quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Fundacionalismo Cartesiano

Depois de um percurso balizado entre a lógica formal e a lógica informal, chegamos a um novo capítulo dedicado ao conhecimento. Na base da argumentação e no horizonte desta está o papel mediador do conhecimento que se inscreve na procura da verdade. Certos de que “não há conhecimento absoluto, não há conhecimento perfeito, não há conhecimento infinito”, isto porque nunca podemos conhecer tudo acerca de tudo, razão pela qual nenhum conhecimento é a verdade “porque jamais conhecemos absolutamente o que é, nem tudo o que é”, antes é a procura da verdade.
Neste contexto situamos a figura de René Descartes (1596-1650) que procura os fundamentos do conhecimento, em que a única forma de atingir o conhecimento implicaria “arrasar tudo quanto havia tomado por certo e recomeçar a partir dos alicerces”. Mas porquê começar com Descartes, uma vez que ele procura respostas para tantas perguntas que já teriam sido colocadas muito antes dele (mortalidade; conhecimento; natureza do mundo; realidade e ilusão)? A razão pela qual começamos com Descartes é porque ele se situou e deparou com a revolução científica, com as respostas da ciência que procurava revelar tudo quanto existia. Por esta razão, “começamos com Descartes por ele ter sido o primeiro grande filósofo a debater-se com as implicações da moderna visão científica do mundo”.
Desta forma, o objetivo de Descartes é procurar e estabelecer um conhecimento seguro e indubitável, conhecimento este que terá de começar pelos alicerces, como se se tratasse dos fundamentos de um edifício. Razão pela qual “Descartes decide que, para poder estabelecer algo nas ciências que seja «estável e suscetível de perdurar», terá de demolir todas as suas opiniões comuns e começar a partir dos alicerces”.
Para Descartes, aquilo que não poderá estar na base fundacional do edifício do conhecimento serão as ilusões: dos sentidos; dos sonhos; a hipótese de um génio maligno. Tratam-se de três lugares onde, aparentemente, não se pode conhecer com certeza. Os sentidos podem, por vezes, enganar-nos e por isso é “de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram”. Contudo, isto não quer dizer que os sentidos nos enganem sempre, há situações em que os sentidos não nos estão a enganar e dos quais não podemos duvidar como o facto de estar aqui sentado a escrever. Por outro lado, temos os sonhos que nos representam determinadas coisas, sugerem-nos semelhanças com algo verdadeiro, por esta razão afirma Descartes que vê “com clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros” e dá-nos o exemplo de um quadro, cujos pintores podem alterar as coisas, a partir de outras reais. Contudo, assim como existem situações em que os sentidos não nos estão a enganar, existem também situações em que “quer esteja acordado quer esteja a dormir, dois e três somados são sempre cinco e um quadrado nunca tem mais do que quatro lados”. Por fim, temos a hipótese de um génio maligno “não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar”, este génio maligno, em oposição ao Deus sumamente bom, poderá tornar as convicções abertamente falsas.
Contudo, se podemos duvidar dos nossos sentidos, dos nossos sonhos e se podemos colocar a hipótese de um génio maligno que nos engane, ainda podemos referir os erros da própria razão porque, como afirma Descartes, existem “homens que se enganam, ao raciocinar, até nas mais simples questões de geometria, e nelas cometem paralogismos, pensando que eu estava tão sujeito a enganar-me, como qualquer outro, vim a rejeitar como falsas todas as razões (…)”.
No que acabámos de referir vemos que o método cartesiano, em que assenta a possibilidade do conhecimento, é a dúvida e por ser o seu método ficou conhecida como a dúvida metódica que consiste em duvidar de tudo o que se possa imaginar até encontrar algo de absolutamente indubitável, desconstruindo todas as crenças até encontrar alguma que seja fundamento, que seja alicerce para se poder construir o conhecimento. Ao contrário da dúvida cética ou ‘pirrónica’ que é sistemática e definitiva, uma vez que os céticos duvidam por duvidar, a dúvida cartesiana “é provisória, metódica, um meio para a certeza, considerada esta como a posse consciente da verdade”. A dúvida cartesiana possui então as seguintes características: “é uma dúvida voluntária, «ato da vontade esclarecida e livre», como meio ou caminho seguro para a obtenção da certeza; [é uma] dúvida radical, ao atingir as fontes sensorial e intelectual do conhecimento; [é uma dúvida] metafísica, ao atingir as «essências», mesmo as matemáticas; [é uma dúvida] hiperbólica ao atingir a existência do que gnosiologicamente se designa por «objeto» extramental do conhecimento”.
Contudo, ainda que me possa enganar e que possa errar, que possa reconhecer “que nada é certo”, não há dúvida de que existo. Afirma Descartes que “deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira”. Desta forma, mesmo que erre, mesmo que os sentidos me enganem, mesmo que o génio maligno seja astuto e se esforce por me iludir, nada me poderá convencer de que não existo. Esta é, então, a resposta cartesiana ao ceticismo que defendia a impossibilidade de se conhecer algo com certeza. Esta expressão ficou conhecida como o cogito, referindo-se ao cogito, ergo sum (penso, logo existo).
Tendo conduzido o seu pensamento até aqui falta agora saber “o que é este eu” que pensa. A resposta a esta pergunta pelo eu que pensa leva, Descartes, à distinção do mente-corpo, ao denominado dualismo cartesiano. Uma vez que a única coisa que sabemos com certeza é a de que existimos enquanto coisa pensante (res cogitans), sendo que a nossa essência ou natureza se identifica com a mente. Desta forma, o cogito nada nos diz acerca da realidade sensível, ou seja, não é suficiente para nos assegurar que temos um corpo e que, por sua vez, as nossas experiências percetivas possam ser fiáveis.
Então, como saber que existe alguma coisa para além do eu que pensa? Descartes enuncia-nos os critérios de clareza e distinção, que surgem como a primeira ‘regra da certeza’, ao referir que na “afirmação penso, logo existo, não há absolutamente nada a garantir-me que esteja a dizer a verdade, a não ser o ver muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia tomar como regra geral que são verdadeiras todas aquelas coisas que concebemos muito claramente e muito distintamente”. A esta primeira ‘regra da certeza’ seguem-se outras três: a da análise; a da síntese e a da enumeração. A segunda regra consistiria em “dividir cada uma das dificuldades que examinava em tantas parcelas quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver”. A terceira regra consistiria em “conduzir por ordem os meus pensamentos”, dos objetos mais simples e fáceis aos mais difíceis e complexos de conhecer, supondo uma certa gradualidade. Por fim, a última regra consistiria em “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de nada omitir”, trata-se de verificar a evidência da sucessão de juízos.Para abordar o pensamento cartesiano, de uma forma global, faltará abordar a segunda certeza (a existência de Deus, fundamento das verdades infalíveis, a que se chega através da ideia de perfeição, através da análise da prova ontológica) e a terceira certeza (a existência de um mundo material externo, de uma ‘res extensa’ que nos é dada através das ideias adventícias em oposição às ideias inatas), matéria que será objeto de estudo nas próximas aulas. Um outro dado a considerar, numa próxima aula, será situar o pensamento cartesiano fazendo referencia ao racionalismo que, como veremos, se opõe ao empirismo humeano.
Júlio Maria

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Conhecimento

Daniel Kolak e Raymond Martin
Tradução de Célia Teixeira
O leitor tem várias crenças. Mas quais das suas crenças é conhecimento, se é que alguma o é?
O que é o conhecimento?
O conhecimento não é mera crença. Se o leitor acreditar e afirmar que sabe algo e alguém acreditar e afirmar que sabe o oposto, então pelo menos um de vós tem de estar enganado. Quando duas pessoas acreditam em coisas contraditórias não podem ambas saber aquilo que afirmam saber. Pois uma das duas crenças tem de ser falsa. Acreditar meramente em algo, não importa quão ardentemente, não faz disso uma verdade. Para que se saiba algo, não temos somente de acreditar nisso; isso também tem de ser verdade. Mas será isto tudo o que é requerido? É o conhecimento mera crença verdadeira?
Suponha-se que alguém aposta regularmente em cavalos. Ele tenta sempre apostar em vencedores, mas raramente o faz. Contudo, está tão cheio de ilusória autoconfiança que sempre que faz uma aposta acredita ardentemente que o seu cavalo vai ganhar. Nas raras ocasiões em que o cavalo ganha, saberia o apostador que o cavalo dele iria ganhar? Claro que não. Ele poderia sentir-se completamente confiante, mas isso é outra história. Para se saber algo, não se pode apenas adivinhá-lo, mesmo que se acerte, e não o sabemos por maior que seja a confiança que depositamos no nosso palpite. Assim, que mais é necessário para o conhecimento, além da crença verdadeira?

sábado, 26 de novembro de 2016

Valores

Os valores orientam a nossa vida, influenciam o nosso pensar e proceder, acabam por determinar se as nossas ações são boas ou não, corretas ou incorretas. Usualmente ouvimos dizer que as pessoas não têm valores, a sociedade já não vive de acordo com os valores, ou que o mundo já não é o que era. Difunde-se a ideia de uma sociedade em crise, de uma crise de valores. Na antiguidade clássica havia uma preocupação muito grande pela virtude[1] (verdade, bem, ordem, finalidade), sendo esta uma característica fundamental do labor filosófico.
Agimos de determinada forma de acordo com as nossas crenças, de acordo com os nossos desejos, ou agimos de acordo com as nossas preferências, de acordo com aquilo que valorizamos ser mais ou menos importante em determinada circunstância ou para o futuro? Afinal, o que é agir de acordo com valores? Qual o seu fundamento do valor?
Na sua relação com o mundo, a experiência humana é valorativa, isto quer dizer que atribuímos valor a determinadas coisas e, ao mesmo tempo, reconhecemos pessoas, objetos, situações e acontecimentos como tendo valor, ou seja, como sendo valiosas.
Analisemos os seguintes casos. Primeiro caso: se determinada pessoa ou instituição faz alguma coisa de bem, facilmente identificamos essa ação como boa, de alguém que agiu de acordo com valores, como a justiça, a honestidade, a solidariedade. Por outro lado, se alguém agiu mal (sem considerar aqui o que é certo ou errado) já não dizemos que agiu de acordo com valores. Segundo caso: dizemos que a sociedade (entendida no seu sentido mais abrangente) já não tem valores, porquê? Porque não tem nem segue os mesmos que os nossos? Ou porque os nossos são mais importantes e por isso deveriam ser os preferíveis?
Desidério Murcho ao procurar responder à pergunta pelo fundamento do valor introduz-nos a noção de preferências[2], sendo que nestas está incluído o nosso raciocínio, o nosso “raciocínio prudencial, que diz respeito precisamente à capacidade de pensar cuidadosamente as nossas diversas preferências”[3]. Contudo, alerta-nos o autor ao afirmar que “as preferências não nos oferecem razões simples e automáticas para as [escolhas] satisfazeremos; exigem raciocínio cuidadoso”[4] para que não nos enganemos acerca das nossas preferências. Conclui o autor, “ter uma preferência é valorizar, e ambas são atividades humanas inevitáveis (…) Ao valorizar e preferir, podemos fazê-lo melhor ou pior, tendo mais ou menos consciência do que fazemos, e podemos certamente errar muitas vezes, valorizando e preferindo o que depois descobrimos serem ilusões. Mas não podemos evitar e valorizar e preferir, porque valorizar e preferir são constitutivas da ação e do pensamento”[5].
Esta noção de preferência, pela qual preferimos umas coisas em detrimento de outras, ajuda-nos a perceber o alcance do conceito de valor e do ato de valorizar. Ajuda-nos a compreender que o valor não é apenas tudo aquilo que pode ser desejado, apreciado e louvado. Contudo, o valor “impõe-se ao pensamento e à consideração de todos porque antes de ser uma preferência, ele é uma prevalência[6], ou seja, não é apenas algo que nos leva a preferir alguma coisa, é aquilo que no meio das possíveis escolhas preferenciais prevalece. Por esta linha de pensamento se começa a desenhar a difícil tarefa de definir o que são os valores, porque podemos sempre definir de acordo com uma ideia que eu tenho ou como sendo características presentes nas coisas[7]. A definição fica, assim, comprometida com a opção que tomamos.
Num sentido mais subjetivo diríamos que o valor é uma qualidade que torna os objetos ou atos valiosos dignos de serem apreciados e louvados, será aquilo que comunica importância e relevo axiológico, ou seja, o critério com que estimamos e apreciamos todas as coisas. Por outro lado, a prova da sua objetividade e o desejo da sua universalidade reside nos esforços que a sua realização exige, se os valores são preferidos de facto ou, pelo menos, de direito como um bem necessário e imprescindível à realização de cada um, de cada sociedade.
Significa que todos reconhecemos que o amor, a verdade, a justiça, a liberdade são valores superiores e mais respeitáveis em relação ao ódio, à violência, à opressão, à injustiça. Por aqui vemos que os valores apresentam uma bipolaridade, não os podemos apenas pensar do lado bom, do lado do positivo, mas com dois polos o positivo e o negativo: bem e mal; verdade e erro; belo e feio; correto e incorreto. Quer isto dizer que quando dizemos que uma pessoa agiu mal, que por fraqueza ou engano, propositada ou despropositadamente fez o mal, não queremos dizer que agiu sem valores, queremos dizer que não aprovamos esses valores. O mesmo acontece para a consideração de uma sociedade sem valores, de uma denominada crise de valores, o mesmo não significa que a sociedade não se rega por valores, mas que os mesmos possam não coincidir com os meus. Pois, “quem declara que não há valores, quer na verdade dizer que a maior parte das pessoas valorizam o que ele não valoriza e não valorizam o que ele valoriza”[8].
Esta bipolaridade permite-nos afirmar uma outra ideia, de que valorizar não é uma atitude neutra perante as coisas, valorizar é preferir, é apreciar determinadas ‘coisas’ em função de outras, é optar por um dos lados.
Se podemos, por um lado afirmar a bipolaridade dos valores, por outro, podemos aferir que existem valores muito diferentes dos nossos, sendo que a Filosofia dos Valores ou Axiologia os classifica fundamentalmente em três domínios: da ética (como devemos agir e relacionarmos com os outros); da estética (o domínio do belo e da arte) e da religião (a relação com o divino). No âmbito dos valores éticos destacam-se a generosidade, a liberdade e a justiça. No âmbito dos valores estéticos destacam-se a beleza, a harmonia, a elegância, a originalidade. No âmbito dos valores religiosos destacam-se a fé e o sagrado[9].
A par desta classificação podemos fazer uma outra distinção que nos ajude a perceber o alcance da problemática dos valores, é o que se refere à distinção entre valor intrínseco (algo que vale por si mesmo) e valor instrumental (algo que vale enquanto meio para alcançar um determinado fim que também tem valor). Desidério Murcho ao introduzir esta noção[10] através do exemplo do valor fundamental que é a vida, não a resolve, naturalmente porque a mesma tem outras implicações sobretudo no que se refere ao tema do multiculturalismo e da influência que a cultura exerce em determinados valores. Assunto que será posteriormente analisado.
Acerca desta problemática dos valores, impõe-se, ainda, uma outra distinção que nem sempre é óbvia ou sequer aceite indiscutivelmente pela comunidade filosófica: juízos de facto e juízos de valor[11]. Daniel Kolak e Raymond Martin dão-nos alguns exemplos simples pelos quais reconhecemos esta distinção: “em vez de dizer (ou pensar) que é bom ser-se sincero quando se fala com outras pessoas (um juízo de valor), poderia dizer que ser sincero promove normalmente a compreensão mútua e a confiança (juízo factual) ”[12]. Quando nos referimos a um juízo de facto não queremos dizer, por si só, que o juízo seja correto, apenas que é um juízo sobre factos, podendo por esta razão serem verdadeiros ou falsos. Por outro lado, o essencial para um juízo de valor é que este expresse uma atitude favorável ou desfavorável[13].
Ao contrário dos juízos de facto que nos fornecem informações acerca do mundo, os juízos de valor não se limitam a descrever as coisas, não se limitam apenas a dar informações, mas expressam avaliações que procuram determinar determinados comportamentos. Quer isto dizer, quando digo que alguém é honesto ou, pelo contrário, desonesto, estou a querer circunscrever determinado comportamento em detrimento de outro, sugere uma ‘espécie’ de atitude normativa-descritiva. Mas o que faz com que considere superior a honestidade em relação à desonestidade?
A resposta a esta distinção passará pela opção das perspetivas, do subjetivismo de que os valores não podem ser universalmente verdadeiros, ou do objetivismo, de que mesmo sendo universalmente verdadeiros, desconhecemos a verdade acerca deles. Assunto que será posteriormente abordado.
Centrando-nos ainda na distinção que há pouco fazíamos entre juízo de facto e juízo de valor, referindo que a mesma distinção não seria indiscutível pela comunidade filosófica, o Manual adotado[14] explora esta dificuldade pela questão da exclusividade, quer isto dizer que podem haver duas posições acerca da distinção entre juízos de facto e juízos de valor, a saber: nenhum juízo pode ser dos dois tipos; ou se todos os juízos são juízos de facto, sendo que os juízos de valor são uma parte constituinte destes. A opção do Manual passa pela aceitação da primeira posição alertando para existência de dois problemas: primeiro, a classificação de um juízo de facto é independente da consideração de saber ou vir a saber se esse juízo é verdadeiro ou falso ou se depende das intenções de quem o exprime; segundo, alguns juízos de facto exprimem preferências e valorações, quando estes juízos exprimem preferências emitidos pelo próprio autor do juízo. Neste segundo caso, quer dizer que alguns juízos de facto implicam certos juízos de valores que podem, igualmente, ser tomados como verdadeiros ou como falsos.

Júlio Maria

[1] Cf. Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo, 1987, p. 1464. [2] Cf. MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, Fundação Francismo Manuel dos Santos, Coleção Ensaios da Fundação, Ed. Relógio D’Água, Lisboa, 2011, p. 43. [3] Idem, Ibidem, p. 43. [4] Idem, Ibidem, p. 44. [5] Idem, Ibidem, p. 45. [6] Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo, 1987, p. 1469. [7] KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, Ed. Temas e Debates, Lisboa, 2004, pp. 150-151. [8] MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, p. 46. [9] Cf. António Padrão, Valor, juízos de valor e teorias, http://criticanarede.com/valor.html (consultado a 22 de novembro de 2016); Cf. Pedro Galvão, Valores e valoração: a questão dos critérios valorativos, http://criticanarede.com/valores.html (consultado a 22 de novembro de 2016) [10] MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo, p. 48. [11] KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, pp. 146-158. [12] Idem, Ibidem, p. 146. [13] Cf. Idem, Ibidem, p. 146. [14] LOPES, António; GALVÃO, Pedro; MATEUS, Paula, Razões de Ser, Filosofia 10º ano, Ed. Porto Editora, Porto, 2016. Manual, pp. 80-83.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A LIBERDADE DA VONTADE

A concepção de nós mesmos como agentes livres é fundamental para toda a nossa autoconcepção.
Por outro lado, sentimo-nos inclinados a dizer que, uma vez que a natureza consiste em partículas e nas suas relações recíprocas e, dado que tudo se pode explicar em termos dessas partículas e das suas relações, não há simplesmente espaço para a liberdade da vontade. O indeterminismo ao nível das partículas da física não é efectivamente, um apoio para qualquer doutrina da liberdade da vontade; porque, em primeiro lugar, a indeterminação estatística ao nível das partículas não mostra qualquer indeterminação ao nível dos objectos que nos afectam. Em segundo lugar: do facto de as partículas serem determinadas apenas estatisticamente não se segue que a mente humana possa forçar as partículas estatisticamente determinadas a desviarem-se do seu caminho.
Como muitos filósofos salientaram, se existe um facto da experiência com que todos somos familiarizados, é o facto simples de que as nossas próprias escolhas, decisões, raciocínios e cogitações diferem do nosso comportamento. Embora tenhamos feito uma coisa, temos a certeza de sabermos perfeitamente bem que poderíamos ter feito alguma coisa mais. Sabemos que poderíamos ter feito alguma coisa mais, porque escolhemos algo em virtude de determinadas razões. Mas tínhamos consciência de que havia também razões para escolher outra coisa e, na verdade, podíamos ter exigido por essas razões e escolhido essa coisa. Constitui um facto empírico evidente que o nosso comportamento não é previsível da mesma maneira que é predizível o comportamento dos objectos rolando por um plano inclinado. E a razão por que não é predizível dessa maneira é porque, muitas vezes, poderíamos ter agido de um modo diferente de como agimos efectivamente. A liberdade humana é precisamente um facto de experiência. Se desejarmos alguma prova empírica de tal facto, podemos sem mais aludir à possibilidade que sempre nos cabe de falsificarmos quaisquer predições que alguém possa ter feito acerca do nosso comportamento.
Estamos perante um enigma filosófico característico. Por um lado, um conjunto de argumentos muito poderosos força-nos à conclusão de que a vontade livre não existe no Universo. Por outro, uma série de argumentos poderosos baseados em factos da nossa própria experiência inclina-nos para a conclusão de que deve haver alguma liberdade da vontade, porque aí todos a experimentamos em todo o tempo.
Mas a vontade livre e o determinismo são perfeitamente compatíveis entre si. Naturalmente, tudo no Mundo é determinado mas, apesar de tudo, algumas acções humanas são livres. Dizer que são livres não é negar que sejam determinadas; é afirmar que não são constrangidas. Não somos forçados a fazê-las: assim, por exemplo, se um homem é forçado a fazer alguma coisa porque lhe apontam uma arma, ou se sofrem de alguma compulsão psicológica, então, a sua conduta é genuinamente não livre. Mas se, por outro lado, ele age livremente, se age, como dizemos, por sua livre vontade, então, o seu comportamento é livre. Claro está, é também completamente determinado, uma vez que cada aspecto do seu comportamento é determinado pelas forças físicas que operam sobre as partículas que compõem o seu corpo, tal como operam sobre todos os corpos do universo.
Ora bem, porque esta concepção afirma a compatibilidade da vontade livre e do determinismo recebe habitualmente o nome de “compatibilismo”. Penso que é inadequada como solução para o problema e eis porquê. O problema em torno da liberdade da vontade não se põe a propósito da existência ou não existência de razões psicológicas internas que nos levam a fazer coisas, ou também de existência de causas físicas externas e de compulsões internas.
Será sempre verdadeiro afirmar de outra pessoa que ela poderia ter agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as outras condições?
Afirmei que temos uma convicção da nossa vontade livre simplesmente baseada nos factos da experiência humana. Mas, até que ponto são fidedignas essas experiências?
A tese do determinismo psicológico é que as causas psicológicas prévias determinam todo o nosso comportamento da maneira como determinam o comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente compulsivo. Mas, as provas disponíveis sugerem que uma tal tese é falsa. Na realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados intencionais – as nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. – e, nesse sentido, os nossos estados mentais funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente esses estados mentais e, apesar de tudo, não termos feito o que fazemos. Tanto quanto às causas psicológicas diz respeito, poderíamos ter agido de outra maneira.
Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos justamente a dizer, mais uma vez, que sim, todo o comportamento é determinado, mas o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por processos racionais de pensamento? Não teremos nós o resultado de que tudo o que fazemos estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer sentido filosoficamente interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso comportamento, isto é apenas uma questão de adoptar uma terminologia tradicional. Assim como continuamos a falar de “pôr do Sol”, embora saibamos que o Sol literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de “agir por livre vontade”, embora não exista tal fenómeno.
Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele parecer consistente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos, tanto quanto conhecemos algo acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo fosse verdadeiro, então, o Mundo actuaria na mesmíssima maneira como actua, e a única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu funcionamento seriam falsas. E, por seu turno, esta crença liga-se com crenças acerca da responsabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas se o libertarismo, que é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais das nossas crenças acerca do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece que deveríamos postular a existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de interferir com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira deveríamos conter alguma entidade que fosse capaz de desviar as moléculas das suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como funciona o Mundo.
A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o indeterminismo da física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado, somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade.
Por que é que não há espaço para a liberdade da vontade na concepção científica contemporânea? Na física, os nossos mecanismos explanatórios básicos funcionam de baixo para cima. E a relação da mente com o cérebro é um exemplo de uma tal relação. As características mentais são causadas por e realizadas em fenómenos neurofisiológicos. Mas deparamos com a causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a causação de cima para baixo, durante uma passagem de tempo. Assim, por exemplo, suponhamos que eu quero causar a libertação de acetilcolina neurotransmissora nas placas terminais do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a simples decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o acontecimento mental, a intenção de levantar o meu braço causa o acontecimento físico, a libertação da acetilcolina – um caso de causação de cima para baixo. Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os acontecimentos mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Enquanto aceitarmos esta concepção do modo como a natureza opera, então não parece haver qualquer espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta concepção, a mente pode apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é, então, tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas nos microníveis básicos da física.
Mas se a liberdade é uma ilusão, por que é que é uma ilusão que, aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a propósito da concepção da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes.
Não podemos abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Este sentido de liberdade não é apenas uma característica de deliberação, mas é parte de qualquer acção, seja premeditada ou espontânea.
SEARLE, John, Mente, Cérebro e Ciência, 2000. Lisboa: Edições 70, pp.105-121

domingo, 20 de novembro de 2016

LIVRE-ARBÍTRIO

Supõe que estás na bicha de uma cantina e que, quando chegas às sobremesas, hesitas entre um pêssego e uma grande fatia de bolo de chocolate com uma cremosa cobertura de natas. Escolhes o bolo.
No dia seguinte perguntas-te: “Podia ter comido antes o pêssego” Que quer dizer isto? E será verdade?
Havia pêssegos quando estavas na bicha da cantina: e tiveste oportunidade de ter tirado antes um pêssego. Mas não é apenas isso que queres dizer. Queres dizer que podias ter tirado o pêssego em vez do bolo. Podias ter feito algo diferente daquilo que realmente fizeste. Antes de te teres decidido, estava em aberto se havias de tirar fruta ou bolo, e foi apenas a tua escolha que decidiu qual dos dois havias de comer.
Quando afirmas “podia ter comido antes o pêssego”, queres dizer que isso dependia apenas da tua escolha?
Mas isto ainda não parece suficiente: Não queres apenas dizer que, se tivesses escolhido o pêssego, teria sido isso que terias comido. Quando dizes “podia ter comido antes o pêssego”, também queres dizer que podias tê-lo escolhido – não há aqui ses nenhuns. Mas que quer isto dizer?
Não pode ser explicado fazendo notar outras ocasiões em que de facto escolheste comer fruta. O que estás a dizer é que podias ter escolhido um pêssego em vez de bolo de chocolate naquele momento, tal como as coisas realmente eram. Pensas que podias ter escolhido um pêssego mesmo que todas as restantes coisas fossem exactamente da mesma maneira até ao momento em que de facto escolheste bolo de chocolate.
Esta é uma ideia de “pode” ou “poderia” que aplicamos só às pessoas (e talvez a alguns animais). Quando dizemos “o carro podia ter chegado ao cimo da colina”, queremos dizer que o carro tinha potência suficiente para chegar ao cimo da colina se alguém o tivesse conduzido até lá.
Até ao momento em que escolhes nada determina irrevogavelmente qual será a tua escolha. Escolher o pêssego continua a ser para ti uma possibilidade em aberto até ao momento em que de facto escolhes bolo de chocolate. A tua escolha não está determinada à partida.
Algumas coisas que acontecem estão determinadas à partida. Por exemplo, parece estar determinado à partida que o Sol se levantará amanhã a uma certa hora. O Sol não se levantar amanhã e continuar a noite não é uma possibilidade em aberto. Tal não é possível porque apenas poderia acontecer se a Terra parasse de rodar, ou se o Sol deixasse de existir, e não se passa nada na nossa galáxia que pudesse fazer com que qualquer destas coisas acontecesse. Se não existir qualquer possibilidade de a Terra parar ou de o Sol não estar lá, não há qualquer possibilidade de o Sol não se levantar amanhã.
O que queres dizer é que não havia processos ou forças a operarem antes de fazeres a tua escolha que tenham tornado inevitável o facto de teres escolhido bolo de chocolate.
Se, na verdade, estivesse realmente determinado à partida que irias escolher comer bolo, como podia simultaneamente ser verdade que podias ter escolhido comer fruta? A verdade é que nada te teria impedido de comer um pêssego se o tivesses escolhido em vez do bolo. Mas estes ses não são o mesmo que dizer apenas que podias ter escolhido um pêssego. Não poderias tê-lo escolhido a não ser que a possibilidade continuasse aberta até a fechares com a tua escolha do bolo.
Algumas pessoas pensam que nunca é possível fazermos qualquer coisa diferente daquilo que de facto fazemos neste sentido absoluto. Reconhecem que aquilo que fazemos depende das nossas escolhas, decisões e desejos e que fazemos escolhas diferentes em circunstâncias diferentes. Mas afirmam que, em cada caso, as circunstâncias que existem antes de agirmos determinam as nossas acções e tornam-nas inevitáveis. O total das experiências, desejos e conhecimentos de uma pessoa, a sua constituição hereditária, as circunstâncias sociais e a natureza da escolha com que a pessoa se defronta, em conjunto com outros factores dos quais pode não ter conhecimento, combinam-se todos para fazerem com que uma acção particular seja inevitável nessas circunstâncias.
A ideia não consiste em que podemos conhecer todas as leis do universo e usá-las para prevermos o que irá acontecer. Em primeiro lugar, não podemos conhecer todas as circunstâncias complexas que afectam uma escolha humana. Em segundo lugar, mesmo quando chegamos a saber alguma coisa acerca dessas circunstâncias e tentamos fazer uma previsão, isso já é uma alteração nas circunstâncias, o que pode alterar o resultado previsto. Mas a previsibilidade não é o que está em questão.
A hipótese é que existem leis da natureza, tal como aquelas que governam o movimento dos planetas, que governam tudo o que acontece no mundo.
Se isso é verdade, então mesmo quando estavas a decidir que sobremesa irias comer já estavas determinado pelos muito factores que operavam sobre ti e em ti que irias escolher o bolo, Não poderias ter escolhido o pêssego, apesar de pensares que podias fazê-lo: o processo de decisão é apenas a realização do resultado determinado no interior da tua mente.
Se o determinismo é verdadeiro para tudo o que acontece, já estava determinado antes de nasceres que havias de escolher o bolo. A tua escolha foi determinada pela situação imediatamente anterior, e essa situação foi determinada pela situação anterior a ela, e assim sucessivamente, até ao momento em que quiseres recuar.
Mesmo que o determinismo não seja verdadeiro para tudo o que acontece – mesmo que algumas coisas aconteçam simplesmente, sem serem determinadas por causas que já existiam – continuaria a ser significativo se tudo aquilo que fizemos estivesse determinado antes de o fazermos.
Algumas pessoas pensam que, se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode ser razoavelmente elogiado ou condenado por nada, tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair. Outras pessoas pensam que continua a fazer sentido elogiar as boas acções e condenar as más, ainda que elas sejam inevitáveis. Afinal de contas, o facto de alguém estar determinado à partida a comportar-se mal não quer dizer que não se tenha comportado mal. Se rouba os teus discos, isso revela falta de consideração e desonestidade, quer tenha sido determinado, quer não. Alem do mais, se não o condenarmos, ou talvez até se não o castigarmos, voltará, provavelmente a fazê-lo.
Por outro lado, se pensarmos que aquilo que fez estava determinado à partida, isso parece-se mais com o castigo de um cão que roeu o tapete. Não quer dizer que o consideramos responsável por aquilo que fez: estamos apenas a tentar influenciar o seu comportamento no futuro. Por mim, não penso que faça sentido condenar alguém por algo que lhe era impossível não fazer.
Muitos cientistas acreditam hoje que o determinismo não é verdadeiro para as partículas básicas da matéria. – que numa dada situação existe mais de uma coisa que um electrão pode fazer. Se o determinismo também não for verdadeiro para as acções humanas, talvez isso deixe algum espaço para o livre arbítrio e para a responsabilidade. E se as acções humanas, ou pelo menos algumas de entre elas, não estiverem determinadas à partida?
Mas o problema reside em que, se a acção não estava determinada à partida pelos teus desejos, crenças e personalidade, entre outras coisas, parece que foi apenas algo que aconteceu, sem qualquer explicação. Mas, nesse caso, como pode ter sido algo feito por ti?
A acção livre limita-se a ser uma característica básica do mundo e não pode ser analisada. Há uma diferença entre algo que aconteceu, sem uma causa, e uma acção que se limita a ser realizada, sem uma causa.
Portanto, talvez o sentimento de que podias ter escolhido um pêssego em vez de uma fatia de bolo seja uma ilusão filosófica, que não podia ser correcta, fosse qual fosse o caso.

NAGEL, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? – uma iniciação à filosofia, 2ª edição, 2007. Lisboa: Gradiva, pp. 46-55

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

livre-arbítrio e determinismo

Personagens: Lázaro: defensor do livre arbítrio; Daniel: defensor do determinismo; Carolina: defensora do compatibilismo.
Notas introdutórias
LÁZARO: Aí vem a Carolina. Talvez ela nos possa dizer o que pensa sobre o assunto.
DANIEL: Olá, Carolina.
CAROLINA: Olá, Daniel. Olá, Lázaro.
LÁZARO: Eu e o Daniel estávamos a falar do julgamento por assassínio do Leopoldo e do Carlos.
CAROLINA: É esse o julgamento no qual Clarence Darrow tentou persuadir o juiz de que os réus não deveriam ser condenados à morte por terem assassinado um miúdo?
LÁZARO: É. O julgamento foi notícia por todo o país. Leopoldo e Carlos tinham apenas dezoito anos na altura e os seus pais eram bem conhecidos em Chicago, onde viviam.
CAROLINA: Porque é que o Leopoldo e o Carlos mataram o miúdo?
LÁZARO: Queriam cometer o crime perfeito.
CAROLINA: E é tudo?
LÁZARO: Sim. Foram a uma escola precisamente na altura em que as crianças estavam a sair, fizeram entrar no carro um rapaz que, por acaso, conheciam, deram umas voltas com ele, e depois deram-lhe com um cinzel na cabeça, de tal modo que ele sangrou até morrer no próprio carro. Depois disso, enfiaram o corpo do rapaz para dentro de um túnel situado fora da localidade.
CAROLINA: Que coisa horrível!
LÁZARO: Também acho. Talvez tenha sido por isso que os jornais fizeram um grande espalhafato.
CAROLINA: Qual foi a estratégia de Darrow no julgamento?
LÁZARO: Darrow defendeu que o juiz deveria ter compaixão dos dois jovens assassinos porque o seu acto foi o resultado de causas sobre as quais não tinham controlo. Deixa-me ler-te aquilo que ele realmente disse: "Eu não sei o que fez estes dois rapazes cometer este acto de loucura, mas sei que há uma razão para tal. Sei que eles não o engendraram. Sei que qualquer uma causa, de um número infinito de causas que vão até ao início, poderá ter determinado o espírito destes rapazes, que vocês devem condenar à morte por malícia, ódio e injustiça porque alguém, no passado, pecou contra eles".

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral

De acordo com um ser extraterrestre tralfamadoriano, no livro Slaughterhouse Five de Kurt Vonnegut, Jr., os tralfamadorianos viajaram até aos confins do universo e só na Terra se fala de livre-arbítrio. Talvez. Mas fala-se mesmo muito.
1. Livre-arbítrio versus determinismo
O problema do livre-arbítrio versus determinismo surge devido a uma aparente contradição entre duas ideias plausíveis. A primeira é a ideia de que os seres humanos têm liberdade para fazer ou não fazer o que queiram (obviamente, dentro de certos limites ― ninguém acredita que possamos voar apenas por querermos fazê-lo). Esta é a ideia de que os seres humanos têm vontade livre ― ou livre-arbítrio. A segunda é a ideia (...) de que tudo o que acontece neste universo é causado, ou determinado, por acontecimentos ou circunstâncias anteriores. Diz-se de aqueles que aceitam esta ideia que acreditam no princípio do determinismo e chama-se-lhes deterministas. (De aqueles que negam esta segunda ideia diz-se que são indeterministas.)
Pensa-se frequentemente que estas duas ideias conflituam porque parece que não podemos ter livre-arbítrio ― as nossas escolhas não podem ser livres ― se são determinadas por acontecimentos ou circunstâncias anteriores.
2. Somos nós sempre responsáveis pelas nossas acções?
Além disso, algumas pessoas defenderam que se tudo o que fazemos é determinado pelo que aconteceu no passado de uma forma tal que as nossas escolhas nunca são livres, então não somos moralmente responsáveis por nenhuma das nossas acções, porque nesse caso não escolhemos livremente fazê-las. Pode esta ideia estar correcta?

Dia Mundial da Filosofia - Agrupamento de Escolas de Oliveira de Frades


O Moscardo


Livre-arbítrio, Determinismo e Responsabilidade Moral

Temos ou não temos livre-arbítrio? Se não tivermos livre-arbítrio isto significa que agimos como “robots, ou autómatos, sem escolhas próprias”[1], vivemos a agimos de acordo com aquilo que está programado e previsto. Havendo a possibilidade do ser humano viver num mundo assim, onde toda a ação humana fosse predeterminada, poderíamos ser programados para viver uma vida onde praticássemos apenas e só boas ações. Num mundo assim, não haveria responsabilidade moral, nem as nossas ações seriam genuinamente boas, porque já estariam determinadas.
Será que nos é possível fazer uma coisa diferente daquilo que realmente fiz? Será que em função de todas as escolhas possíveis a minha decisão já está determinada? Até ao momento em que escolho nada determina irrevogavelmente a minha escolha?[2]
Se, por um lado, existem coisas que estão determinadas à partida (o sol nascer amanhã), por outro, existem pessoas que acreditam que nunca é possível fazer uma escolha diferente daquilo que de facto fizemos, ou seja, não é possível ter escolhido de outra forma. O “total de experiências, desejos, e conhecimentos de uma pessoa, a sua constituição hereditária, as circunstâncias sociais e a natureza da escolha com que a pessoa se defronta, em conjunto com outros fatores dos quais não pode ter conhecimento, combinam-se todos para fazer com que uma ação particular seja inevitável nessas circunstâncias”[3], esta perspetiva é o determinismo. Não se trata aqui de uma questão de previsibilidade, mas da impossibilidade de ter acontecido de outra maneira, ou seja, “existem leis na Natureza”[4] que determinam a forma como a ação irá decorrer, não havendo possibilidade de acontecer de outra forma.
Para a perspetiva determinista, o conjunto de leis e de circunstâncias faz com que a escolha do agente seja um resultado pré-determinado, não poderia ser de outra forma. Ao aceitarmos esta perspetiva estaríamos a colocar de lado a responsabilidade moral das nossas ações, ou seja: será possível sermos responsáveis por uma ação que já estava determinada acontecer desse forma e não poderia acontecer de outra forma? Segundo Thomas Nagel “não faria de modo algum sentido condenar fosse quem fosse por fazer alguma coisa má ou elogiá-lo por fazer alguma coisa boa”[5]. Para a perspetiva determinista, quer o elogio quer a condenação não faria qualquer sentido tendo em conta o carácter da inevitabilidade das ações humanas, “tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair”[6].
Ao aceitarmos o determinismo por verdadeiro estamos a ameaçar a responsabilidade e a possibilidade de, livremente, entre as escolhas possíveis, podermos decidir por uma delas.
Contudo, há quem considere que o determinismo é verdadeiro e que ninguém pode ser culpado ou elogiado. Há, igualmente quem considere que o determinismo é verdadeiro e que faz sentido elogiar as boas ações e condenar as más, ou seja, “o facto de alguém estar determinado à partida a portar-se mal não quer dizer que não se tenha comportado mal”[7]. Mas fará algum sentido condenar alguém por algo que não lhe era impossível não fazer? Por outro lado, como será possível “compreender de que modo podemos fazer aquilo que não fazemos”?[8] Será que tudo o que o ser humano faz é determinado pelas circunstâncias em que se encontra e pelas suas condições psicológicas?
Isto significaria que todos pensamos e atuamos da mesma maneira. Mas a verdade é que nem todas as pessoas atuam da mesma maneira perante a mesma dificuldade, nem cada um de nós atua da mesma maneira perante o mesmo problema. Agimos e reagimos de acordo com as circunstâncias, escolhemos e decidimos por determinado caminho e tornamo-nos responsáveis por aquilo que fazemos, de bom e de mau.
Se aceitamos a perspetiva determinista de que tudo está determinado por leis da natureza poderíamos fazer a pergunta pelo mal: de onde vem o mal que fazemos? Seremos realmente responsáveis por aquilo que fazemos? Será possível falar de condenação ou imputabilidade sabendo que o sujeito estava determinado a agir daquela forma e não poderia escolher outra? A inevitabilidade das ações humanas opõe-se assim à possibilidade, não era possível agir de outra forma. Será difícil aceitar esta perspetiva, porque ora nos sentimos encurralados oura nos sentimos marionetas.
Contudo, situada entre estas duas perspetivas, o determinismo e o livre-arbítrio, encontra-se a dimensão ética do agir humano, sobretudo no que à responsabilidade diz respeito. Neste sentido, se as pessoas não têm livre-arbítrio então não são responsáveis pelo que fazem, porque tudo estaria determinado a acontecer dessa forma. Se, por outro lado, aceitamos que temos livre-arbítrio então demos ser responsáveis pelas nossas ações, razão pela qual elas podem ser censuráveis ou louváveis[9]
O facto de dizermos e optarmos pela perspetiva determinista não significa que na mesma não se possa falar de responsabilidade, porque, mesmo que tudo esteja determinado, mesmo que as minhas ações sejam inevitáveis, cada ser humano não deixa de pensar, de ter emoções e intenções e porque “frequentemente temos razões para o que fazemos e isto não deixará de ser assim se não tivermos livre-arbítrio”[10]. Desta forma, a negação do livre-arbítrio e a opção pelo determinismo não significa o fim da ética, porque somos capazes de deliberar, porque “pensamos sobretudo naquilo que queremos e no modo como diversas ações conduziriam a resultados diferentes”[11].
James Rachels apresenta-nos três condições para que uma ação responsável seja: censurável quando – “1) temos de ter realizado o ato em questão, 2) o ato tem de ser errado em algum sentido e 3) temos de não ter uma desculpa para o ter realizado”[12]; será louvável quando – “1) realizou de facto esse ato, 2) foi bom o que tenha realizado e 3) condições eliminadoras de crédito”[13].
A noção comum e importante nas duas considerações de responsabilidade é a noção de desculpa, sendo que quando realizamos ações que mereçam ser louvadas, é difícil encontra uma desculpa para tal, talvez porque as pessoas não evitem ser louvadas. O autor enumera um conjunto de seis desculpas legítimas: engano; acidente; coerção; ignorância; insanidade. A desculpa “tira o peso de cima quando fizemos algo de mal”[14].
Apesar de considerarmos importante salientar esta noção de responsabilidade ao abordarmos o problema do livre-arbítrio, esta mesma noção será, posteriormente, retomada na unidade que versará sobre a dimensão ética (a dimensão ético-política: análise e compreensão da experiência convivencial).
Por fim, ao abordarmos o tema do livre-arbítrio parece-nos importante considerar as condicionantes das ações humanas, queremos com isto dizer que apesar de condicionadas não significa necessariamente que as nossas ações estejam determinadas. Estas condicionantes da ação, como os fatores físico-biológicos, histórico-culturais e psicológicos fazem parte do nosso dia a dia e levantam a questão de se saber se, em função destas condicionantes, se agimos ou não livremente. Será que a existência destas condicionantes determina a ação humana e impede o ser humano do seu livre-arbítrio? A estas perguntas surgem, então, as três possíveis respostas: determinismo radical, determinismo moderado e libertismo. Embora enunciadas nesta aula estas respostas são para ser analisadas e aprofundadas nas aulas seguintes. Será, precisamente, a desconstrução do argumento determinista, pela negação da primeira (Libertismo) e da segunda premissa (Determinismo moderado) que poderá ser formulado da seguinte forma: “(1) Tudo o que fazemos é causado por forças que não controlamos. (2) Se as nossas ações são causadas por forças que não controlamos, então não agimos livremente. (3) Logo, nunca agimos livremente.[15]
Júlio Maria



[1] WARBURTON, Nigel, Elementos Básicos de Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 1998, p. 48.[2] Cf. NAGEL, Thomas, Que quer dizer tudo isto? Uma Iniciação à Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 1997, p. 48.[3] Idem, Ibidem, p, 49.[4] Idem, Ibidem, p. 50.[5] Idem, Ibidem, p. 51.[6] Idem, Ibidem, p. 52.[7] Idem, Ibidem, p. 52.[8] Idem, Ibidem, p. 54.[9] RACHELS, James, Problemas da Filosofia, Coleção Filosofia Aberta, Ed. Gravida, Lisboa, 2009, p. 200-203.[10] Idem, Ibidem, p. 197.[11] Idem, Ibidem, p. 198.[12] Idem, Ibidem, p. 201.[13] Idem, Ibidem, p. 202.[14] Idem, Ibidem, p. 201.[15] Idem, Ibidem, p. 182.