não!
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
– Necessariamente.
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?
– Com certeza.
– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo "servir junto de um homem pobre, como servo da gleba", e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.
– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu -. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
– Com certeza.
– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão ? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam ?
– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.
Platão, A República, Livro VII, 514a- 517c, 5ª edição, 2007. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

terça-feira, 22 de julho de 2008

O VALOR DA FILOSOFIA ii

Parte II
Na verdade, o valor da filosofia tem de ser procurado sobretudo na sua própria incerteza. O homem que não tem a mais pequena capacidade filosófica, vive preso aos preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das convicções que se formaram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento reflectido da sua razão. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os objectos vulgares não levantam quaisquer questões e as possibilidades invulgares são desdenhosamente rejeitadas. Assim que começamos a filosofar, pelo contrário, verificamos, como vimos nos capítulos iniciais, que mesmo os objectos mais comuns levam a problemas a que apenas podemos dar respostas muito incompletas. Embora a filosofia seja incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são, a filosofia aumenta muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca viajaram na região da dúvida libertadora e, ao mostrar as coisas que são familiares com um aspecto invulgar, mantém viva a nossa capacidade de admiração.
Para além da sua utilidade na revelação de possibilidades insuspeitadas, a filosofia adquire valor ― talvez o seu principal valor ― por meio da grandeza dos objectos que contempla e da libertação de objectivos pessoais e limitados que resulta desta contemplação. A vida do homem instintivo está fechada no círculo dos seus interesses privados. A família e os amigos podem estar incluídos, mas o mundo exterior não é tido em conta excepto na medida em que possa auxiliar ou impedir o que entra no círculo dos desejos instintivos. Numa vida assim há algo de febril e limitado, comparada com a qual a vida filosófica é calma e livre. O mundo privado dos interesses instintivos é um mundo pequeno no meio de um mundo grande e poderoso que, mais cedo ou mais tarde, reduzirá o nosso mundo privado a ruínas. A menos que consigamos alargar os nossos interesses de modo a incluir todo o mundo exterior, somos como uma guarnição numa fortaleza sitiada, que sabe que o inimigo impede a sua fuga e que a rendição final é inevitável. Numa vida assim não há paz, mas uma luta constante entre a persistência do desejo e a incapacidade da vontade. De uma forma ou doutra, se queremos que a nossa vida seja grande e livre, temos de fugir desta prisão e desta luta.
Assim, resumindo a nossa discussão sobre o valor da filosofia, a filosofia deve ser estudada, não por causa de quaisquer respostas exactas às suas questões, uma vez que, em regra, não é possível saber que alguma resposta exacta é verdadeira, mas antes por causa das próprias questões; porque estas questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual e diminuem a certeza dogmática que fecha a mente à especulação; mas acima de tudo porque, devido à grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também se eleva e se torna capaz da união com o universo que constitui o seu mais alto bem.
Tradução de Álvaro Nunes
Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, Oxford University Press, Oxford, 2001, pp. 89-94
Retirado de http://www.criticanarede.com/

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O VALOR DA FILOSOFIA

Parte I
Tendo agora chegado ao fim da nossa análise breve e muito incompleta dos problemas da filosofia, será vantajoso que, para concluir, consideraremos qual é o valor da filosofia e porque deve ser estudada. É da maior necessidade que examinemos esta questão, tendo em conta que muitas pessoas, sob a influência da ciência ou de afazeres práticos, se inclinam a duvidar de que a filosofia seja algo melhor do que frivolidades inocentes mas inúteis, distinções demasiado subtis e controvérsias sobre matérias acerca das quais o conhecimento é impossível.
Esta visão da filosofia parece resultar em parte de uma concepção errada dos fins da vida e em parte de uma concepção errada do género de bens que a filosofia procura alcançar. A física, por meio de invenções, é útil a inúmeras pessoas que a ignoram completamente, pelo que o seu estudo é recomendado, não apenas, ou principalmente, devido ao efeito no estudante, mas sim devido ao efeito na humanidade em geral. A filosofia não tem esta utilidade. Se o estudo da filosofia tem algum valor para os que não estudam filosofia, tem de ser apenas indirectamente, por intermédio dos seus efeitos na vida daqueles que a estudam. Portanto, se o valor da filosofia deve ser procurado em algum lado, é principalmente nestes efeitos.
Mas mais, se não queremos que a nossa tentativa para determinar o valor da filosofia fracasse, temos de libertar primeiro as nossas mentes dos preconceitos daqueles a que se chama erradamente homens "práticos". O homem "prático", como se usa frequentemente a palavra, é aquele que reconhece apenas necessidades materiais, que entende que os homens devem ter alimento para o corpo, mas esquece-se da necessidade de fornecer alimento à mente. Mesmo que todos os homens vivessem desafogadamente e que a pobreza e a doença tivessem sido reduzidas ao ponto mais baixo possível, ainda seria necessário fazer muito para produzir uma sociedade válida; e mesmo neste mundo os bens da mente são pelo menos tão importantes como os do corpo. É exclusivamente entre os bens da mente que encontraremos o valor da filosofia; e somente aqueles que não são indiferentes a estes bens podem ser convencidos de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo.
Como todos os outros estudos, a filosofia, aspira essencialmente ao conhecimento. O conhecimento a que aspira é o que unifica e sistematiza o corpo das ciências e o que resulta de um exame crítico dos fundamentos das nossas convicções, dos nossos preconceitos e das nossas crenças. Mas não se pode dizer que a filosofia tenha tido grande sucesso ao tentar dar respostas exactas às suas questões. Se perguntarmos a um matemático, a um mineralogista, a um historiador ou a qualquer outro homem de saber, que corpo exacto de verdades a sua ciência descobriu, a sua resposta durará o tempo que estivermos dispostos a escutá-lo. Mas se colocarmos a mesma questão a um filósofo, se for sincero terá de confessar que o seu estudo não chegou a resultados positivos como aqueles a que chegaram outras ciências. É verdade que isto se explica em parte pelo facto de que assim que se torna possível um conhecimento exacto acerca de qualquer assunto, este assunto deixa de se chamar filosofia e passa a ser uma ciência separada. A totalidade do estudo dos céus, que pertence actualmente à astronomia, esteve em tempos incluído na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se "os princípios matemáticos da filosofia natural". Analogamente, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, foi agora separado da filosofia e deu origem à ciência da psicologia. Assim, a incerteza da filosofia é em larga medida mais aparente do que real: as questões às quais já é possível dar uma resposta exacta são colocadas nas ciências, e apenas aquelas às quais não é possível, no presente, dar uma resposta exacta, formam o resíduo a que se chama filosofia.
No entanto, por muito pequena que seja a esperança de descobrir uma resposta, a filosofia tem o dever de continuar a examinar estas questões, a consciencializar-nos da sua importância, a examinar todas as respostas que lhes são dadas e a manter vivo o interesse especulativo pelo universo, que pode ser destruído se nos limitarmos ao conhecimento que podemos verificar com exactidão.
Tradução de Álvaro Nunes
Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia, Oxford University Press, Oxford, 2001, pp. 89-94
Retirado de http://www.criticanarede.com/

domingo, 20 de julho de 2008

O QUE É A FILOSOFIA?

As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.
Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.
A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ideias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.
A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»
Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número, conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.
NAGEL, Thomas, Que quer dizer tudo isto?, 1ª edição, 1997. Lisboa: Gradiva, pp. 7-9

sábado, 19 de julho de 2008

O QUE É UM FILÓSOFO?

"O que faz de alguém um filósofo, além de ser considerado como tal pela universidade?" Primeiro, penso que um autor tem de dar atenção a questões com um alto grau de generalidade, e tem de se sentir à vontade com as ideias abstractas. Não é suficiente procurar a verdade, pois podemos estabelecer a verdade com respeito a factos particulares; isso pode ser o objectivo dos historiadores, ou dos romancistas que procuram dizer de forma imaginativa como as coisas são, num certo sentido. Um filósofo diria também sem dúvida que procura a verdade, mas está interessado em seja o que for que está por detrás dos factos particulares da experiência, dos pormenores da história; um filósofo ocupa-se do significado subjacente da linguagem que nós usamos habitualmente e sem pensar, as categorias em função das quais organizamos a nossa experiência. Assim, esse filósofo ou filósofa diria não apenas que procura a verdade, mas que procura uma verdade, ou teoria, que explique o particular e o pormenor e o quotidiano.
Um grande filósofo que exemplifica estas características foi o escocês David Hume. Nunca desempenhou quaisquer funções académicas (apesar de uma vez o ter tentado infrutiferamente); a maior parte dos seus escritos pertencia a esse tipo particularmente escocês, o ensaio; e os seus ensaios tratavam de vários temas sociais, políticos e económicos. Mas a sua grande obra filosófica, o Tratado da Natureza Humana, que ele terminou quando tinha apenas 26 anos, foi concebida para estabelecer os fundamentos de uma ciência empírica genuína da natureza humana. A partir destes fundamentos Hume esperava que se pudesse construir uma elucidação de todo o conhecimento humano, incluindo o conhecimento científico, e de toda a moral, incluindo a moral política. Aqui temos generalidade, e de facto uma enorme ambição explicativa.
Hume satisfaz também outro critério pelo qual medimos um verdadeiro filósofo: ocupava-se não apenas de apresentar as suas ideias, mas também de argumentar a seu favor. Esta atitude tem conduzido quase sempre, entre os filósofos, a um interesse apaixonado pelas ideias uns dos outros; e tem levado os filósofos a discordar, e se possível a refutar, os argumentos dos outros filósofos; e também a expor teorias por meio de diálogos, falados ou escritos. Por vezes, como no caso de Platão, Berkeley ou Hume, estes diálogos são ficcionais; por vezes são reais, e tomaram a forma de respostas a objecções, como no caso de Descartes, ou de troca de correspondência. Os filósofos são por natureza faladores e epistolares; só raramente preferem sentar-se e pensar, isolados dos seus pares.
Mary Warnock
Tradução de Desidério Murcho
Retirado de Mulheres Filosóficas (1996), pp. xxix-xxx.
Publicado em http://www.aartedepensar.com/

sexta-feira, 18 de julho de 2008

RUMO A UMA VIDA ÉTICA

Numa sociedade em que a norma é a procura tacanha do interesse próprio, a deslocação para uma postura ética é mais radical do que muitas pessoas crêem. Comparado com as necessidades das pessoas que morrem à fome na Somália, o desejo de provar os vinhos das principais vinhas de França torna-se insignificante.
Analisado à luz do sofrimento de coelhos imobilizados em cujos olhos se deitam gotas de champô, um melhor champô torna-se um objectivo indigno. A preservação de florestas seculares deveria sobrepor-se ao nosso desejo de usar papel de cozinha descartável. Uma abordagem ética da vida não proíbe a diversão nem o saborear de comida e bebida, mas altera o nosso sentido das prioridades. O esforço e o dinheiro dispendidos na compra de roupas da moda, a procura interminável de prazeres gastronómicos cada vez mais refinados, a diferença extraordinariamente grande de preços que existe entre o mercado de carros de prestígio e o mercado de automóveis para pessoas que apenas querem um meio fiável de ir de A a B – tudo isto se torna desproporcionado para as pessoas que conseguem alterar a sua perspectiva para se posicionarem, pelo menos durante algum tempo, fora do centro das atenções.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 403-404

E. MUNCH – O GRITO (1893)

Pintei os traços e as cores que afectaram o meu olhar interior.”
Edvard Munch nasceu em 1863 em Loten, na Noruega. A sua vida artística traz a marca inconfundível das impressões da infância e da juventude – a doença e a morte. A sua irmã Sophie, morre vítima de tuberculose com apenas quinze anos, Munch tem catorze. Aos cinco já tinha perdido a mãe com a mesma doença. Em 1889, desaparece-lhe o pai.
O medo da própria existência iria perseguir e orientar a vida do artista. “Sem medo e doença, a minha vida teria sido um barco sem rumo.”
Em 1893, pinta o Grito, obra que imortalizou o seu nome. Conhecem-se pelo menos cinquenta versões deste quadro.
O que prende o nosso olhar a esta obra de arte? É a cor de sangue das nuvens, longas plaquetas pastosas que se infiltram na pele disforme da figura central. “As cores gritavam. A Natureza gritava no meu sangue… Pintei esse quadro e as nuvens como se fossem realmente sangue.” O diário de Munch contém uma passagem, que faz lembrar esta cena: “Um dia ao entardecer, caminhava por uma estrada. De um lado a cidade, do outro o fiorde. Detive-me para contemplar este. O Sol estava a pôr-se e as nuvens estavam tingidas. Havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul – escuro e da cidade. Os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei. Em pé, a tremer de medo e senti um grito infindável a atravessar a Natureza.”
O Grito exprime o sentimento de angústia, de isolamento, de terror, de destruição que invade o ser humano quando é aniquilado por forças que o ultrapassam. A angústia acentua-se na forma como a figura central está trabalhada, qual rosto de múmia, irreal, distorcida. A angústia espalha-se à sangrenta recta da estrada e à sinuosa linha do fiorde que mais parece a lava azulada de um vulcão que tudo devora à sua passagem, ficando apenas o vazio e a destruição.
Podemos interpretar este quadro numa dimensão mais vasta. Ele dá conta da crise de valores que assola o homem contemporâneo, (passagem do século XIX para o século XX). Fica no entanto a esperança da construção de novos valores nas duas personagens que caminham erectas no final da violenta recta da estrada.
Por que não, ver neste quadro, a necessidade do homem repensar os valores ecológicos? O que é que o ser humano está a fazer ao Planeta Terra, à Natureza? “Senti um grito infindável a atravessar a Natureza.” Esta também chora, quando o homem a agride.O poeta Rilke escreveu sobre os traços dos quadros de Munch que este foi capaz de reconciliar os opostos de destruição e preservação. Há mais Natureza do que aquilo que parece nas obras de Munch.
Isabel Laranjeira, professora de Filosofia da Escola Frei Rosa Viterbo - Sátão

quinta-feira, 17 de julho de 2008

A FILOSOFIA NÃO É "ADVERSARIAL"

Porque em filosofia argumentamos uns com os outros sobre questões filosóficas é natural pensar que a filosofia é um processo "adversarial" [antagónico] como dois advogados (o de acusação e o de defesa) que argumentam um contra o outro num tribunal. Contudo, há duas razões pelas quais esta comparação dos filósofos com os advogados não é boa. Em primeiro lugar, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa do seu cliente — quer o seu cliente esteja inocente quer não. Pelo contrário, o objectivo de dois filósofos que se encontrem a argumentar um com o outro é chegar à verdade — seja ela qual for e seja quem for que tenha razão. Como um estudante afirmou, eloquentemente, o objectivo de cada advogado é ganhar a causa, quer ele tenha a verdade quer não, ao passo que o objectivo de cada filósofo é chegar à verdade, quer ele ganhe o argumento quer não. (Sendo os filósofos seres humanos, nem sempre são assim tão imparciais, mas o ideal é este.)
Em segundo lugar, num julgamento há uma autoridade (o juiz ou o júri) que os advogados tentam persuadir, e que em última análise determina se o acusado está ou não inocente. Em filosofia, pelo contrário, não há qualquer juiz ou júri com autoridade para tornar uma posição incorrecta e a outra correcta. Só existimos nós. Claro que alguns de nós sabem mais do que outros sobre questões filosóficas, e o mais sábio é ficar atento e aprender com quem sabe mais do que nós, mas quando chega o momento de tomar decisões relativamente a um tema filosófico somos todos igualmente responsáveis pelas nossas crenças e devemos por isso tomar, cada um de nós, as suas próprias decisões.
Richard E. Creel
Tradução de Desidério Murcho
Thinking Philosophically, Blackwell, Oxford, 2001, p. 88
Retirado de http://www.aartedepensar.com/

quarta-feira, 16 de julho de 2008

AS REGRAS DE HAMA

No seu livro De Beirute a Jerusalém, Thomas Friedman descreve as atrocidades que tiveram lugar em Hama, Síria, no início de Fevereiro de 1982. Depois de uma tentativa de assassínio do presidente sírio Hafez Assad ter sido atribuída à Irmandade Muçulmana, um grupo de militantes muçulmanos sunitas da cidade de Hama, as forças de Assad, lideradas pelo seu irmão Rifaat, lançaram um ataque à Irmandade em Hama. Desencadeou-se uma feroz guerra civil entre as guerrilhas muçulmanas e os militares sírios. Torturaram-se prisioneiros e destruíram-se edifícios e até mesmo mesquitas. Ao fim de algumas semanas, a maior parte de Hama estava em ruínas. Assad trouxe bulldozers para aplanar as ruínas. Foram mortas entre sete mil e trinta e oito mil pessoas. “Um político iria, normalmente, minimizar um incidente tão sinistro rejeitando o alto número de baixas como se se tratasse de propaganda inimiga, mas as forças de Assad aclamaram-no como a uma medalha de honra.”
Friedman defende que o incidente ilustra as regras da guerra árabe, as “Regras de Hama”, que derivam de um Estado de natureza hobbesiana onde a vida é “solitária, pobre, difícil, brutal e curta”. Destruir ou ser destruído! Tribos hostis confrontam-se entre si sem qualquer juiz imparcial que possa fazer valer regras com que todos pudessem concordar, pelo que a única preocupação relevante é a sobrevivência, o que significa que o inimigo tem de ser destruído por quaisquer meios. Friedman descreve os Estados do Médio Oriente como autocracias brutais nas quais os líderes sobrevivem através de tácticas opressivas, incluindo acusar os seus inimigos, torturar e executar os rivais políticos.
Friedman ilustra a sua teoria com uma lenda beduína acerca de um idoso e do seu peru. Um dia, o idoso beduíno descobre que se comesse peru poderia restaurar a sua virilidade. Comprou um pequeno peru e manteve-o perto da sua tenda, alimentando-o de modo a que este pudesse fornecer uma fonte de força renovada. Um dia, o peru foi roubado. E assim o beduíno reuniu os seus filhos e disse: “Rapazes, roubaram o meu peru. Estamos por isso em perigo.” Os seus filhos riram, respondendo: “Pai, isso não tem importância nenhuma. Para que precisas de um peru?” “Esqueçam”, respondeu o pai. “Temos de reaver o peru.” Mas os seus filhos não levaram isto a sério e rapidamente esqueceram o peru Algumas semanas mais tarde, os filhos do beduíno foram ter com ele e disseram: “Pai, roubaram o nosso camelo. Que devemos fazer?” “Encontrem o meu peru”, respondeu o beduíno. Umas semanas mais tarde, os filhos dirigiram-se novamente ao pai para dizer que o cavalo do idoso tinha sido roubado. “Encontrem o meu peru”, respondeu. Finalmente, algumas semanas depois disso, violaram a filha do idoso. O beduíno olhou para os seus filhos e disse: “Isto é tudo por causa do peru. Quando eles viram que conseguiam ficar com o meu peru, perdemos tudo.”
Deixar o seu inimigo ficar com um centímetro é dar-lhe um quilómetro; significa perder a riqueza, o estatuto, a reputação, a integridade. Em tal Estado, a regra não é “olho por olho, dente por dente, vida por vida”, mas “uma vida por um olho, duas por um dente e as vidas de toda a tribo pela do meu peru”. Friedman acha que as Regras de Hama governam o conflito do Médio Oriente. São as regras que Israel aprendeu a usar.
POJMAN, Louis, Terrorismo, Direitos Humanos e a Apologia do Governo Mundial, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 24-27

terça-feira, 15 de julho de 2008

A ESCADA ROLANTE DA RAZÃO

Aos seres humanos faltam a força do gorila, os dentes afiados do leão, a rapidez da chita. O poder cerebral é a nossa especialidade. O cérebro é um instrumento de raciocínio e uma capacidade de raciocínio ajuda-nos a sobreviver, a alimentar-nos e a proteger as nossas crias. Com ela, desenvolvemos máquinas que conseguem içar mais do que muitos gorilas juntos, facas mais afiadas do que quaisquer dentes de leão e formas de viajar que tornaram a velocidade da chita entediantemente lenta… Mas a capacidade de raciocinar é uma capacidade peculiar. Ao contrário dos braços fortes, dos dentes aguçados e das pernas velozes, pode levar-nos a conclusões que não desejávamos. A razão é uma escada rolante, sempre a subir até perder de vista. Uma vez entrados nela, não sabemos onde iremos parar.
A capacidade da razão para nos levar onde não esperávamos ir pôde também ter estado na origem de um desvio curioso relativamente ao que se poderia esperar ser a linha recta da evolução. Desenvolvemos uma capacidade para raciocinar porque esta nos ajuda a sobreviver e a reproduzir. Mas se a razão é uma escada rolante, então, embora a primeira parte da viagem nos possa ajudar a sobreviver e a reproduzir, podemos ir mais longe do que precisaríamos para cumprir apenas estes objectivos.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 391-393

RELAÇÃO ARTE-VERDADE

Mas como falar-se de verdade a propósito da Arte, se justamente ela é ficção, ela é “mentira”? No entanto como é irrecusável um problema de eficácia da mesma Arte, como, apesar de sabermos que ela “finge”, todos os domínios da eficácia, do dirigismo, a não podem ignorar, para o problema Arte-Verdade as soluções vão desde o admitir-se que essa verdade é “confusa” ou que, como em Hegel, a arte é uma insuficiente manifestação da Ideia, ou ainda e simplesmente, que não há aí problema algum de “verdade”, de “conhecimento” como em Kant.
Ora quanto a uma questão de verdade “objectiva” a solução é fácil num confronto do que a Arte diz com a “realidade”: uma Guerra e Paz mente ou fala verdade, se o facto histórico se respeita no romance. Mas nesse caso, não estamos falando de Arte, estamos falando de História. Ora é sobre a Arte, enquanto tal, que nos estamos interrogando. Eis pois que o problema Arte-Verdade transcende essa dimensão particularista e põe em causa, para o espectador, os limites gerais da sua adesão ou não adesão à obra de arte, põe-lhe em causa a revelação da evidência no acto da existência estética; como implica – e daí mesmo – o sabermos em que medida o mundo “real” não envolve, no conceito que dessa “realidade” temos, uma visão estética, uma revelação através de uma valorização emotiva que nos faz decifrar a verdade em função dessa valorização, que nos ensinou, nos ensina constantemente que nos promove, em suma, na expressão de Malraux, uma operação de “cataratas”.
Vergílio Ferreira
SARTRE, Jean-Paul; FERREIRA, Vergílio, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 33-35

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O MITO DE SÍSIFO ii

No capítulo final do seu livro intitulado Good and Evil, Richard Taylor, filósofo americano, recorre igualmente ao mito de Sísifo para explorar a natureza do sentido da vida. Taylor coloca uma questão inteligente: de que forma seria necessário alterar o destino de Sísifo, para conferir sentido à sua vida? Taylor considera duas possibilidades. A primeira é que, em vez de tentar indefinidamente levar a mesma pedra até ao cimo do monte, sem nada que prove o seu esforço, Sísifo poderia empurrar várias pedras até ao cume e construir aí um templo nobre. A segunda é que, embora Sísifo continue a empurra apenas a mesma pedra, e o faça sempre em vão, os deuses, numa disposição perversamente misericordiosa, implantam-lhe um desejo feroz de fazer apenas aquilo que o condenaram a fazer: empurra pedras!
As duas possibilidades de Taylor para conferir sentido à vida de Sísifo têm origem em duas visões diferentes da base da ética. Na primeira, podemos ter uma vida com sentido trabalhando para alcançar metas que são objectivamente merecedoras. Construir um templo que perdure e acrescentar beleza ao mundo é uma dessas metas. Esta perspectiva da ética pressupõe a existência de valores objectivos, de acordo com os quais podemos julgar como bom a criação de grandes obras de arte como os templos da antiga Grécia. A segunda possibilidade encontra sentido não em algo objectivo mas nalguma coisa em nós mesmos: a nossa motivação. Neste caso, são os nossos desejos que determinam se o que fazemos vale a pena. Segundo este ponto de vista, qualquer coisa pode constituir uma actividade com sentido, se a quisermos realizar. Assim, empurrar uma pedra monte acima, apenas para a ver rolar quando nos aproximamos do cume, começar de novo, e fazer a mesma coisa eternamente, não tem nem mais nem menos sentido do que construir um templo, porque o pressuposto aqui é a inexistência de valor ou sentido objectivos, independentemente daquilo que desejarmos. O sentido é subjectivo: uma actividade terá significado para mim se estiver de acordo com os meus desejos; de outro modo, não terá.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 342-343

domingo, 13 de julho de 2008

DEFINIÇÃO DE TERRORISMO

O terrorismo é um tipo de violência política que visa atingir civis (não combatentes) de forma cruelmente destrutiva, muitas vezes imprevisível. O terrorismo dificilmente constitui uma violência descuidada. Reflecte, isso sim, uma estratégia minuciosa que usa uma violência horrífica para fazer as pessoas sentirem-se fracas e vulneráveis, a qual é muitas vezes desproporcionada quer em relação ao acto terrorista, quer em relação ao poder terrorista de longo prazo. Este medo destrutivo é depois utilizado na promoção de objectivos políticos concretos. Alguns desses objectivos podem ser moralmente louváveis, mas a sua qualidade moral tende a ser anulada pelos meios assassinos usados, pelo que o terrorismo deve ser desencorajado pelos governos civilizados.
POJMAN, Louis, Terrorismo, Direitos Humanos e a Apologia do Governo Mundial, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, p. 24

sábado, 12 de julho de 2008

O MITO DE SÍSIFO

Segundo um antigo mito grego, Sísifo contou os segredos dos deuses aos mortais. Por isto, os deuses condenaram-no a empurrar uma pedra gigantesca até ao cimo de um monte; quando se aproximava do cume, o esforço tornava-se demasiado para si e a pedra rebolava de novo até ao sopé. Sísifo tinha então de reiniciar a sua tarefa… Mas sucedia o mesmo e Sísifo via-se obrigado a empurrar a pedra durante toda a eternidade. O mito de Sísifo constitui uma metáfora sombria da falta de sentido na existência humana. Trabalhamos todos os dias para nos alimentarmos e alimentar a nossa família, e mal a tarefa está concluída temos de começar tudo de novo. Nada é alguma vez alcançado, e nunca terminará, até à extinção da nossa espécie.
O escritor francês existencialista, Albert Camus escreveu um ensaio sobre o mito de Sísifo. Inicia-se com uma frase famosa: “Só existe um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”. Camus prossegue: “Julgar se a vida merece ou não ser vivida equivale a responder à questão fundamental da filosofia”. Mas devemos acrescentar (e Camus teria concordado) que não é tanto uma questão de julgar passivamente se a vida merece ou não ser vivida, mas de escolher conscientemente uma forma de viver que valha a pena. Mesmo Sísifo, afirma Camus, pode fazer isto. Assim, o ensaio, que começara confrontando-nos com a perspectiva do suicídio termina num tom positivo:
“Não há destino que não possa ser ultrapassado pelo desdém. A própria luta em direcção às alturas basta para encher o coração de um homem. Devemos imaginar Sísifo feliz.”
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 341-342

O “SER” DAS COISAS

Quando eu vejo este papel branco, verifico um “estado de coisa”. Trata-se de facto de uma qualidade que observo no papel. Paralelo ao acto sensível de ver o papel branco, eu consciencializo esse acto de ver e introduzo uma pequena-enorme alteração no acto de ver, realizando uma operação que é ideal e estranha ao acto sensível, e penso “este papel é branco”. Aqui incluo um conceito de ser que não se consegue por reflexão sobre o exemplo verificado, mas que é dado com ele. Quando eu consciencializo que o papel é branco, não é por ter reflectido sobre isso que deduzo o “estado de coisa”: “tal estado de coisa” é dado nesse juízo. Quer dizer: esta consciencialização de que o papel é branco não a deduzo de ver que ele é branco. Porque o que lá está é apenas “o papel branco” ou mais rigorosamente, decerto, um objecto uno em que eu distingo a qualidade de brancura. Mas a afirmação ou a reflexão de que o “papel é branco” é minha, representa ou explicita um certo modo de ver. E no entanto, foi na própria coisa que eu li o “ser” branco do papel. No intuir o papel, eu verifiquei a percepção do “papel e da brancura” com o juízo de que “o papel é branco”. Os princípios lógicos são pois objectivos e subjectivos, existem na coisa e são lá postos por nós, são intrínsecos à coisa e todavia não estão lá - como lá não está o simples conceito de “ser”, pois que o “ser” não existe na realidade.
Vergílio Ferreira
SARTRE, Jean-Paul; FERREIRA, Vergílio, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 24-25

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O SEXO DA ÉTICA ii

Mais recentemente, algumas feministas reabilitaram a ideia de que as mulheres entendem a ética de modo diverso do homem. Grande parte do ímpeto para esta mudança veio do estudo de Carol Gilligan, Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher. Gilligan reagia contra o trabalho de Lawrence Kohlberg, psicólogo de Harvard que passou toda a sua vida activa a estudar o desenvolvimento moral das crianças. Fez isto perguntando às crianças o que fariam quando colocadas perante vários dilemas morais e classificando o seu nível de desenvolvimento moral de acordo com as respostas assim obtidas. Num dos dilemas, um homem chamado Heinz tem uma mulher que morrerá a menos que lhe seja administrado um medicamento que ele não consegue comprar por falta de dinheiro. O farmacêutico recusa-se a dar o medicamento a Heinz. Deve Heinz roubar o medicamento para salvar a mulher? Jake, um menino de onze anos, responde que Heinz deve roubar o medicamento e depois arcar com as consequências. Segundo Kohlberg, Jake revela assim entendimento das regras sociais e capacidade de princípios relativos a respeito pela propriedade e respeito pela vida humana. Por outro lado, Amy, uma menina com a mesma idade de Jake, centra-se mais na relação entre Heinz e a mulher, e também critica o farmacêutico por não ajudar uma pessoa moribunda. Sugere que Heinz insista com o farmacêutico, para ver se conseguem descortinar juntos uma solução para o problema. Kohlberg considera a resposta do rapaz como indicadora de um estádio superior de desenvolvimento moral, pois considera o problema a um nível mais abstracto e faz apelo a um sistema de regras e princípios. Gilligan salienta que Amy vê o universo moral em termos menos abstractos e mais pessoais, enfatizando as relações e responsabilidades existentes entre as pessoas. Isto pode ser diferente do modo como Jake encara a moral, mas não é por conseguinte inferior ou indicativo de um estádio inferior de desenvolvimento moral.
Nel Noddings afirma que as mulheres tendem menos do que os homens a ver a ética em termos de regras e princípios abstractos. As mulheres, crê Noddings, têm mais tendência a responder directamente a situações específicas com base numa atitude de atenção.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 312-313

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O DIA DA IGNOMÍNIA

Em 11 de Setembro de 2001, ocorreu o pior ataque terrorista a civis na história dos Estados Unidos. Quatro aviões, desviados por terroristas muçulmanos árabes, transformaram-se nas suas mãos em mísseis gigantescos e assassinos. Dois colidiram com o World Trade Center na cidade de Nova Iorque, o outro colidiu com o Pentágono em Washington D.C., e o quarto, talvez destinado ao edifício do Capitólio, caiu num campo da Pensilvânia. Mais de três mil pessoas insuspeitas e inocentes foram mortas, assim como os dezanove terroristas. Os horrendos ataques kamikaze destruíram um símbolo do capitalismo global e criaram mossas na sede geral da mais poderosa força militar na Terra. Este carrossel diabólico de desdém e insolência não foi apenas um ataque aos Estados Unidos mas ao Ocidente e à cultura e valores liberais que este representa. Estes mísseis suicidas letais abriram uma brecha na aparentemente inexpugnável parede da civilização, despojando-nos das nossas ilusões de vulnerabilidade. Assim nasceu uma nova era na história da humanidade, uma era em que se antevê uma nova dimensão de mal e um tipo deferente de guerra. A história dos Estados Unidos e do mundo inteiro irá passar a estar dividida entre o antes e o depois de 11 de Setembro.
Desde esse dia sinistro de 2001 ocorreram mais atentados terroristas. Em 12 de Outubro de 2002, 202 pessoas foram mortas no atentado bombista a um hotel em Bali, Indonésia. Em Novembro de 2003, os terroristas detonaram bombas no exterior do consulado britânico em Istambul, Turquia, matando 23 pessoas e ferindo muitas outras. Em, Março de 2004, os terroristas detonaram dez bombas em comboios em Madrid, Espanha, matando 191 pessoas. Nos últimos incidentes, a 7 de Julho de 2005, quatro jovens muçulmanos britânicos, bombistas suicidas, detonaram três bombas no metropolitano de Londres e num autocarro, matando 50 pessoas e ferindo 70.
Iraquianos insurrectos detonaram bombas em Bagdade e no Triângulo Sunita quase diariamente, matando ou mutilando milhares de inocentes iraquianos, incluindo idosos, mulheres e crianças. Por exemplo, a 13 de Julho de 2005, um bombista suicida conduziu o seu camião carregado de bombas contra uma multidão de crianças que estavam a receber rebuçados de um soldado. Vinte e cinco pessoas foram mortas, na sua maioria crianças.
POJMAN, Louis, Terrorismo, Direitos Humanos e a Apologia do Governo Mundial, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 18-19

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O SEXO DA ÉTICA

A ética tem sexo? Pensa-se que há muito que há diferenças na forma como os homens e a mulheres abordam a ética. Durante a maior parte da História, a natureza feminina tem sido encarada como muito mais inclinada para aquilo que poderíamos designar como virtudes domésticas, e menos adequada a uma perspectiva ampla. Assim, no Emílio, Rosseau resume os deveres de uma mulher da seguinte forma: “a obediência e fidelidade que deve ao seu marido, a ternura e cuidados devidas aos seus filhos”. Os homens, mas não as mulheres, devem entender e participar nas questões cívicas e na política porque “o raciocínio de uma mulher é prático. A demanda do abstracto e da verdade especulativa, de princípios e axiomas da ciência, de tudo o que tende para a generalização vasta, está para além da compreensão da mulher”. Hegel assumiu uma posição semelhante. Freud transformou esta tradição até ao século XX, afirmando que as “mulheres revelam menos sentido de justiça do que os homens” e “são mais vezes influenciadas nos seus juízos por sentimentos de afecto de e hostilidade”.
Desde que Mary Wollstonecraft escreveu a sua obra pioneira A Vindication of the Rights of Woman em 1792, existe uma linha de pensamento feminista que defende veementemente, contra Rosseau e aqueles que pensam nos seus moldes, que não existem virtudes distintamente femininas ou masculinas: a ética é universal. Contudo houve uma linha diversa de pensamento feminista que ganhou projecção nos tempos da luta pelo voto das mulheres. Ao advogar o direito de voto para as mulheres, algumas feministas afirmaram que as mulheres têm uma abordagem distinta de muitas questões éticas e políticas e é precisamente por essa razão que a sua influência deveria ser sentida mais fortemente na política.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 310-311

A CONSCIÊNCIA

Descartes considerava a consciência como “alguma coisa”; Sartre considerando-a apenas uma operação de nós, um facho iluminador, uma constante fuga a si, virá a radicar nisso o que ele concebe como a fatalidade da nossa liberdade. Tal liberdade, aliás, começa precisamente em que, tendo nós consciência de algo, temos uma paralela e implícita consciência de nós, ou seja, temos consciência de que não somos esse algo: se eu tenho consciência deste papel em que escrevo, é porque tenho consciência de que o vejo, e, embora implicitamente, de que o não sou, ou seja, de que sou consciente de mim. Adiantemos desde já que é isso precisamente que me separa do animal. Porque o animal vive colado às coisas que determina nos estritos limites de uma acção-reacção, não se sabe a si próprio enquanto as vê, não as cinge de negação, não as determina verdadeiramente, não as visa com “intencionalidade”, ou seja com uma intenção, um fim especial e consciente, não é, em suma, “livre”.
Vergílio Ferreira

SARTRE, Jean-Paul; FERREIRA, Vergílio, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, p. 18

terça-feira, 8 de julho de 2008

A NATUREZA DA ÉTICA

Aqueles que agem eticamente escolhem um modo de vida alternativo, contrário à procura tacanha, acumuladora e competitiva do interesse próprio, que, como vimos, domina agora o Ocidente e já não é posta em causa nem nos antigos países comunistas. A ética não pode ser reduzida a um simples conjunto de regras, como “não dizer mentiras”, “não matar” ou “não ter relações sexuais senão com quem se casou”. As regras são úteis para educar as crianças e como guia prático para quando é difícil pensar cuidadosa e calmamente. Sob alguns aspectos, são como receitas culinárias. Quando se é um cozinheiro inexperiente pode segui-las geralmente; mas um bom cozinheiro sabe quando e como adaptá-las. Tal como nenhum livro de receitas poderá alguma vez abranger todas as circunstâncias nas quais possamos querer cozinhar uma refeição saborosa, também a própria vida é demasiado variada para que qualquer conjunto finito de regras constitua uma fonte absoluta de sabedoria moral.
As regras morais que ainda são ensinadas na maioria das sociedades não são muitas vezes aquelas que mais precisamos de ensinar às crianças de hoje em dia. A tensão entre interesse próprio e ética que está no centro deste livro existe independentemente da ética religiosa, ou, mais especificamente, cristã, mas a ênfase tradicional cristã na negação de prazeres sexuais, tem grande responsabilidade no aumento da tensão até, em muitas pessoas, está alcançar o ponto de ruptura, tendo como resultado ou o abandono da ética ou um sentido de culpa e profanação.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 303-304

segunda-feira, 7 de julho de 2008

DILEMA DOS PRISIONEIROS ii

No início da década de 1980, Robert Axelrod, sociólogo americano, fez uma descoberta notável acerca da natureza da cooperação. A verdadeira importância do resultado de Axelrod ainda não foi devidamente valorizada fora de um grupo restrito de especialistas. Encerra a potencialidade de alterar não apenas as nossas vidas pessoais, como também o mundo da política internacional.
Para compreendermos o que Axelrod descobriu, precisamos primeiro de saber algo sobre o problema que o interessou — um bem conhecido quebra-cabeças sobre cooperação chamado Dilema do Prisioneiro. O nome vem da forma como o quebra-cabeças é geralmente apresentado: uma escolha imaginária que se apresenta a um prisioneiro. Há muitas versões. Eis a minha:
O leitor e outro prisioneiro jazem em celas separadas da Esquadra Principal da Polícia da Ruritânia. Os agentes tentam fazer-vos confessar ter conspirado contra o estado. Um interrogador vem até à sua cela, serve um copo de vinho da Ruritânia, dá-lhe um cigarro e, num tom de amizade sedutora, propõe-lhe um acordo.
— Confesse o crime! — exorta ele. — E se o seu amigo na outra cela…
O leitor protesta, alegando nunca ter visto antes o prisioneiro que se encontra na outra cela, mas o interrogador ignora a objecção e prossegue:
— Ainda melhor, então, se ele não é seu amigo; pois, como eu estava a dizer, se o senhor confessar, e ele não, usaremos a sua confissão para o engaiolar a ele dez anos. A sua recompensa será a liberdade. Por outro lado, se for estúpido ao ponto de se recusar a confessar, e o seu "amigo" na outra cela confessar, será o senhor a ir para a prisão dez anos, e ele será libertado.
O leitor pensa nisto durante algum tempo e percebe que não tem informação suficiente para decidir, por isso pergunta:
— E se confessarmos ambos?
— Então, e uma vez que não precisamos realmente da sua confissão, não sairá em liberdade. Mas, tendo em conta que estavam a tentar ajudar-nos, passarão os dois oito anos na cadeia.
— E se nenhum de nós confessar?
Uma expressão de desdém perpassa o rosto do interrogador e o leitor receia que ele esteja prestes a golpeá-lo. Mas o homem controla-se e rosna que, então, uma vez que não terão provas para a condenação, não poderão manter-vos lá dentro muito tempo. Mas acrescenta:
— Não desistimos facilmente. Ainda podemos manter-nos aqui seis meses, a interrogar-vos, antes de os sacanas da Amnistia Internacional conseguirem pressionar o governo para vos tirar daqui. Portanto, pense no assunto: quer o seu colega confesse, quer não, o senhor ficará melhor se confessar do que se não o fizer. E o meu colega vai dizer a mesma coisa ao outro tipo, agora mesmo.
O leitor reflecte no que ele disse e compreende que o guarda tem razão. Faça o que fizer o estranho na outra cela, o leitor ficará melhor se confessar. Se ele confessar, a sua escolha é entre confessar também, e apanhar oito anos de prisão, ou não confessar, e passar dez anos atrás das grades. Por outro lado, se o outro prisioneiro não confessar, a sua escolha é entre confessar, e sair livre, ou não confessar, e passar seis meses na cela. Portanto, parece que o melhor a fazer é confessar. Mas, então, ocorre-lhe outro pensamento. O outro prisioneiro está exactamente na mesma situação. Se, para si, é racional confessar, também será racional para ele confessar. Assim, passarão ambos oito anos na cadeia. Por outro lado, se ninguém confessar, ambos ficarão livres dentro de seis meses. Como pode ser que a escolha que parece racional, para cada um dos dois, individualmente — ou seja, confessar — vos prejudique mais a ambos do que se decidirem não confessar? O que deve fazer?
Não há solução para o Dilema do Prisioneiro. De um ponto de vista puramente do interesse próprio (aquele que não toma em consideração os interesses do outro prisioneiro), é racional, para cada prisioneiro, confessar — e se cada um fizer o que é racional do ponto de vista do interesse próprio, ficarão ambos pior do que ficariam se tivessem escolhido de outro modo. O dilema prova que quando cada um de nós, individualmente, escolhe aquilo que é do seu interesse próprio, pode ficar pior do que ficaria se tivesse sido feita uma escolha que fosse do interesse colectivo.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 242-244