segunda-feira, 26 de maio de 2008

A MORTE ii

A morte interpreta-se em toda a tradição filosófica e religiosa quer como passagem ao nada, quer como passagem a uma existência que é outra, que se prolonga num novo contexto. É pensada como a alternativa do ser e do nada, que abona a morte dos nossos próximos, que efectivamente deixam de existir no mundo empírico, o que significa, para esse mundo, desaparecimento ou partida. Abordamo-la como nada de uma maneira mais profunda e de algum modo a priori, na paixão do assassínio. A intencionalidade espontânea desta visão visa o aniquilamento. Caim, quando matava Abel, devia ter da morte esse saber. A identificação da morte com o nada convém à morte do Outro no assassínio. Mas o nada apresenta-se nela ao mesmo tempo como uma espécie de impossibilidade. Com efeito, fora da minha consciência moral, Outrem não pode encontrar-se com Outrem e o seu rosto exprime a minha impossibilidade moral de reduzir ao nada.
A minha morte não se deduz, por analogia, da morte dos outros; inscreve-se, isso sim, no medo que posso ter para o meu ser. O “conhecimento” do ameaçador antecede toda a experiência racionalizada sobre a morte de outrem – o que, em linguagem naturalista, se exprime como conhecimento instintivo da morte. Não é o saber da morte que define a ameaça, é a iminência da morte, no seu irredutível movimento de aproximação, que originalmente consiste a ameaça, que se profere e se articula, se assim podemos exprimir-nos, o “saber da morte”. O carácter imprevisível da morte vem do facto de ela não se conter em nenhum horizonte. Ela não se oferece a nenhuma espécie de domínio. Apanha-me sem me deixar a hipótese que a luta dá, porque, na luta recíproca, apodero-me daquilo que me agarra. Na morte, estou exposto à violência absoluta, ao assassínio na noite.
Não posso em absoluto captar o instante da morte – “que supera o nosso alcance”, como diria Montaigne. Contrariamente a todos os instantes da minha vida, que se estendem entre o meu nascimento e a minha morte, e que podem ser evocados ou antecipados. A minha morte vem num instante sobre o qual, sob nenhuma forma, posso exercer o meu poder. Não embato num obstáculo que nesse choque pelo menos eu toco e que, ao superá-lo ou ao suportá-lo, integro na minha vida e cuja alteridade suspendo. A morte é uma ameaça que se aproxima de mim como um mistério; o seu segredo determina-a – ela aproxima-se sem poder ser assumida, de maneira que o tempo que me separa da minha morte, ao mesmo tempo diminui e não deixa de diminuir, comporta como que um último intervalo que a minha consciência não pode transpor e em que de algum modo se dará um salto da morte até mim.

LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, 1988, Lisboa, Edições 70, pp 211-213

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