sexta-feira, 31 de outubro de 2008

SOMOS NÓS QUE ESCOLHEMOS O NOSSO SER

Nenhuma moral geral pode indicar-vos o que há a fazer: não há sinais no mundo. Os católicos responderão: sim, há sinais. Admitamo-lo: sou eu mesmo, em todo o caso, quem escolhe o significado desses sinais. Quando estive preso, conheci um homem assaz notável que era jesuíta. Entrara ele para a Companhia da seguinte maneira: tinha sofrido um certo número de desastres bem dolorosos: em criança, tinha-lhe morrido o pai deixando-o pobre. Bolseiro de uma instituição religiosa, faziam-lhe sentir aí constantemente que ele fora aceite por caridade; e em consequência disso não teve certas distinções honoríficas que agradam às crianças; depois, pelos dezoito anos, foi mal sucedido numa aventura sentimental; por fim, pelos vinte e dois anos, coisa bastante pueril, mas que foi a gota de água que fez transbordar o vaso, falhou a sua preparação militar. Este jovem podia pois pensar que tinha falhado em tudo; era um sinal, mas um sinal de quê? Podia refugiar-se na amargura ou no desespero. Mas ele pensou, muito habilmente para si, que era o sinal de que não estava talhado para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé, lhe eram acessíveis. Viu portanto nisso a palavra de Deus, e entrou na Ordem. Quem não vê que a decisão do significado do sinal foi só ele que a tomou?
O desamparo implica sermos nós a escolher o nosso ser. O desamparo é paralelo da angústia. Quanto ao desespero, esta expressão tem um sentido extremamente simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou com o conjunto das probabilidades que tornam a nossa acção possível.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 213-214

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Livre-arbítrio e Determinismo v

Parte V
Será o determinismo compatível com a responsabilidade moral?
CAROLINA: Penso que não é necessário, para defender o determinismo, afirmar tudo aquilo que o Daniel diz. Julgo que uma pessoa pode acreditar no determinismo, como eu acredito, sem ter de negar a responsabilidade moral, como faz o Daniel.
LÁZARO: É um ponto de vista interessante.
CAROLINA: Concordo com o Daniel quando ele afirma que os indícios a favor do determinismo são de tal modo fortes que temos de acreditar que o determinismo é verdadeiro. E concordo contigo, Lázaro, quando dizes que a legitimidade da culpa, do castigo e da moralidade mostra que somos responsáveis por aquilo que fazemos. Nem o determinismo, nem a responsabilidade moral podem ser negados sem que se neguem também factos evidentes.
LÁZARO: Depreendo que acreditas que a responsabilidade moral é compatível com o determinismo, certo?
CAROLINA: Sim. Uma pessoa pode acreditar em ambas sem se contradizer.
LÁZARO: Gostaria que te explicasses melhor, pois parece-me haver aí uma contradição. O determinismo implica que as pessoas não podem agir de modo diferente daquele que agem, e a responsabilidade moral pressupõe que as pessoas podem agir de forma diferente daquela que de facto agem.
CAROLINA: Concordo contigo quando dizes que a responsabilidade moral pressupõe que as pessoas podem agir de modo diferente, mas não penso que essa possibilidade entre em conflito com o determinismo. O que queremos dizer quando afirmamos que podemos agir de modo diferente daquele que realmente agimos é apenas que nenhuma pessoa ou circunstância nos força a agir ou nos impede de fazer algo diferente. Mesmo que as nossas acções sejam causadas pelas nossas crenças, desejos ou escolhas, isto não significa que a tal tenhamos sido forçados.
LÁZARO: Por que é que defines "a capacidade de agir de outro modo" dessa forma?
CAROLINA: Defino-a assim porque é assim que, normalmente, a entendemos. Por exemplo, um assaltante de um banco que poderia não ter assaltado o banco é alguém que não foi forçado agir dessa maneira... É este sentido típico da "capacidade de agir de outro modo" que é necessário para haver responsabilidade moral e que é compatível com o determinismo.
LÁZARO: Podes explicar isso melhor?
CAROLINA: Claro. As nossas acções podem ser causadas pelas nossas crenças, desejos e escolhas e, ao mesmo tempo, não serem forçadas por nenhuma pessoa ou circunstância. O exemplo do ladrão de bancos é esclarecedor. Ele poderia não ter assaltado o banco uma vez que ninguém o forçou a isso, no entanto, a acção de assaltar o banco foi causada pela sua crença de que poderia escapar e pelo seu desejo de ficar rico. Ele é moralmente responsável por aquilo que fez, ainda que a sua acção tenha sido causada...
Clifford Williams

Retirado de http://www.criticanarede.com/

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Livre-arbítrio e Determinismo iv

Parte IV
Culpa e castigo
DANIEL: Sim. Começo com o primeiro ponto. Quando culpamos alguém por essa pessoa ter feito algo de errado, ou quando castigamos alguém por ter infringido a lei, fazemo-lo porque queremos, por um lado, impedir que essa pessoa o volte a fazer e, por outro, porque queremos impedir que outras pessoas façam o mesmo. Quando elogiamos alguém por ter feito algo de bom ou o recompensamos por ter feito algo de benéfico para a sociedade, fazemo-lo porque queremos encorajá-lo, a ele e aos outros, a fazer o mesmo. Estes motivos são a razão pela qual julgamos as pessoas que infringiram a lei; e são a razão pela qual educamos os nossos filhos e os elogiamos as suas boas acções.
LÁZARO: Como é que isso refuta a minha afirmação de que a culpa e o castigo só fazem sentido se as pessoas forem moralmente responsáveis por aquilo que fazem?
DANIEL: Encorajar as pessoas para agir de um certo modo, tentar modificar os seus padrões de comportamento, e impedi-los de magoar as outras pessoas, não pressupõe que as pessoas sejam moralmente responsáveis por aquilo que fazem. Estas acções pressupõem apenas que há uma forte probabilidade de que o sujeito a quem elas se dirigem seja forçado a agir de outro modo. É por isso que é não de todo absurdo culpar uma pessoa pelos seus delitos, e é por isso que é absurdo culpar uma pedra por ter partido uma janela, apesar de nem a pessoa nem a pedra serem moralmente responsáveis por aquilo que fazem. Tudo o que isto significa é que a culpa, o elogio, e o castigo fazem sentido mesmo que tudo aquilo que fazemos seja causado por acontecimentos sobre os quais nós não temos controlo, e mesmo que nós não sejamos seres moralmente responsáveis.
LÁZARO: Parece-me que discordarias da estratégia de Clarence Darrow de utilizar o determinismo para tentar salvar os seus clientes de serem enforcados.
DANIEL: Claro, tens razão. Ainda que concorde com a crença de Darrow no determinismo, eu não penso que o determinismo possa ser usado como uma desculpa para evitar a culpa e o castigo.
LÁZARO: Concordo contigo quando afirmas que utilizamos a culpa e o castigo para fazer as pessoas mudar o seu comportamento e para proteger as outras pessoas do mal que lhes possa ser infligido. Mas, se isso é tudo o que queremos fazer quando culpamos e castigamos as pessoas, então penso que te esqueces de uma condição crucial para a legitimação do seu uso.
DANIEL: A que condição te referes?
LÁZARO: A condição que nos diz que uma pessoa deve ser culpada e condenada por uma determinada acção apenas se a puder evitar. Supõe, por exemplo, que uma pessoa é forçada, porque tem uma arma apontada à cabeça, a conduzir o carro da fuga de um assalto a um banco. Ou supõe que uma pessoa, acidentalmente, tropeça noutra e que esta, em resultado do choque, parte um braço. Em nenhum destes casos a pessoa poderia evitar a sua acção. Por conseguinte, em nenhum dos casos seria legítimo culpar essa pessoa e afirmar que o que ela fez é moralmente condenável. Nem seria legítimo acusar a pessoa do primeiro exemplo por cumplicidade no assalto a um banco, assim como não seria legítimo acusar a segunda pessoa de agressão. Esta condição é tão amplamente aceite que qualquer concepção de culpa e castigo que a negue deve ser seriamente questionada. Deves notar, também, que a condição da acção evitável torna a culpa e a punição incompatíveis com o determinismo. Se o determinismo fosse verdadeiro, então nada daquilo que fazemos poderia ser diferente; tudo aquilo que fazemos teria de ser feito e não poderia ser evitado. Assim, se o determinismo fosse verdadeiro, a culpabilização e o castigo deveriam ser abandonados uma vez que violariam o requisito da acção evitável.
DANIEL: Concordo contigo quando dizes que o determinismo implica que nada daquilo que fazemos pode ser evitado. Mas isto não significa que a culpa e o castigo deveriam ser abandonadas, e isto porque o princípio da acção evitável não é um requisito necessário para legitimar a culpa e o castigo. Os únicos requisitos são os seguintes: que o comportamento em questão seja indesejável; e que a culpabilização ou a punição ajudem a prevenir esse tipo de comportamento. Estes requisitos não são satisfeitos nos teus dois exemplos, e não o são porque em nenhum dos casos a culpabilização e o castigo ajudam a prevenir as pessoas de fazerem essas coisas. Por exemplo, nós não punimos alguém que, acidentalmente, tropeça e derruba outra pessoa, precisamente porque a culpabilização a e a punição não o impediriam, a ele ou a qualquer outra pessoa, de tropeçar novamente. Por contraste, a culpabilização e o castigo impediriam as pessoas de, deliberadamente, derrubar outras pessoas...
LÁZARO: O que pensas disto tudo Carolina?

Clifford Williams
Retirado de http://www.criticanarede.com/

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Livre-arbítrio e Determinismo iii

Parte III
Será o determinismo compatível com o livre arbítrio?
CAROLINA: ... Há um sério motivo para pensarmos que a liberdade é compatível com o determinismo. Os dados a favor do determinismo são tão fortes que não podemos deixar de acreditar neles. E a crença no livre arbítrio é tão evidente que também não a podemos abandonar... Dizer que somos livres é dizer que não há pessoas ou circunstâncias externas que nos impeçam de fazer aquilo que queremos fazer. Afirmar que somos livres neste sentido é compatível com a afirmação de que o determinismo é verdadeiro.
LÁZARO: Por que defines liberdade nesse sentido?
CAROLINA: Defino liberdade desse modo porque aquelas situações nas quais nós dizemos que uma pessoa é livre são situações nas quais nenhuma outra pessoa ou circunstância o impede de fazer aquilo que ela quer fazer. E naquelas situações nas quais dizemos que uma pessoa não é livre são situações nas quais há alguma pessoa ou circunstância que a impede de fazer aquilo que ela quer fazer. Um exemplo: supõe que, repentinamente, três pessoas agarram o meu braço impedindo que eu o possa mexer. Neste caso, eu não seria livre de coçar o meu nariz porque estava a ser impedida por eles.
LÁZARO: ... Pensas que, nesse sentido de liberdade, todas as pessoas têm a mesma liberdade?
CAROLINA: Não. Algumas pessoas têm menos liberdade do que outras. As pessoas que vivem sob ditaduras militares tem menos liberdade do que as pessoas dos outros países. Nos Estados Unidos da América, por vezes, os negros não podem obter o trabalho que gostariam por causa dos preconceitos dos brancos. Mas, ainda que algumas pessoas não sejam tão livres quanto outras, todos têm alguma liberdade, porque ninguém é forçado é fazer tudo aquilo que faz, e ninguém é impedido de fazer tudo aquilo que quer fazer.
LÁZARO: ... Podes explicar como é que, pela tua definição de liberdade, uma pessoa pode ser livre e determinada?
CAROLINA: Sim. Uma pessoa pode ser livre e determinada porque aquilo que ela faz pode ser causado por algo que acontece dentro dela, mesmo que ela não seja forçada por circunstâncias exteriores para agir de um certo modo. Se ela não é forçada a agir por circunstâncias exteriores, então age livremente. Ainda que a sua acção possa ser causada por algo interior, como, por exemplo, um motivo inconsciente ou um estado mental.
Determinismo e responsabilidade moral
DANIEL: Vamos considerar a questão da responsabilidade moral?
LÁZARO: Sim, façamos isso. Começarei por descrever o problema que o determinismo enfrenta. Aquilo que temos que fazer é explicar como as pessoas podem ser moralmente responsáveis por aquilo que fazem se tudo tem uma causa.
DANIEL: Podes explicar por que pensas que isso é um problema para o determinista?
LÁZARO: Claro. Se, como tu afirmas, tudo aquilo que fazemos tivesse uma causa, então nada daquilo que fazemos poderia ser diferente. E se nada daquilo que fazemos poderia ser diferente, então não seríamos moralmente responsáveis por coisa alguma que fazemos. Para sermos moralmente responsáveis por algo tem de haver mais do que uma coisa que possamos fazer. ... Concordas com estas afirmações?
DANIEL: Sim.
LÁZARO: Então segue-se que não somos moralmente responsáveis por coisa alguma que fazemos se tudo o que fazemos tem uma causa.
DANIEL: Sim, concordo. O determinismo e a responsabilidade moral são incompatíveis. Uma pessoa não pode consistentemente acreditar nas duas. Mas isso não constitui um problema para o determinista a não ser que existam razões decisivas para se pensar que nós sejamos de facto moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
LÁZARO: Não, não podemos fazer isso, porque há razões decisivas para acreditar na responsabilidade moral.
DANIEL: A minha resposta a isso é dizer que os indícios a favor do determinismo são tão fortes que devemos acreditar nele mesmo que isso signifique negar a responsabilidade moral. Aquilo que pensas serem boas razões para acreditar na responsabilidade moral na realidade não são boas razões, porque os indícios a favor do determinismo mostra que não somos moralmente responsáveis por coisa alguma que fazemos.
LÁZARO: Isso é, certamente, uma posição extrema. Vai contra aquilo em que quase todas as pessoas acreditam acerca da natureza humana, e vai contra factos claros e evidentes que mostram que somos moralmente responsáveis.
DANIEL: A que factos é que te referes?
LÁZARO: Refiro-me ao louvor, à censura, à recompensa, ao castigo, à culpa, ao remorso, ao sistema de justiça criminal e à moralidade. Tudo isto pressupõe que sejamos moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
DANIEL: Não, isso não está pressuposto. Tudo isso faz sentido mesmo que tudo aquilo que nós fazemos seja causado por acontecimentos sobre os quais não temos controlo e mesmo que não sejamos moralmente responsáveis por nada daquilo que fazemos.
LÁZARO: Não vejo como é que isso possa ser verdadeiro. Não faz sentido culpar ou punir alguém por uma certa acção a não ser que ele seja moralmente responsável por essa mesma acção. E não faz sentido julgar as acções de uma pessoa como certas ou como erradas, a não ser que ela tenha controlo sobre essas mesmas acções. Como é que podes negar estas verdades óbvias?
DANIEL: Não penso que sejam tão óbvias quanto isso. De facto, penso que são falsas. Aquilo que se pretende ao culpabilizar e punir as pessoas é dissuadi-las, de modo a que não prejudiquem outras pessoas, e proteger as outras pessoas de serem prejudicadas. Mais: a moralidade não é nada mais do que um sistema de preferências e de não-preferências (prazer, desejos e aversões). Uma vez que a persuasão, a protecção, as preferências e as não-preferências são todas compatíveis com o determinismo e com a negação da responsabilidade moral, segue-se que a culpa, a punição e a moralidade são todos compatíveis com o determinismo e com a negação da moralidade.
LÁZARO: Podes explicar isso mais detalhadamente?

Clifford Williams
Retirado de http://www.criticanarede.com/

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Livre-arbítrio e Determinismo ii

Parte II
Determinismo
LÁZARO: Talvez o melhor seja, antes de começarmos a discutir as nossas posições, definir "determinismo".
CAROLINA: Boa ideia. A minha definição de "determinismo" é: "Tudo o que acontece tem uma causa". Na terminologia da filosofia contemporânea isso é o mesmo que dizer que todo o acontecimento tem uma causa. Incluindo tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos.
LÁZARO: Por que usas essa definição e não "As pessoas não têm controlo sobre coisa alguma do que fazem"?
CAROLINA: Porque a questão de saber se temos ou não controlo sobre aquilo que fazemos é diferente da questão de saber se tudo o que fazemos é, ou não, causado. E também porque cada uma destas duas questões é diferente da questão de saber se temos controlo sobre tudo o que fazemos, mesmo que haja uma causa para tudo o que fazemos. Foi por isso que afirmei, anteriormente, que há três questões principais e não duas: 1) Temos, ou não, controlo sobre tudo o que fazemos? 2) Tudo o que fazemos é, ou não causado? E 3) podemos, ou não, ter controlo sobre o que fazemos mesmo que tudo aquilo que fazemos tenha uma causa? Podemos discutir estas três questões, separadamente, do mesmo modo que podemos atribuir três diferentes nomes às suas respostas — "livre arbítrio" se respondermos "sim" à primeira; "determinismo" se respondermos "sim" à segunda; e "compatibilismo" se respondermos "sim" à terceira pergunta.
DANIEL: Em geral, admite-se que o determinismo afirma que as pessoas não têm livre arbítrio, ou não?
CAROLINA: Sim, provavelmente as pessoas pensam que isso é o determinismo. Mas eu penso que aquilo que o determinismo afirma deve ser claramente separado daquilo que ele pode, ou não, implicar. Saber se ele implica, ou não, o livre arbítrio, é uma questão completamente diferente.
LÁZARO: Estás a dizer que devemos definir "determinismo" de um modo relativamente neutro, por exemplo, através da afirmação: "Tudo o que acontece tem uma causa"; para discutirmos primeiro a verdade desta afirmação; e só depois saber se ela implica a negação do livre arbítrio, certo?
CAROLINA: Certo.
LÁZARO: Isso parece um bom procedimento.
DANIEL: Vou começar por apresentar a razão pela qual acredito que tudo o que acontece tem uma causa. Penso que isto é verdade porque há variadíssimos acontecimentos para os quais encontramos causas. Quer na nossa vida diária, quer na ciência, encontramos inúmeros casos de acontecimentos causados.
LÁZARO: Podes dar alguns exemplos?
DANIEL: Claro. O vento faz as árvores quebrarem-se. A chuva causa o crescimento das plantas. A fricção causa calor.
LÁZARO: Podes dar exemplos que envolvam pessoas?
DANIEL: Sim. A fome faz as pessoas comer. O stress causa nervosismo nas pessoas. E por aí fora. São imensas as coisas causadas que nós fazemos, de modo que não podemos fugir à conclusão de que tudo o que nós fazemos tem uma causa.
CAROLINA: Eu concordo.
DANIEL: Além disso, o extraordinário sucesso da ciência em encontrar explicações faz com que seja quase impossível duvidar do determinismo. A biologia diz-nos que o tipo de pessoa que vamos ser é determinado hereditariamente. A sociologia diz-nos que muito daquilo que fazemos é determinado por factores culturais. A psicologia diz-nos que aquilo que nós somos enquanto adultos é determinado, em larga medida, por aquilo que nos aconteceu quando éramos crianças. A psiquiatria diz-nos que os nossos desejos conscientes são o produto de motivos inconscientes. A neurologia diz-nos que aquilo que fazemos é causado por acontecimentos electroquímicos no nosso cérebro. Todas juntas dizem-nos que tudo o que fazemos, dizemos, queremos ou pensamos é inteiramente produzido por acontecimentos prévios...
LÁZARO: ...eu não penso que o determinismo seja verdadeiro...
DANIEL: O que achas que está errado com o argumento?
LÁZARO: Duas coisas. Em primeiro lugar, não acho que ele mostre que tudo o que nós fazemos esteja determinado. Em segundo, parece-me que ignora o facto de que existem dados concretos contra o determinismo.
DANIEL: Pode explicar melhor esses dois pontos?
LÁZARO: Sim. Começo com o primeiro. Ainda que vocês tenham razão quando afirmam que a ciência e as nossas experiências do dia-a-dia nos mostram que muitas das coisas que fazemos estão determinadas, isto não mostra que tudo esteja determinado. Afinal há muitos acontecimentos dos quais nós não conhecemos as causas...
DANIEL: A Carolina e eu não estávamos a defender que já se tinham descoberto todas as causas. O que nós estávamos a dizer era que, a partir do facto de que muitas das coisas que nós fazemos são causadas, é legitimo inferir que tudo o que nós fazemos é causado. Nós fazemos constantemente raciocínios deste tipo. Por exemplo, inferimos que toda a erva no mundo é verde depois de vermos alguma erva verde...
LÁZARO: Bom, isso parece-me ser nada mais do que uma esperança que não está solidamente fundamentada. Mas, além disso, ainda há o meu segundo ponto, nomeadamente, que há efectivamente dados contra o determinismo.
DANIEL: Que dados são esses?
LÁZARO: Os dados resultam das descobertas feitas pelos cientistas num ramo da física chamado «física quântica» ou «microfísica». No início do século XX, os físicos começaram a estudar o comportamento dos electrões, dos fotões e de outras partículas subatómicas. O que descobriram foi que os fotões e os electrões se movimentavam ao acaso. Nada havia que explicasse a razão pela qual um fotão ou um electrão se movia de um determinado modo. Por exemplo, descobriu-se que os electrões por vezes saltavam de um órbita para outra sem uma causa aparente. E numa experiência na qual se disparavam fotões contra uma barreira com dois buracos, descobriu-se que era impossível explicar por que razão os fotões individuais entravam num buraco e não noutro...
DANIEL: Qual é, para ti, o significado dessas novas descobertas?
LÁZARO: Penso que a física quântica revolucionou a nossa visão da realidade. Antes, os cientistas pressupunham que todas as ocorrências eram causalmente explicáveis, mas agora a física quântica mostrou que esta suposição não é verdadeira.
DANIEL: ... Eu sou muito céptico quanto a isso. A única coisa que a física quântica mostrou, pelo menos que eu saiba, é que nós não conhecemos as causas de certos tipos de ocorrências. Mas isto é muito diferente de dizer que se sabe que essas ocorrências não têm causas...

Clifford Williams
Retirado de http://www.criticanarede.com/

domingo, 26 de outubro de 2008

Livre-arbítrio e Determinismo

Personagens: Lázaro: defensor do livre arbítrio; Daniel: defensor do determinismo; Carolina: defensora do compatibilismo.
Notas introdutórias
LÁZARO: Aí vem a Carolina. Talvez ela nos possa dizer o que pensa sobre o assunto.
DANIEL: Olá, Carolina.
CAROLINA: Olá, Daniel. Olá, Lázaro.
LÁZARO: Eu e o Daniel estávamos a falar do julgamento por assassínio do Leopoldo e do Carlos.
CAROLINA: É esse o julgamento no qual Clarence Darrow tentou persuadir o juiz de que os réus não deveriam ser condenados à morte por terem assassinado um miúdo?
LÁZARO: É. O julgamento foi notícia por todo o país. Leopoldo e Carlos tinham apenas dezoito anos na altura e os seus pais eram bem conhecidos em Chicago, onde viviam.
CAROLINA: Porque é que o Leopoldo e o Carlos mataram o miúdo?
LÁZARO: Queriam cometer o crime perfeito.
CAROLINA: E é tudo?
LÁZARO: Sim. Foram a uma escola precisamente na altura em que as crianças estavam a sair, fizeram entrar no carro um rapaz que, por acaso, conheciam, deram umas voltas com ele, e depois deram-lhe com um cinzel na cabeça, de tal modo que ele sangrou até morrer no próprio carro. Depois disso, enfiaram o corpo do rapaz para dentro de um túnel situado fora da localidade.
CAROLINA: Que coisa horrível!
LÁZARO: Também acho. Talvez tenha sido por isso que os jornais fizeram um grande espalhafato.
CAROLINA: Qual foi a estratégia de Darrow no julgamento?
LÁZARO: Darrow defendeu que o juiz deveria ter compaixão dos dois jovens assassinos porque o seu acto foi o resultado de causas sobre as quais não tinham controlo. Deixa-me ler-te aquilo que ele realmente disse: "Eu não sei o que fez estes dois rapazes cometer este acto de loucura, mas sei que há uma razão para tal. Sei que eles não o engendraram. Sei que qualquer uma causa, de um número infinito de causas que vão até ao início, poderá ter determinado o espírito destes rapazes, que vocês devem condenar à morte por malícia, ódio e injustiça porque alguém, no passado, pecou contra eles".
CAROLINA: Realmente, isso é uma estratégia arrojada para ser usada por um advogado de defesa!
LÁZARO: Claro. Ouve o resto. "A natureza é forte e impiedosa. Ela funciona de um modo misterioso, e nós somos as suas vítimas. Não podemos fazer muito contra isso. A natureza faz o seu trabalho e nós fazemos a parte que nos compete."
CAROLINA: Foi o juiz persuadido a reduzir a pena dos criminosos?
LÁZARO: Parece que sim, eles foram condenados a prisão perpétua, apesar de haver grande pressão, por parte da opinião pública, para que a sentença fosse a pena de morte.
CAROLINA: O que pensam vocês da estratégia do Darrow?
LÁZARO: Penso que é absurda, uma vez que se baseia na falsa crença de que tudo o que nós fazemos é determinado. Se isso fosse verdade, os dois assassinos não poderiam ter agido livremente, o que é, obviamente falso.
DANIEL: Eu diria que a posição, defendida por Clarence Darrow, de que tudo o que nós fazemos está determinado, está correcta. Se isto quer dizer que os dois assassínios não agiram livremente, então é nisso que devemos acreditar.
LÁZARO: E tu Carolina, o que dizes deste caso?
CAROLINA: Penso que a posição de Darrow, de que tudo o que nós fazemos é causado por acontecimentos prévios, está correcta. Mas também penso que somos livres e moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
LÁZARO: Isso parece-me contraditório. Se estava determinado que eles matariam o miúdo, não percebo como poderiam eles tê-lo feito livremente.
DANIEL: Já agora, por que não discutimos o tema do livre arbítrio e do determinismo? Pode ser que consigamos resolver as nossas discordâncias.
LÁZARO: Boa ideia. Queres ficar, Carolina?
CAROLINA: Claro, com prazer. Contudo, não me parece que o problema deva ser colocado apenas em termos de livre arbítrio ou determinismo.
LÁZARO: Então como pensas que o devemos colocar?
CAROLINA: Eu diria que há três questões principais: 1) Têm as pessoas livre arbítrio? 2) É o determinismo verdadeiro? E 3), é o livre arbítrio compatível com o determinismo?
LÁZARO: A minha resposta a essas questões é que as pessoas têm livre arbítrio, que o livre arbítrio é incompatível com o determinismo, e, logo, que o determinismo é falso.
DANIEL: O meu raciocínio é exactamente o oposto. Defendo que o determinismo é verdadeiro e, logo, que as pessoas não têm livre arbítrio.Justificar completamente
CAROLINA: Concordo contigo, Lázaro, quando afirmas que as pessoas têm liberdade, e contigo, Daniel, quando afirmas que o determinismo é verdadeiro, mas não julgo que as duas posições sejam contraditórias.

Clifford Williams
Retirado de http://www.criticanarede.com/

sábado, 25 de outubro de 2008

LIVRE ARBÍTRIO ii

Parte II
Algumas pessoas pensam que nunca é possível fazermos qualquer coisa diferente daquilo que de facto fazemos neste sentido absoluto. Reconhecem que aquilo que fazemos depende das nossas escolhas, decisões e desejos e que fazemos escolhas diferentes em circunstâncias diferentes. Mas afirmam que, em cada caso, as circunstâncias que existem antes de agirmos determinam as nossas acções e tornam-nas inevitáveis. O total das experiências, desejos e conhecimentos de uma pessoa, a sua constituição hereditária, as circunstâncias sociais e a natureza da escolha com que a pessoa se defronta, em conjunto com outros factores dos quais pode não ter conhecimento, combinam-se todos para fazerem com que uma acção particular seja inevitável nessas circunstâncias.
A ideia não consiste em que podemos conhecer todas as leis do universo e usá-las para prevermos o que irá acontecer. Em primeiro lugar, não podemos conhecer todas as circunstâncias complexas que afectam uma escolha humana. Em segundo lugar, mesmo quando chegamos a saber alguma coisa acerca dessas circunstâncias e tentamos fazer uma previsão, isso já é uma alteração nas circunstâncias, o que pode alterar o resultado previsto. Mas a previsibilidade não é o que está em questão.
A hipótese é que existem leis da natureza, tal como aquelas que governam o movimento dos planetas, que governam tudo o que acontece no mundo.
Se isso é verdade, então mesmo quando estavas a decidir que sobremesa irias comer já estavas determinado pelos muito factores que operavam sobre ti e em ti que irias escolher o bolo. Não poderias ter escolhido o pêssego, apesar de pensares que podias fazê-lo: o processo de decisão é apenas a realização do resultado determinado no interior da tua mente.
Se o determinismo é verdadeiro para tudo o que acontece, já estava determinado antes de nasceres que havias de escolher o bolo. A tua escolha foi determinada pela situação imediatamente anterior, e essa situação foi determinada pela situação anterior a ela, e assim sucessivamente, até ao momento em que quiseres recuar.
Mesmo que o determinismo não seja verdadeiro para tudo o que acontece – mesmo que algumas coisas aconteçam simplesmente, sem serem determinadas por causas que já existiam – continuaria a ser significativo se tudo aquilo que fizemos estivesse determinado antes de o fazermos.
Algumas pessoas pensam que, se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode ser razoavelmente elogiado ou condenado por nada, tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair. Outras pessoas pensam que continua a fazer sentido elogiar as boas acções e condenar as más, ainda que elas sejam inevitáveis. Afinal de contas, o facto de alguém estar determinado à partida a comportar-se mal não quer dizer que não se tenha comportado mal. Se rouba os teus discos, isso revela falta de consideração e desonestidade, quer tenha sido determinado, quer não. Além do mais, se não o condenarmos, ou talvez até se não o castigarmos, voltará, provavelmente a fazê-lo.
Por outro lado, se pensarmos que aquilo que fez estava determinado à partida, isso parece-se mais com o castigo de um cão que roeu o tapete. Não quer dizer que o consideramos responsável por aquilo que fez: estamos apenas a tentar influenciar o seu comportamento no futuro. Por mim, não penso que faça sentido condenar alguém por algo que lhe era impossível não fazer.
Muitos cientistas acreditam hoje que o determinismo não é verdadeiro para as partículas básicas da matéria. – que numa dada situação existe mais de uma coisa que um electrão pode fazer. Se o determinismo também não for verdadeiro para as acções humanas, talvez isso deixe algum espaço para o livre arbítrio e para a responsabilidade. E se as acções humanas, ou pelo menos algumas de entre elas, não estiverem determinadas à partida?
Mas o problema reside em que, se a acção não estava determinada à partida pelos teus desejos, crenças e personalidade, entre outras coisas, parece que foi apenas algo que aconteceu, sem qualquer explicação. Mas, nesse caso, como pode ter sido algo feito por ti?
A acção livre limita-se a ser uma característica básica do mundo e não pode ser analisada. Há uma diferença entre algo que aconteceu, sem uma causa, e uma acção que se limita a ser realizada, sem uma causa.
Portanto, talvez o sentimento de que podias ter escolhido um pêssego em vez de uma fatia de bolo seja uma ilusão filosófica, que não podia ser correcta, fosse qual fosse o caso.

NAGEL, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? – uma iniciação à filosofia, 2ª edição, 2007. Lisboa: Gradiva, pp. 46-55

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

LIVRE-ARBÍTRIO

Supõe que estás na bicha de uma cantina e que, quando chegas às sobremesas, hesitas entre um pêssego e uma grande fatia de bolo de chocolate com uma cremosa cobertura de natas. Escolhes o bolo.
No dia seguinte perguntas-te: “Podia ter comido antes o pêssego?” Que quer dizer isto? E será verdade?
Havia pêssegos quando estavas na bicha da cantina: e tiveste oportunidade de ter tirado antes um pêssego. Mas não é apenas isso que queres dizer. Queres dizer que podias ter tirado o pêssego em vez do bolo. Podias ter feito algo diferente daquilo que realmente fizeste. Antes de te teres decidido, estava em aberto se havias de tirar fruta ou bolo, e foi apenas a tua escolha que decidiu qual dos dois havias de comer.
Quando afirmas “podia ter comido antes o pêssego”, queres dizer que isso dependia apenas da tua escolha?
Mas isto ainda não parece suficiente: Não queres apenas dizer que, se tivesses escolhido o pêssego, teria sido isso que terias comido. Quando dizes “podia ter comido antes o pêssego”, também queres dizer que podias tê-lo escolhido – não há aqui ses nenhuns. Mas que quer isto dizer?
Não pode ser explicado fazendo notar outras ocasiões em que de facto escolheste comer fruta. O que estás a dizer é que podias ter escolhido um pêssego em vez de bolo de chocolate naquele momento, tal como as coisas realmente eram. Pensas que podias ter escolhido um pêssego mesmo que todas as restantes coisas fossem exactamente da mesma maneira até ao momento em que de facto escolheste bolo de chocolate.
Esta é uma ideia de “pode” ou “poderia” que aplicamos só às pessoas (e talvez a alguns animais). Quando dizemos “o carro podia ter chegado ao cimo da colina”, queremos dizer que o carro tinha potência suficiente para chegar ao cima da colina se alguém o tivesse conduzido até lá.
Até ao momento em que escolhes nada determina irrevogavelmente qual será a tua escolha. Escolher o pêssego continua a ser para ti uma possibilidade em aberto até ao momento em que de facto escolhes bolo de chocolate. A tua escolha não está determinada à partida.
Algumas coisas que acontecem estão determinadas à partida. Por exemplo, parece estar determinado à partida que o Sol se levantará amanhã a uma certa hora. O Sol não se levantar amanhã e continuar a noite não é uma possibilidade em aberto. Tal não é possível porque apenas poderia acontecer se a Terra parasse de rodar, ou se o Sol deixasse de existir, e não se passa nada na nossa galáxia que pudesse fazer com que qualquer destas coisas acontecesse. Se não existir qualquer possibilidade de a Terra parar ou de o Sol não estar lá, não há qualquer possibilidade de o Sol não se levantar amanhã.
O que queres dizer é que não havia processos ou forças a operarem antes de fazeres a tua escolha que tenham tornado inevitável o facto de teres escolhido bolo de chocolate.
Se, na verdade, estivesse realmente determinado à partida que irias escolher comer bolo, como podia simultaneamente ser verdade que podias ter escolhido comer fruta? A verdade é que nada te teria impedido de comer um pêssego se o tivesses escolhido em vez do bolo. Mas estes ses não são o mesmo que dizer apenas que podias ter escolhido um pêssego. Não poderias tê-lo escolhido a não ser que a possibilidade continuasse aberta até a fechares com a tua escolha do bolo.
NAGEL, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? – uma iniciação à filosofia, 2ª edição, 2007. Lisboa: Gradiva, pp. 46-55

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LIBERDADE

Porque razão está a ler isto?
Porque quer ler. Mesmo que alguém lhe tenha dito para o fazer, não faz diferença: se não quisesse fazer o que lhe disseram, não estaria a ler isto. Mas está a ler. Portanto, em qualquer dos casos, quer queira simplesmente ler quer lhe tenham dito para ler e agora está a ler porque quer fazer o que lhe disseram, está a fazer o que quer. Mas ao ler estará a agir em liberdade? Isto é, será que depende de si o facto de estar a ler?
A resposta pode parecer óbvia. Está a fazer aquilo que quer. Logo, está a fazê-lo em liberdade. Mas será que aquilo que quer depende de si? Quando está a fazer aquilo que quer, está o leitor em controlo – controla os seus quereres – ou será que são os seus quereres que o controlam?
Suponha que tinha ordens para ler isto. Neste caso, iria rapidamente perceber que não tem liberdade, que estaria sob o controlo das ordens. Uma ordem é uma instrução, normalmente verbal. Mas suponha que as ordens não eram dadas sob a forma de instruções mas antes sob a forma de anseios directos que o faziam agir de determinada forma.
Estar sob o controlo de anseios seria mais subtil do que ser controlado por instruções verbais, pois poderia facilmente pensar que os anseios estavam sob o seu próprio controlo. Poderia fingir que esses anseios dependiam de si. Poderia até chamar-lhes quereres. Quando sentia o impulso para fazer X, poderia dizer para si próprio “Eu quero fazer X”. Poderia assim inteligentemente esconder de si próprio o facto de que seja lá o que for o que impulsiona a agir (seja um programa interno ao qual não tem acesso directo ou um programador externo) se encontra escondido porque o leitor tem quereres em vez de ordens. Para o levar a ler isto, por outras palavras, o programa enviar-lhe-ia o querer – uma instrução não verbal – como uma forma de o levar a agir se,m que se apercebesse disso. Neste caso, será que o que o leitor quer depende de si? Seria livre? Parece que não. Teria no máximo apenas a ilusão da liberdade. Fazer o que quer iria mascarar o facto de os seus quereres estarem a controlá-lo, e não o contrário.
Não estará o leitor exactamente nesta situação? O leitor não faz os seus quereres, apenas os tem. Chegam-lhe à sua consciência despoletando vários comportamentos. Mas, se não escolhemos os nossos quereres e se os nossos quereres determinam as nossas escolhas e as nossas escolhas determinam as nossas acções, então, em última análise, as nossas acções não dependem de nós, e, logo, parece que não as executamos em liberdade. Portanto, mesmo que ao ler isto neste momento esteja a fazer aquilo que quer, dado que os seus quereres não dependem de si, ler isto também não depende de si e, assim, parece que não está a ler isto em liberdade.
Suponha-se que, contudo, quer e não quer fazer algo – por exemplo, que quer comer chocolate e ao mesmo tempo também não quer comer chocolate, isto é, que quer resistir ao seu desejo de comer chocolate. O que irá fazer? Bom, qual é o querer mais forte? Irá agir – tem de agir – de acordo com o seu querer mais forte. Assim, o seu comportamento – seja lá o que for que acabe por fazer – será apenas um mero produto de um querer suplantar outro.
Mas se continua a achar que tem liberdade, então pergunte-se a si próprio: se é livre, quando começou a sê-lo? Pois, se é livre agora, deve ter havido uma primeira acção livre. Certamente que não nasceu livre. Quando acabou de nascer reagiu ao ambiente à sua volta de forma basicamente pré-programada. Tal como não escolheu ter dois olhos, um nariz, um cérebro, cada um dos seus membros e assim por diante – nenhuma desta coisas dependeu de si – também não escolheu como reagir à luz, ao calor, à fome, à dor, ou mesmo à cara sorridente da sua mãe. Todos nós iniciámos a vida sem qualquer liberdade. Assim, as nossas acções não podem de modo algum ser livres a menos que tenha havido uma primeira acção livre executada algum tempo depois de termos nascido. Quando ocorreu a sua primeira acção livre? Se não pode ter executado uma primeira acção livre, então também não pode ter executado uma segunda acção livre, ou uma terceira e assim por diante até à sua acção presente de ler estas palavras.

KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas – uma breve introdução à filosofia, 2004. Lisboa: Temas e Debates, pp. 43-47

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O egoísmo psicológico ii

DOIS ARGUMENTOS A FAVOR DO EGOÍSMO PSICOLÓGICO
Há dois argumentos gerais que foram adiantados com frequência em defesa do egoísmo psicológico. São argumentos “gerais” na medida em que cada um tenta estabelecer de um só golpe que todas as acções, e não apenas uma classe limitada de acções, são motivadas pelo egoísmo.
O argumento de que fazemos sempre o que mais desejamos fazer.
Se descrevemos as acções de uma pessoa como egoístas e as de outra como não egoístas estamos a descurar o facto crucial de que em ambos os casos, partindo do princípio de que a acção é realizada de forma voluntária, a pessoa está apenas a fazer o que mais deseja fazer.
Este argumento tem algumas falhas. Primeiro, baseia-se na ideia de que as pessoas nunca fazem voluntariamente senão o que desejam fazer. Mas isto é redondamente falso. Por vezes fazemos coisas que não queremos fazer, portanto são um meio necessário para um fim que queremos atingir, por exemplo, não queremos ir ao dentista, mas vamos na mesma para evitar dores de dentes.
Mas há igualmente coisas que fazemos, não porque o desejamos, e nem mesmo porque são meios para um fim que queremos atingir, mas porque sentimos que devemos fazê-las. Por exemplo, alguém pode fazer uma coisa porque prometeu fazê-la, e sente-se, por isso, obrigado, mesmo não desejando fazê-la.
O argumento de que fazemos o que nos faz sentir bem.
O segundo argumento geral em defesa do egoísmo psicológico apela para o facto de quase todas as acções ditas altruístas produzirem um sentido de auto-satisfação nas pessoas que as realiza. Agir “altruisticamente” faz as pessoas sentirem-se bem consigo mesmas, e isso é o seu verdadeiro objectivo.
Porque razão devemos pensar, apenas porque alguém obtém satisfação aos outros, que isso faz dele um egoísta? Não é a pessoa altruísta precisamente a que de facto tem satisfação no auxílio aos outros, enquanto o egoísta não tem?
Por que razão uma pessoa obtém satisfação ao auxiliar os outros? Porque será que nos sentimos bem ao doar dinheiro para apoiar um abrigo para pessoas sem lar, quando podíamos gastar esse dinheiro connosco mesmos? A resposta tem de ser, pelo menos em parte, que somos o tipo de pessoa que se importa com o que acontece aos outros. Se não nos importamos com isso, doar dinheiro parecerá um desperdício e não uma fonte de satisfação. Vai fazer-nos sentir parvos e não santos.
Esclarecer algumas confusões
As pessoas tendem a confundir egoísmo com interesse próprio. Quando pensamos nisso, vemos que não são de modo algum a mesma coisa. Se vou ao médico quando me sinto mal, estou a agir em função do meu interesse próprio, mas ninguém pensaria em chamar-me “egoísta” por causa disso. De modo semelhante, lavar os dentes, trabalhar afincadamente no meu emprego e obedecer à lei, são tudo acções realizadas no meu interesse próprio, mas nenhum destes exemplos ilustra uma conduta egoísta. O comportamento egoísta é o comportamento que ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser ignorados. Assim, comer uma refeição normal em circunstâncias normais não é egoísta; mas seríamos egoístas se acumulássemos comida quando outros passavam fome.
Uma segunda confusão mistura o comportamento em função do interesse próprio com a procura do prazer. Fazemos muitas coisas porque gostamos de as fazer, mas isso não significa que estejamos a agir em função do interesse próprio. Um homem que continua a fumar cigarros mesmo depois de ter conhecimento da relação entre o fumo e o cancro não está certamente a agir segundo o seu interesse próprio e não está também a agir de forma altruísta.
Uma terceira confusão consiste na suposição comum, mas falsa, de que a preocupação pelo nosso próprio bem-estar é incompatível com uma genuína preocupação pelos outros. Mas não há qualquer inconsistência em desejar que todos, incluindo nós mesmos e os outros, sejam felizes.
RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, 2004. Lisboa: Gradiva, pp. 98-109

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O EGOÍSMO PSICOLÓGICO

A moralidade requer que sejamos altruístas. Até que ponto devemos ser altruístas? Talvez não tenhamos de ser heróicos, mas espera-se ainda assim, que estejamos atentos às necessidades dos outros pelo menos até certo ponto.
E as pessoas ajudam-se, de facto, entre si, de formas mais ou menos significativas. Fazem favores umas às outras. Constroem abrigos para os deserdados. Fazem voluntariado em hospitais. Doam órgãos e oferecem sangue. Mães sacrificam-se pelos filhos. Bombeiros arriscam a vida para salvar pessoas. Freiras passam a sua vida a trabalhar entre os pobres. A lista poderia continuar sem parar. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas nobres quando podiam guardá-lo para si. Mas há filósofos que defendem que ninguém é jamais verdadeiramente altruísta.
Para o egoísmo psicológico todas as acções humanas são motivadas pelo egoísmo. Podemos acreditar que somos nobres e abnegados, mas isso é apenas uma ilusão. Na verdade importamo-nos apenas connosco mesmos.
O comportamento “altruísta” está na realidade ligado a coisas como o desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Por cada acto de aparente altruísmo podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e substituí-lo por uma explicação em termos de motivos mais egocêntricos.
Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológico estava provavelmente correcto. O se método consistiu em catalogar os tipos gerais de motivos, concentrando-se especialmente nos “altruístas”, e mostrando como todos podiam ser compreendidos em ternos egoístas. Uma vez completado este projecto, teria eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza humana.
1- Caridade. É definida como amor ao próximo. Mas, se esse amor ao próximo não existe, o comportamento caritativo tem de ser entendido de uma forma radicalmente diferente. A caridade é, assim, o prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. Um homem caridoso está a provar a si mesmo, e ao mundo, que possui mais recursos que os outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo, tem ainda o suficiente para ajudar quantos não têm a mesma capacidade que ele. Por outras palavras, está apenas a exibir a sua superioridade.
Hobbes sabia, naturalmente, que um homem caridoso pode não pensar estar a fazer isso. Mas nós não somos os melhores juízes das nossas próprias motivações. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas acções de um modo lisonjeiro para nós, e é lisonjeiro pensar que somos “altruístas”.
2- Piedade. O que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos deles, sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. E, agindo em função deste pesar, poderíamos tentar ajudá-los. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem, até onde pode estar, mas não vai suficientemente fundo. A razão pela qual nos sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é pensarmos que a mesma coisa nos poderia acontecer a nós. A “piedade”, afirma “consiste em imaginar ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de outrem”.
Isto pode explicar, por exemplo, por que sentimos mais piedade quando uma pessoa boa sofre do que quando sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes, a piedade requer um sentido de identificação com a pessoa que sofre – sinto piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. Mas uma vez que cada um de nós pensa ser uma boa pessoa, não nos identificamos com os que pensamos serem maus. Por conseguinte, não nos apiedamos dos malévolos da mesma forma que nos apiedamos dos bons.

RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, 2004. Lisboa: Gradiva, pp. 98-109

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio v

Parte V
Será que a coerção nos priva de livre-arbítrio?
É importante de ter em mente este contraste quando pensamos sobre outra questão importante para o problema do livre-arbítrio - a coerção. Considere um ladrão que o coage a dar-lhe o dinheiro dizendo (convincentemente) "O dinheiro ou a vida!" O ladrão roubou-lhe o dinheiro. Será que também lhe roubou o livre-arbítrio?
O ladrão coloca-o perante uma opção - poder ficar com o dinheiro e morrer ou entregar-lhe a carteira e viver. Uma opção de que o ladrão o privou é guardar o dinheiro e também a vida. Você não é livre de fazer isso. Mas será que o ladrão lhe roubou o seu livre-arbítrio?
Este é um problema difícil, mas deixe-me arriscar uma tentativa de resposta: em muitos casos (se não em todos), as acções resultantes de coacção não privam as suas vítimas de livre-arbítrio. Claro que podem roubar às suas vítimas muitas coisas de grande valor. E, é claro, é errado colocar as pessoas em situações nas quais têm as opções que o ladrão lhes oferece (e apenas essas). O importante, contudo, é que o cálculo da vítima de roubo - que é melhor entregar a carteira - é muito diferente da "decisão" do cleptomaníaco de roubar. A mente da vítima de roubo está a funcionar muitíssimo bem; as circunstâncias em que a vítima se encontra é que são objectáveis. Pelo contrário, algo de profundamente errado se passa com a mente do cleptomaníaco - e é esta incapacidade que o torna não livre.
Uma segunda proposta compatibilista: a relevância dos desejos de segunda ordem
Pretendo agora considerar uma segunda teoria compatibilista, destinada a enfrentar o problema colocado pelo comportamento compulsivo. Esta teoria foi defendida por Gerald Dworkin (em "Acting Freely", Nous, Vol. 4, 1970, pp. 367-383) e por Harry Frankfurt (em "Freedom of the Will and de Concept of Person", Journal of Philosophy, Vol. 68, 1971, pp. 5-20). A ideia é que as pessoas apanhadas na rede de uma compulsão não são livres porque agem com base em desejos que prefeririam não ter. Suponha que perguntava ao cleptomaníaco se ele preferia não ter o desejo invencível de roubar. O cleptomaníaco poderia responder-lhe tristemente que ficaria satisfeito por não ter esse peso sobre as suas costas.
A proposta que estamos a considerar requer que distingamos desejos de primeira ordem de desejos de segunda ordem. Um desejo de segunda ordem é um desejo sobre como deveriam ser os nossos desejos. "Gostaria de ser menos egoísta" é uma observação de segunda ordem. Diz-nos que eu gostaria de me preocupar mais com o bem-estar dos outros. "Gostava de comer um gelado" ou "Gostava que Jones fosse aumentado" são desejos de primeira ordem. Expressam desejos acerca do que deveria ser verdadeiro no mundo situado para lá da mente. A proposta é que as pessoas agem livremente quando os seus desejos de segunda ordem se relacionam de maneiras específicas com os seus desejos de primeira ordem. Praticar de livre vontade uma acção A consiste em fazer A porque desejamos D, sem nos importarmos de desejar D. Esta última cláusula significa que não temos o desejos de segunda ordem de retirar D da nossa lista de desejos de primeira ordem.
Embora esta proposta implique que muitas pessoas vítimas de compulsões não sejam livres, ainda é deficiente. Imagine um cleptomaníaco tão deformado pela sua compulsão que é incapaz de reconhecer que ela está a prejudicá-lo. Imagine que alguém que lava as mãos compulsivamente sofreu uma lavagem ao cérebro que o faz pensar que lavar as mãos é a melhor coisa do mundo. Estas pessoas podem não se importar por terem os desejos que têm. No entanto, isso não mostra que têm livre-arbítrio; apenas mostram que elas não se importam de não serem livres.
Esta teoria do livre-arbítrio, como a de Hume, falha em explicar por que razão algumas formas de comportamento compulsivo não são livres. Isto não significa que nenhuma teoria compatibilista funcione, mas apenas que as duas que examinei não são satisfatórias.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

domingo, 19 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio iv

Parte IV
Duas teorias deterministas moderadas
Irei começar por expor a teoria compatibilista da liberdade apresentada por David Hume. A ideia é que uma acção é praticada livremente se o agente podia ter actuado de outra forma, caso o tivesse desejado. Suponha que aceita uma oferta de emprego para o verão. Hume afirma que você agiu livremente se tivesse podido declinar a oferta, caso pretendesse fazê-lo. Pela mesma ordem de ideias, quando alguém entrega a carteira a um ladrão ao ouvi-lo dizer "O dinheiro ou a vida!", essa pessoa está a agir de livre vontade se for verdadeiro que caso tivesse preferido morrer em vez de permanecer vivo, podia ter recusado entregar a carteira. Portanto, a teoria de Hume é que as acções livres são aquelas que estão sob o controlo causal das crenças e desejos do agente. Quando uma crença está sob o controlo do agente, parece ser verdade que se o agente tivesse tido um outro conjunto de desejos, também poderia ter seleccionado e praticado uma acção diferente. A teoria de Hume é compatibilista porque defende que uma acção é livre se se encontra causalmente relacionada de uma maneira particular com as crenças e desejos do agente.
O que seria, de acordo com a teoria de Hume, uma acção não livre? Suponha que quer sair de uma sala mas não é capaz visto que está pregado ao chão. Neste caso, não é livremente que permanece na sala. É obrigado a manter-se nela quer queira quer não. A sua acção não se encontra sob o controlo das suas crenças e desejos.
Eis outro exemplo de acção não livre. Suponha que o submeti a uma operação ao cérebro. Desliguei as suas crenças e desejos dos nervos que enviam impulsos para o resto do seu corpo. Também lhe implantei um transmissor de rádio para que o seu corpo receba as minhas instruções. Agora são as minhas crenças e desejos que ditam o que você faz e diz. Nesta situação, o seu corpo tornar-se-ia um robô - seria um escravo da minha vontade. Faria o que eu quero porque é esse o meu desejo. Você poderia ser visto a beber água, a depositar dinheiro na minha conta bancária, e assim por diante. Mas não faria nenhuma destas coisas de livre vontade. A teoria de Hume explica por que razão neste caso as suas acção não seriam livres.
Primeira objecção à teoria de Hume: o comportamento compulsivo
Penso que a principal objecção à teoria de Hume pode ser encontrada em casos de comportamento compulsivo. Pense-se no cleptomaníaco que discutimos na lição anterior. Um cleptomaníaco é um ladrão cujo desejo de roubar é invencível. Um cleptomaníaco pode querer roubar mesmo sabendo que vai ser apanhado e castigado. Mesmo possuindo um pleno conhecimento de que roubar lhes trará sofrimento em vez de ajuda, continua a roubar.
Os cleptomaníacos são apanhados nas malhas de uma obsessão. São escravos de um desejo que não diminui ao compreenderem que agir em função dele lhes faz mais mal do que bem. Há ladrões que não são cleptomaníacos, é claro. Este tipo de ladrão pode tentar roubar algo, mas a decisão de o fazer seria afectada pela informação acerca das hipóteses de ser apanhado e castigado. Nada disto faz qualquer diferença para o cleptomaníaco. O cleptomaníaco está emparedado; o seu desejo não é sensível a considerações de interesse próprio.
Penso que o cleptomaníaco não rouba de livre vontade. Contudo, este caso satisfaz os requisitos de Hume para ser considerado um comportamento livre. Os cleptomaníacos querem, acima de tudo, roubar coisas. Ao roubar, estão a seguir os seus desejos. Se não tivessem querido roubar, não o teriam feito. As acções do cleptomaníaco estão, pois, sob o controle das suas crenças e desejos. O problema é que há algo nesses desejos e no modo como funcionam que impede o cleptomaníaco de ser livre. A teoria de Hume define liberdade em termos da relação que se verifica entre crenças e desejos, por um lado, e as acções por outro. Para Hume, as acções livres são controladas pelos desejos do agente. O comportamento compulsivo constitui uma objecção à teoria de Hume. É a natureza daquilo que o cleptomaníaco deseja que o impede ser livre. Isto sugere que a teoria compatibilista não deve ignorar as ligações anteriores na cadeia causal acima.
Segunda objecção à teoria de Hume: a sala fechada de Locke
Há um segundo problema, mais subtil, com a explicação de Hume. No seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), John Locke (1632-1704) descreveu um homem que decidiu de livre vontade permanecer numa sala com o objectivo de aí conversar com um amigo. Sem que o soubesse, a porta da sala foi fechada à chave. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção sem que tenhamos liberdade para agir de modo diferente. O homem mantém-se na sala por sua livre vontade, embora seja falso que podia ter agido de outra forma caso tivesse escolhido fazê-lo.
Se a maneira como Locke descreve este caso é correcta, a teoria de Hume está errada. Para que alguém pratique uma acção de livre vontade não é essencial que pudesse ter praticado qualquer outra acção caso o tivesse desejado. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção mesmo não tendo liberdade para agir de outra maneira. Um acto é livre devido à razão que leva a praticá-lo; a teoria de Hume não consegue explicar em que deverá consistir um processo que subjaza às acções livres.
Eis outro exemplo que ilustra o que Locke tem em vista. Imagine uma qualquer acção que tenha sido praticada livremente. Suponha que ontem à noite, por exemplo, o João assistiu de livre vontade a um concerto. Agora imagine que se tivesse decidido não ir ao concerto teria sido raptado e, contra a sua vontade, teria na mesma sido levado ao concerto. Enquanto deliberava, desconhecia o que se preparava. O que conta é que o João assistiu ao concerto de livre vontade, embora não pudesse ter feito outra coisa.Para se compreender onde Locke quer chegar convém comparar o homem fechado na sala (embora não o saiba) com o cleptomaníaco. O modo de pensar do cleptomaníaco indica que os seus processos de pensamento funcionam mal. Algo na sua mente impede-o de ser livre. Mas nada há de errado na mente do homem do exemplo de Locke, embora não seja livre de agir de certas maneiras.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

sábado, 18 de outubro de 2008

O “NOVO” HOMEM

Até ao advento do curto período em que se produziu a alfabetização geral, a cultura escrita mostrou mesmo agudos efeitos selectivos. Fracturou profundamente as sociedades, abriu um fosso entre literatos e iletrados, cuja infranqueabilidade quase se fixou na rigidez de uma diferença específica. Se quisermos ainda falar outra vez de modo antropológico, poderíamos definir os homens dos tempos históricos como animais, dos quais uns sabem ler e escrever, e outros não. A partir daqui só vai um passo – embora de enormes consequências – até à tese de que os homens são animais, nos quais uns criam e disciplinam os seus semelhantes, ao passo que os outros são criados: um pensamento que, desde as reflexões platónicas sobre a educação e o Estado, já pertence ao folclore pastoral dos europeus. Algo aqui recorda a frase de Nietzsche de que entre os que vivem nas casas pequenas são poucos os que querem, ao passo que a maioria só é querida. Ora, ser querido significa existir meramente como objecto, não como sujeito de selecção.
SLOTERDIJK, Peter, Regras para o Parque Humano, 2007. Coimbra: Angelus Novus, Editora, pp. 61-62

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio iii

Parte III
Libertismo
Considerarei em primeiro lugar o libertismo; o filósofo C. A. Campbell (1897-1974) é o libertista no qual irei centrar a minha atenção. Antes de descrever de que modo Campbell defende o libertismo, permitam-me que faça notar que falar em "libertismo" a propósito de livre-arbítrio é uma doutrina completamente diferente da concepção a que é dado um nome semelhante em filosofia política. Os liberais em filosofia política argumentam que o estado não deve interferir no mercado ou noutras esferas da vida. Esta é uma concepção normativa - uma tese acerca do modo como as coisas devem ser. O libertismo enquanto concepção acerca do livre-arbítrio é uma tese descritiva, e não normativa. Defende que somos agentes livres e que o determinismo é falso. O libertismo não afirma que esta é uma coisa boa ou má.
Habitualmente, os libertistas pensam que se pode saber por introspecção que pelo menos algumas das nossas acções não são determinadas pelos nossos desejos, crenças e outras características psicológicas. Por exemplo, no livro Selfhood and Godhood (Allen and Unwin, 1957), Campbell sublinha que por vezes praticamos acções que nada têm a ver com a nossa personalidade. Quando isto acontece, diz, é falso que as nossas acções sejam determinadas pelo nosso carácter.
Tenho duas objecções a apresentar a esta linha de pensamento. Em primeiro lugar, não há razões para confiar plenamente na introspecção. As ideias que formamos ao olhar para "dentro de nós próprios" podem ser incompletas e imprecisas. Podem ser incompletas porque podem existir factos a nossos respeito dos quais não temos consciência - factos que a introspecção não detecta. Além disso, a introspecção pode ser imprecisa porque há mecanismos psicológicos que distorcem sistematicamente o modo como nos apresentamos a nós próprios. Freud captou bem estas ideias. A propósito da última categoria, argumentou que algumas das nossas crenças e desejos provocar-nos-iam um grande sofrimento caso tivéssemos consciência de que os temos. Enquanto "mecanismo de defesa", a introspecção devolve-nos uma imagem falseada sobre o que realmente pensamos e queremos. Embora esta concepção seja tipicamente freudiana, importa notar que muitas outras abordagens em psicologia a aceitam. Existe um amplo consenso quanto à ideia de que a introspecção não deve ser tomada ingenuamente.
A concepção de Campbell está sujeita a uma dificuldade adicional. Campbell afirma que quando agimos em desacordo com a nossa personalidade não somos determinados pela nossa mente. Discordo. Considere-se uma pessoa normalmente cobarde que é capaz de agir corajosamente numa dada ocasião. Será plausível que o acto corajoso não tenha explicação na mente da pessoa? Isto é muito dúbio. Suspeito que há aspectos da mente da pessoa que tiveram um papel a desempenhar. Talvez uma combinação de circunstâncias raras a tenha levado a exibir coragem de uma forma que até aí fora impossível. Logo, não vejo que a existência de acções contrárias à nossa personalidade possa pôr em causa o determinismo.
Campbell pressupõe que a expressão "agir contrariamente à personalidade" significa que a acção não é causada pela personalidade do agente. Mas isto é não compreender o que a expressão significa. Quando uma pessoa que habitualmente se comporta de maneira cobarde age corajosamente, podemos dizer "Evidentemente, isso fazia parte dela". Isto parece indicar claramente que "agir contrariamente à personalidade" não é a mesma coisa que agir sem uma causa.
Campbell aceita o incompatibilismo, pensa que a introspecção mostra que por vezes produzimos actos livres e, portanto, concluiu que o determinismo tem de ser falso. Sugeri que o argumento da introspecção contra o determinismo é muito fraco. Se pensamos que o determinismo e a liberdade são incompatíveis, não vejo como a impressão introspectiva de sermos livres pode ser decisiva. O psicólogo comportamentalista B. F. Skinner, escreveu um livro chamado Beyond Freedom and Dignity (Knopf, 1971). Skinner é um incompatibilista; de facto, é um determinista radical. A sua concepção é que a imagem introspectiva que temos de nós próprios como agentes livres é ilusória. Eis uma ideia reconfortante - um conto de fadas que contamos a nós mesmos. Discordo do determinismo radical de Skinner. A questão, no entanto, é que Skinner tem toda a razão ao não se deixar levar pelas aparências a respeito da introspecção.
Se eu pensasse que o incompatibilismo é verdadeiro, tentaria descobrir se as acções humanas são determinadas. Fá-lo-ia verificando o que a ciência tem a dizer sobre o determinismo, e a psicologia sobre as causas do comportamento. Campbell aceita o incompatibilismo mas argumenta na direcção oposta. Decide, apoiado na introspecção, que algumas das nossas acções são livres e conclui que não podem ser causalmente determinadas. Esta, parece-me, é a ordem errada pela qual estas questões devem ser abordadas. Note-se que a posição de Campbell, tal como a apresentei, não argumenta a favor do incompatibilismo. Campbell pressupõe que o incompatibilismo é verdadeiro. E utiliza este pressuposto como uma premissa para defender que as nossas acções não são causalmente determinadas.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio ii

Parte II
As três posições a que atribuímos rótulos fornecem três padrões de semelhança e de diferença. O determinismo moderado e o libertismo concordam que somos livres, o determinismo radical e o determinismo moderado concordam que o determinismo é verdadeiro, e o determinismo radical e o libertismo concordam que o incompatibilismo está correcto. Para compreendermos de que modo estas posições estão relacionadas, podemos esquematizar cada uma delas como posições que adoptam um determinado argumento. Seja L a proposição de que algumas das nossas acções são livres e D a proposição de que o determinismo é verdadeiro. Eis o argumento característico de cada uma das posições:
Determinismo Radical:
Se D, então não-L
D
Logo, não-L
Libertismo:
Se D, então não-L
L
Então, não-D
Determinismo Moderado:
L
D
Logo, L e D são compatíveis
Note-se que todos os argumentos são dedutivamente válidos. A nossa tarefa consiste em determinar que premissas são plausíveis.
O problema normativo da liberdade
O libertismo, o determinismo moderado e o determinismo radical tomam diferentes partidos acerca do problema do livre-arbítrio. Nenhuma destas teorias faz afirmações acerca de a liberdade ser uma coisa boa ou má. Por outras palavras, estas teorias dizem respeito a questões descritivas e não normativas. Há um problema completamente distinto acerca da liberdade que se coloca em filosofia política. Trata-se de saber a que liberdades as pessoas têm direito. Terão as pessoas direito a liberdades particulares, que não podem ser postas em causa pelas outras pessoas ou pelo estado? Esta é uma questão normativa sobre o que as pessoas devem ou não devem fazer. Não é a mesma coisa que perguntar se as pessoas têm livre-arbítrio.
As liberdades particulares podem entrar em conflito. Alguns defensores do capitalismo sustentam que as pessoas devem ser livres de comprar e vender sem estarem sujeitas à regulamentação do estado. No entanto, isto pode resultar em ciclos de expansão e depressão que provocam sofrimento em larga escala. Assim, se a liberdade é um direito das pessoas, certas liberdades económicas terão de ser regulamentadas ou amputadas. Esta e outras questões normativas acerca das liberdades a que as pessoas têm direito serão discutidas na secção do texto dedicada à ética.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio

Nesta lição, irei apresentar as posições filosóficas canónicas acerca da relação entre liberdade e determinismo. Em seguida, farei algumas observações críticas acerca destas posições. Isto servirá para preparar o terreno para a proposta positiva que farei na próxima lição acerca de como o livre-arbítrio deve ser entendido.
Definição de "compatibilidade"
Antes de prosseguir, é necessário definir alguns termos lógicos. Dizer que duas proposições são compatíveis é dizer que a verdade de uma delas não exclui a verdade da outra. Incompatibilidade significa conflito; se uma das proposições fosse verdadeira, a outra teria de ser falsa.
Duas proposições podem ser compatíveis embora nenhuma delas seja, de facto, verdadeira. E duas proposições podem ser incompatíveis apesar de serem ambas falsas. Considere-se o seguinte trio de enunciados:
A minha camisa é verde
A minha camisa é vermelha
A minha camisa está rasgada
1 e 2 são incompatíveis. 1 e 3 são compatíveis. Será que esta informação nos diz de que cor é a minha camisa? Dir-nos-á que a minha camisa está rasgada? A resposta a ambas as perguntas é não.
Incompatibilismo e compatibilismo
O incompatibilismo é uma tese acerca do problema do livre-arbítrio. Não se trata de afirmar que o determinismo é verdadeiro. Também não diz que não somos livres. Limita-se a fazer uma afirmação condicional: se o determinismo é verdadeiro, então não somos livres.
Se duas proposições (D e L) são incompatíveis, existem três possibilidades: D é verdadeira e L é falsa; D é falsa e L é verdadeira; D e L são ambas falsas. O que a tese incompatibilista exclui é que as afirmações D e L possam ser ambas verdadeiras.
Das três posições possíveis que um incompatibilista pode adoptar, duas assumem um papel proeminente na discussão filosófica. A primeira sustenta que o determinismo é verdadeiro e que não somos livres. Esta posição veio a ser designada por determinismo radical. A segunda sustenta que somos livres e as nossas acções não são causalmente determinadas. A esta posição chama-se libertismo. Ambas defendem que não se pode ter as duas coisas em simultâneo, embora discordem acerca de qual das proposições é verdadeira.
Em oposição ao incompatibilismo, está a ideia de que o determinismo não exclui a possibilidade de sermos livres. Não surpreende que esta posição se chame compatibilismo. Em princípio existem quatro versões possíveis de compatibilismo. Se D e L são proposições compatíveis, então as opções são as seguintes: 1) D e L são ambas verdadeiras; 2) D e L são ambas falsas; 3) D é verdadeira e L é falsa; 4) D é falsa e L é verdadeira.
Destas quatro posições possíveis, apenas uma tem sido discutida com alguma frequência na bibliografia filosófica. Esta concepção chama-se determinismo moderado; sustenta que as nossas acções são ao mesmo tempo livres e causalmente determinadas. A ideia básica que orienta esta doutrina é que a liberdade não requer a ausência de determinismo, requer apenas que as nossas acções sejam causadas de uma certa maneira.
Assim, o roteiro básico de posições é o seguinte:
I - Incompatibilismo (se o determinismo é verdadeiro, então carecemos de liberdade).
a) Determinismo Radical: o incompatibilismo e o determinismo são verdadeiros e, portanto, carecemos de liberdade.
b) Libertismo: o incompatibilismo é verdadeiro e nós somos livres, portanto, o determinismo é falso.
II - Compatibilismo (se o determinismo for verdadeiro, não está excluída a possibilidade de sermos livres).
a) Determinismo Moderado: o compatibilismo e o determinismo são verdadeiros, e nós somos livres.
Note-se que esta esquematização deixa algumas posições por rotular. A posição que defendo recai em II.B; sou compatibilista. Como expliquei na lição precedente, não creio que possamos supor que o determinismo é verdadeiro. Penso, no entanto, que algumas das nossas acções são realizadas livremente. O tipo de posição compatibilista que defendo será descrito na próxima lição.
Elliott Sober

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O DESAMPARO

Para vos dar um exemplo que permita compreender melhor o desamparo, vou citar-vos um caso dum dos meus alunos que veio procurar-me nas seguintes circunstâncias: o pai estava de mal com a mãe, e tinha além disso tendências para colaboracionista; o irmão mais velho fora morto na ofensiva alemã de 1940, e este jovem com sentimentos um pouco primitivos, mas generosos, desejava vingá-lo. A mãe vivia sozinha com ele, muito amargurada com a semitraição do marido e com a morte do filho mais velho, e só nele achava conforto. Este jovem tinha de escolher nesse momento, entre o partir para Inglaterra e alistar-se nas Forças Francesa Livres – quer dizer, abandonar a mãe – e o ficar junto dela ajudando-a a viver. Compreendia perfeitamente que esta mulher não vivia senão por ele e que o seu desaparecimento – e talvez a sua morte – a mergulharia no desespero. Tinha bem a consciência que no fundo, concretamente, cada acto que praticasse em favor da mãe era justificável na medida em que a ajudava a viver; ao passo que cada acto que praticasse com o objectivo de partir e combater, seria um acto ambíguo que poderia perder-se nas areias, não servir para nada: por exemplo, partindo para Inglaterra, poderia ficar indefinidamente num campo espanhol ao passar por Espanha; podia chegar a Inglaterra ou a Argel e ser metido numa secretaria a preencher papéis. Por conseguinte, encontrava-se em face de dois tipos de acção muito diferentes: uma concreta, imediata, mas que não dizia respeito senão a um indivíduo; outra que dizia respeito a um conjunto infinitamente mais vasto, uma colectividade nacional, mas que era por isso mesmo mais ambígua, e que podia ser interrompida a meio do caminho. Ao mesmo tempo, hesitava em dois tipos de moral. Por um lado, uma moral de simpatia, de dedicação individual; por outro lado, uma moral mais larga, mas de uma eficácia mais discutível. Havia que escolher entre as duas. Quem poderia ajudá-lo a escolher? A doutrina cristã? Não. A doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o vosso próximo, sacrificai-vos pelos outros. Escolhei o caminho mais duro, etc., etc… Mas qual o caminho mais duro? Quem devemos amar como nosso irmão: o combatente ou a mãe? Qual a maior utilidade: essa, duvidosa, de combater num conjunto, ou essoutra precisa, de ajudar um ser preciso a viver? Quem pode decidir a priori? Ninguém. Nenhuma moral estabelecida pode dizê-lo. A moral kantiana afirma: não trates nunca os outros como um meio mas como um fim. Muito bem; se eu fico junto da minha mãe, trato-a como fim e não como meio, mas assim mesmo corro o risco de tratar como meio os que combatem à minha volta; e reciprocamente, se eu juntar-me aos que combatem, tratá-los-ei como um fim, e paralelamente corro o risco de tratar a minha mãe como um meio.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 210-211

domingo, 12 de outubro de 2008

COMPATIBILISMO v

Parte V
4. "Não confundam determinismo com fatalismo". Esta é uma das confusões mais comuns no debate sobre o livre-arbítrio. O fatalismo é a visão de que o que quer que venha a acontecer, acontecerá, independentemente do que possamos fazer. O determinismo por si não implica esta consequência. O que decidimos e o que fazemos — quase sempre e bastante — influenciam o modo de vir a ser das coisas, mesmo que o determinismo seja verdade. Esta ideia fundamental foi apresentada por outro influente compatibilista clássico:
"Um fatalista acredita não só que o que está para acontecer é o resultado infalível das causas que o precederam [que é aquilo que os deterministas acreditam], mas que não adianta lutar contra isso; o que tiver de acontecer, acontecerá por mais que resistamos. [Assim, os fatalistas acreditam que num homem] o carácter é formado para ele, mas não por ele; pelo que se os seus desejos fossem diferentes, tal seria irrelevante, pois não têm o poder de alterar o carácter."
O determinismo, afirma Mill, não implica que não tenhamos influência sobre o modo como se desenvolvem os acontecimentos, incluindo a formação do nosso carácter. Temos obviamente essa influência, e o determinismo por si só não o determina. Ao contrário, acreditar no fatalismo pode ter consequências fatais. Um homem doente pode desculpar-se por não procurar um médico dizendo: "Se chegar a minha hora, nada haverá a fazer". Ou um soldado pode usar uma frase familiar para justificar o facto de não se ter precavido: "Há por aí uma bala com o meu nome. Quando chegar, não serei capaz de o evitar, faça eu o que fizer." O que Mill está a dizer é que estas afirmações fatalistas não se seguem do determinismo por si só. Pensar que sim é "um grande erro".
As afirmações do homem doente e do soldado são alguns exemplos concretos daquilo que os filósofos antigos designavam de "sofisma preguiçoso" (significando "sofisma" falácia). As respostas adequadas ao homem doente e ao soldado seriam, "Ter ou não chegado a hora depende em grande parte de vir a procurar um médico; e haver ou não uma bala com o seu nome depende das precauções que vier a tomar. Por isso, em vez de ficar sentado sem fazer nada, vá consultar um médico ou tome precauções". Esta seria a resposta que os compatibilistas, como Mill, dariam ao "sofisma preguiçoso". Acreditar que o determinismo é compatível com a liberdade, diriam, não fazem de si um fatalista. Esta crença deve convencê-lo de que a sua vida está, até certo ponto, nas suas mãos, uma vez que o modo como deliberar pode vir no futuro a fazer diferença, ainda que o determinismo seja verdadeiro.
5. "Não confundam determinismo com mecanicismo". Outra confusão comum, de acordo com os compatibilistas, é pensar que se o determinismo é verdadeiro, então todos seríamos máquinas, trabalhando mecanicamente como relógios, robôs ou computadores. Ou, em alternativa, seríamos como amibas ou insectos ou outro tipo de criaturas inferiores que respondem automaticamente, em função de um conjunto fixo de respostas ao estímulos do nosso ambiente. Mas, insistem os compatibilistas, nenhuma destas consequências se segue do determinismo.
Suponha-se que defendemos que o mundo é determinado. Ainda assim haveria uma enorme diferença entre os seres humanos, por um lado, e as amibas e insectos, ou máquinas e robôs, pelo outro. Ao contrário dos mecanismos (mesmo os mais complexas como os computadores) ou robôs, nós possuímos emoções e vida interior consciente, e reagimos ao mundo em função disso. Ao contrário das amibas, dos insectos e outras criaturas deste tipo, não reagimos ao ambiente de forma meramente instintiva e automática. Raciocinamos e deliberamos, questionamos os nossos motivos, reflectimos sobre os nossos valores, fazemos planos para o futuro, reformamos os nossos caracteres, e fazemos promessas uns aos outros que depois nos sentimos obrigados a cumprir.
O determinismo não recusa estas capacidades, defendem os compatibilistas, e são estas capacidades que nos tornam seres livres e responsáveis, capazes de acções morais — de uma forma que os mecanismos e os insectos não são. O determinismo não implica comportamento mecânico, inflexível, ou até automático. O determinismo é consistente com todo o espectro de complexidade e flexibilidade do comportamento dos seres vivos, desde os mais simples como as amibas até aos seres humanos. A complexidade e os graus de liberdade das criaturas do mundo, das amibas aos seres humanos, podem diferir incrivelmente, mas ainda assim estas propriedades podem ser determinadas."
Robert Kane

Retirado de http://www.criticanarede.com/

sábado, 11 de outubro de 2008

COMPATIBILISMO iv

Parte IV
5. Constrangimento, controle, fatalismo e mecanicismo
Até agora o argumento compatibilista diz-nos que as pessoas acreditam que o determinismo entra em conflito com o livre-arbítrio porque possuem ideias confusas sobre a liberdade. Mas os argumentos compatibilistas sobre a liberdade de acção e o livre-arbítrio são apenas metade da posição compatibilista. Também defendem que as pessoas acreditam erradamente que o determinismo e o livre-arbítrio entram em conflito porque têm ideias confusas sobre o determinismo. O determinismo, insistem os compatibilistas, não é a coisa assustadora que pensamos que é. As pessoas acreditam que o determinismo é uma ameaça à liberdade, porque habitualmente confundem determinismo com um conjunto de outras coisas que são ameaças à liberdade. Mas, de acordo com os compatibilistas, o determinismo não implica estas outras coisas ameaçadoras. Dizem, por exemplo:
1. "Não confundam determinismo com constrangimento, coacção ou compulsão". A liberdade é o oposto de constrangimento, coacção e compulsão, insistem os compatibilistas, mas não é o oposto de determinismo. Constrangimento, coacção e compulsão actuam contra a nossa vontade, impedindo-nos de escolher ou fazer o que queremos. Em contraste, o determinismo não actua necessariamente contra a nossa vontade, nem nos impede sempre de fazer o que queremos. O determinismo causal, para ser exacto, significa que todos os eventos actuais decorrem de eventos anteriores de acordo com leis invariáveis da natureza. Mas, dizem os compatibilistas, é um erro pensar que as leis da natureza nos constrangem. De acordo com A. J. Ayer (um reconhecido compatibilista do século XX), muitas pessoas pensam que a liberdade é incompatível com o determinismo, porque possuem a imagem errada de que somos dominados por causas naturais ou pelas leis da natureza, que nos forçam contra as nossas vontades. Mas, de facto, a existência de leis da natureza diz-nos apenas que certos acontecimentos decorrem de outros acontecimentos de acordo com padrões regulares. Ser governado por leis da natureza não significa viver acorrentado.
2. "Não confundam causalidade com constrangimento". Os compatibilistas também insistem que são constrangimentos e não meras causas de um tipo especial, que ameaçam a liberdade. Os constrangimentos são causas, mas são causas de um tipo especial: impedimentos ou obstáculos relativamente ao que queremos fazer, tal como estar acorrentado ou paralisado. Nem todas as causas são impedimentos à liberdade neste sentido. De facto, algumas causas, como a força muscular ou a força de vontade interior, incitam-nos realmente a agir de acordo com o que queremos. É um erro pensar que as acções não são livres simplesmente porque são causadas. Independentemente de as acções serem ou não livres, dependem do tipo de causas que têm: algumas causas potenciam a nossa liberdade, enquanto que outras (constrangimentos, por exemplo) impedem a nossa liberdade.
Há ainda um outro erro, dizem os compatibilistas, que é o de pensar que, quando agimos ou escolhemos livremente de acordo com a nossa vontade, as nossas acções são totalmente incausadas. Pelo contrário, as nossas acções livres são causadas pelo nosso carácter e motivos, e este estado de coisas é bom. Se as acções não fossem causadas pelo nosso carácter e pelos nossos motivos, não poderíamos ser responsabilizados pelas nossas acções. Não seriam as nossas acções. Este ponto foi defendido numa passagem conhecida de David Hume, talvez o compatibilista clássico mais influente:
"Sempre que as acções procedem não de alguma causa como o carácter e disposição da pessoa que a realizou, não podem servir para as honrar, nem para as censurar, se forem más. A pessoa não será responsável por elas; e como não procedem de algo delas que seja durável e constante é impossível que ela possa ser por si objecto de punição ou vingança."
Os compatibilistas clássicos seguiram Hume defendendo que as acções responsáveis não poderiam ser incausadas; estas acções devem ter o tipo certo de causas — causas que vem do interior dos nossos eus e que expressam os nossos carácteres e motivos, em vez de causas impostas sobre as nossas vontades. É um erro pensar que o livre-arbítrio e o determinismo não são compatíveis porque as acções livres têm de ser incausadas. As acções livre são não constrangidas, e não incausadas.
3. "Não confundam determinismo com controle de outros agentes". Os compatibilistas podem aceitar (e amiúde aceitam) que ser controlado ou manipulado por outras pessoas funciona de facto contra a nossa liberdade. É por isso que nas utopias da ficção científica, como Admirável Mundo Novo ou Walden II, em que as pessoas são controladas por engenheiros comprtamentais ou neurocientistas, parece acontecer uma destruição da liberdade humana. Mas os compatibilistas insistem que o determinismo em si não implica necessariamente que quaisquer outras pessoas ou agentes estejam a controlar o comportamento ou a manipular-nos.A natureza "não nos controla", diz o compatibilista Daniel Dennett, uma vez que a natureza não é um agente da acção. O que é questionável no controlo de outros agentes, afirma Dennett — sejam engenheiros comportamentais ou de outro tipo — é que as outras pessoas nos estejam a usar como meios para os seus fins, assenhorando-se de nós e acomodando-nos aos seus desejos. Rejeitamos este tipo de interferência. Mas o facto de sermos determinados não implica que quaisquer outros agentes estejam a interferir ou a usar-nos neste sentido. Então os compatibilistas podem rejeitar os cenários de Admirável Mundo Novo e de Walden II, afirma Dennett, sem desistir da sua crença que o determinismo é consistente com a liberdade e com a responsabilidade.

Robert Kane
Retirado de http://www.criticanarede.com/

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O HOMEM ESTÁ CONDENADO A SER LIVRE

O existencialista pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num universo inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos num plano em que há somente homens. Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido.” Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem, fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos actos e que por conseguinte, tal paixão é uma desculpa.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 208-209

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

COMPATIBILISMO iii

Parte III
4. Se o passado tivesse sido diferente
Mas os compatibilistas têm consciência de que muitas pessoas não ficaram satisfeitas com esta concepção de livre-arbítrio como mera escolha ou decisão não constrangida. Por isso dão uma segunda resposta:
"Se ainda não estás satisfeito com esta concepção de livre-arbítrio, então não há dúvida que estás a pensar no livre-arbítrio de uma forma que não a simples capacidade de escolher ou decidir como se quer sem constrangimento. Deves estar a pensar no livre-arbítrio como algo mais "profundo". Como um tipo de controlo último sobre o que desejas ou queres em primeiro lugar: um controlo incompatível com a determinação da tua vontade por qualquer tipo de acontecimentos no passado relativamente aos quais não tens controle. Ora, os compatibilistas podem obviamente apreender este sentido profundo do livre-arbítrio, independentemente do que façamos, porque é incompatível com o determinismo. Mas, como compatibilistas, acreditamos que o tal sentido profundo de livre-arbítrio — ou qualquer tipo de livre-arbítrio que requer indeterminismo — é incoerente. Ninguém pode ter um livre-arbítrio neste sentido mais profundo."
Por que acreditam os compatibilistas que qualquer tipo de livre-arbítrio mais profundo que requeira indeterminismo tem de ser incoerente? Bem, se o determinismo significa (como significa), o mesmo passado, o mesmo futuro, então a negação do determinismo — o indeterminismo — deve significar: o mesmo passado, diferentes futuros possíveis. Mas se é isso que o indeterminismo significa — o mesmo passado, diferentes futuros possíveis — o indeterminismo tem consequências estranhas relativamente às escolhas livres. Considere-se o caso da Molly a deliberar sobre se deve integrar uma firma de advogados de Dallas ou de Austin. Depois de muito pensar, digamos, Molly decide que a firma de Dallas é o melhor meio para concretizar os seus planos e escolhe-a. Ora, se a sua escolha foi indeterminada, significa que podia ter escolhido outra coisa (poderia ter escolhido a firma de Austin) dado o mesmo passado — uma vez que é isso o que o indeterminismo exige: o mesmo passado, diferente futuros possíveis. Mas note-se o que esta exigência significa no caso da Molly: exactamente a mesma deliberação prévia, os mesmos processos mentais, as mesmas crenças, os mesmos desejos e outros motivos (nem a mínima diferença!) que conduziram Molly a preferir e a escolher a firma de Dallas, poderiam tê-la conduzido igualmente e em alternativa a escolher a firma de Austin.
Este cenário não faz sentido, afirmam os compatibilistas. Seria absurdo e irracional a Molly escolher a firma de Austin dados exactamente os mesmos motivos e o processo de raciocínio prévio que a conduziram de facto a acreditar que a firma de Dallas era a melhor solução para a sua carreira. Afirmar que a Molly "poderia ter escolhido diferentemente" nestas circunstâncias deve querer dizer outra coisa qualquer, dizem os compatibilistas — outra coisa como: se a Molly tivesse tido crenças e desejos diferentes, ou se tivesse raciocinado de maneira diferente, ou se outros pensamentos tivessem entrado na sua mente antes de ter escolhido a firma de Dallas, então talvez tivesse decidido a favor da firma de Austin e a tivesse escolhido. Mas esta interpretação mais sensível de "poderia ter agido de outra forma", dizem os compatibilistas, significa apenas que a Molly teria agido de outra forma, se as coisas tivessem sido diferentes — se o passado tivesse de alguma forma sido diferente. E esta afirmação, insistem, não entra em conflito com o determinismo. Com efeito, esta interpretação de "poderia ter agido de outra forma" encaixa perfeitamente na análise condicional ou hipotética do compatibilismo clássico — "Molly poderia ter escolhido de outra forma" significa "Ela teria escolhido de outra forma, se o tivesse desejado (se os seus processos mentais tivessem sido de alguma forma diferentes)". E tal hipotética interpretação de "poderia ter agido de outra forma" é, como vimos, compatível com o determinismo.
O primeiro pensamento relativamente a este argumento é que deve haver uma certa forma de avaliar a conclusão de que a escolha da Molly é indeterminada, e devia ser capaz de escolher de outra forma "dadas as mesmas circunstâncias passadas". Mas o que se passa é que não é fácil evitar esta conclusão. O indeterminismo, que é a negação do determinismo, significa "diferentes futuros possíveis, dado o mesmo passado." Se a Molly é realmente livre de escolher diferentes opções, ela deve ser capaz de escolher qualquer uma das possibilidades (a firma de Dallas e a firma de Austin), dadas as mesmas circunstâncias passadas até ao momento em que escolhe.
Não nos podemos enganar aqui sugerindo que se o passado tivesse sido ligeiramente diferente, então a Molly poderia ter escolhido diferentemente (escolhido a firma de Austin). Os deterministas e os compatibilistas podem dizer isto: porque insistem que a Molly poderia ter racionalmente escolhido diferentemente apenas se o passado tivesse de alguma forma sido diferente (por mais pequena que fosse a diferença). Mas aqueles que acreditam que as escolhas livres não podem ser determinadas têm de dizer que a Molly poderia ter escolhido diferentemente futuros possíveis, dado o mesmo passado no momento exacto em que escolheu. E isto faz parecer arbitrário e irracional escolher de outra forma nas mesmas circunstâncias.Em síntese: os compatibilistas têm uma dupla resposta à objecção de que a sua visão apreende a liberdade de acção, mas não o livre-arbítrio. Por outro lado, dizem, se "o livre-arbítrio" significa o que habitualmente entendemos por escolhas e decisões livres (do tipo que não são coagidas ou constrangidas), então o livre-arbítrio pode ser apreendido por uma análise compatibilista e pode então ser entendido como compatível com o determinismo. Por outro lado, se "o livre-arbítrio" tem um significado mais profundo — refere-se a um certo tipo de liberdade "mais profunda" da vontade que não é compatível com o determinismo — então a liberdade "mais profunda" da vontade é incoerente e é algo que, de qualquer forma, não podemos ter.

Robert Kane
Retirado de http://www.criticanarede.com/