sexta-feira, 23 de maio de 2008

E SE FÔSSEMOS UM CÉREBRO NUMA CUBA?

Imagine uma situação em que as coisas que vê não correspondem a objectos tridimensionais, onde não existe, não obstante a sua crença irresistível, nenhum mundo físico mobilado de coisas tangíveis, como o Sol, como as rãs verdes ou as escovas de dentes. Imagine, por exemplo, que é um cérebro flutuando numa cuba. Não um cérebro morto num frasco de formol, mas um cérebro mantido em estado de funcionamento, graças a uma solução química. Um cientista louco extraiu-lhe o cérebro da caixa craniana sem o seu conhecimento, e o resto do corpo foi incinerado. Para lhe criar a ilusão de que nada mudou, o cientista louco ligou o seu cérebro a um computador que lhe envia impulsos eléctricos via eléctrodos ligados às suas terminações nervosas, que o seu cérebro, como se nada se passasse, se apressa a traduzir em imagens, sons, odores, impressões tácteis e gustativas. O processo é interactivo, você tem, a impressão de poder continuar a agir sobre o mundo. Do seu ponto de vista, continua a ter a mesma vida, as suas actividades e percepções são as mesmas, sem que nada destas actividades e percepções corresponda à realidade, no sentido que habitualmente damos a esta palavra. Poderá ir dar uma volta, se assim o desejar, regar as plantas, dar de comer ao gato, aproveitar as férias para se banhar na água azul, de bronzear-se enquanto lê, bem instalado num transatlântico, um chapéu de palha na cabeça e o corpo besuntado de creme, uma obra filosófica contemporânea que descreve a hipótese de um cérebro numa cuba. O supercomputador-prótese funciona às mil maravilhas: você é mais um homem entre os homens, pelo menos um ser vivo, uma coisa do mundo entre as coisas do mundo.
Os filósofos intrigaram-se muitas vezes com este género de hipóteses, mas só um número reduzido, salvo a categoria singular dos cépticos, o levou muito a sério. Semelhantes ficções derivariam de uma patologia ou de uma nevrose tipicamente filosófica, com um remédio muito simples: bastaria formular um raciocínio convincente que permitisse fazer calar o insensato que as exprime e levar os homens de boa vontade a encontrar, espírito apaziguado, o bom velho realismo tradicional, próximo do senso comum.

FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 17-18

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