quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

ÉTICA E OBJECTIVIDADE iii


(...) Algumas pessoas pensam que o relativismo ético se segue do facto de as culturas terem padrões diferentes. Ou seja, pensam que a seguinte inferência é válida:
1. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes.
2. Logo, nada está objectivamente certo e errado. No que respeita à ética, os padrões de sociedades diferentes são tudo o que existe.
Contudo, isto é um erro. Do simples facto de as pessoas discordarem quanto a um assunto, não se segue que não haja uma verdade sobre esse assunto. Quando pensamos em questões que não são éticas, isto é óbvio. As culturas podem discordar quanto à Via Láctea - algumas pensam que é uma galáxia; outras pensam que é um rio no céu -, mas não se segue daí que não exista um facto objectivo sobre a natureza da Via Láctea. O mesmo se pode dizer da ética. Se duas culturas discordam quanto a uma questão ética, pode-se explicar isto dizendo que uma delas está enganada. É fácil ignorar este facto se pensarmos apenas em exemplos como padrões de vestuário e práticas de casamento. Estes podem realmente não passar de questões de costume local. A violação, a escravatura e o apedrejamento podem ser diferentes.
O resultado de tudo isto é que, embora devamos respeitar as outras culturas, isso não oferece qualquer razão para nos abstermos sempre de fazer juízos sobre as suas práticas. Podemos ser tolerantes e mostrar respeito, mas pensar que as outras culturas não são perfeitas. No entanto, há outra razão para pensar que é impróprio fazer juízos.
2. A segunda ideia problemática é a de que todos os padrões para fazer juízos são relativos à cultura. Se dizemos que a violação de Mukhtar Mai foi errada, parece que estamos a usar os nossos padrões para julgar as suas práticas. Do nosso ponto de vista, a violação foi errada, mas quem poderá dizer que o nosso ponto de vista é correcto? Podemos dizer que os líderes tribais estão enganados, mas eles podem dizer com a mesma legitimidade que nós estamos enganados. Há assim um impasse, e parece não haver forma de ultrapassar as acusações mútuas.
Formulado mais explicitamente, este segundo argumento diz-nos o seguinte:
1. Se temos uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são erradas, tem de existir um padrão do certo e do errado a quem possamos apelar e que não derive simplesmente da nossa própria cultura. O padrão a que apelamos tem de ser culturalmente neutro.
2. Mas não existem padrões morais culturalmente neutros. Todos os padrões são relativos a uma ou outra sociedade.
3. Logo, não podemos ter uma justificação para dizer que as práticas de outra sociedade são erradas.
Será isto correcto? parece plausível, mas na verdade existe um padrão culturalmente neutro do certo e do errado e não é difícil dizer que padrão é esse. Afinal, a razão pela qual criticamos a violação e o apedrejamento não é a de estas acções serem «contrárias aos padrões americanos». Também não criticamos essas práticas por elas serem de algum modo más para nós. A razão pela qual fazemos a crítica é o facto de Mukhtar Mai e Amina Lawal estarem a ser maltratadas - as práticas sociais em questão são más, não para nós, mas para elas. Deste modo, o padrão culturalmente neutro é o de a prática social em questão ser benéfica ou prejudicial para as pessoas que são afectadas por ela. As boas práticas sociais beneficiam as pessoas; as más práticas sociais prejudicam as pessoas.
Este critério é culturalmente neutro no sentido relevante. Em primeiro lugar, não implica um favoritismo por algumas culturas. Pode ser aplicado da mesma forma a todas as sociedades, incluindo a nossa. Em segundo lugar, a fonte do princípio não reside no interior de uma cultura particular. Pelo contrário, o bem-estar dos seus membros é um valor intrínseco à vida de qualquer cultura viável. É um valor que tem de ser adoptado em alguma medida e sem ele uma cultura não existe. É uma condição prévia da cultura, e não uma norma contingente que surge nela. É por esta razão que nenhuma sociedade pode considerar irrelevante este tipo de crítica. A sugestão de que uma prática prejudica as pessoas nunca pode ser afastada com a alegação de que constitui um padrão estranho «trazido de fora» para julgar as práticas de uma cultura.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva -(Colecção Filosofia Aberta- pp. 241-4)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

ÉTICA E OBJECTIVIDADE ii


Será a ética apenas uma questão de convenções sociais?
A ideia de que a ética é apenas uma questão de convenções sociais atraiu sempre as pessoas educadas. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes, diz-se, e pensar que há um padrão universal que se aplica em todas as épocas e lugares não passa de uma ingenuidade. É fácil encontrar exemplos. Nos países islâmicos, os homens podem ter mais do que uma mulher. Na Europa medieval, pensava-se que emprestar dinheiro a juros era pecado. Os povos nativos do Norte da Gronelândia por vezes abandonavam as pessoas velhas, deixando-as morrer ao frio. Ao pensar em exemplos como estes, os antropólogos concordam há muito com a afirmação de Heródoto:« O costume é o rei de todos nós.»
Hoje a ideia de que a moralidade é um produto social é atraente por uma razão adicional. O multiculturalismo é agora uma questão importante, especialmente nos Estados Unidos. Dada a posição dominante dos Estados Unidos no mundo, diz-se, e dada a forma como as acções americanas afectam os outros povos, os americanos estão especialmente obrigados a respeitar e a apreciar as diferenças entre culturas. Em particular, diz-se, temos de evitar a suposição arrogante de que os nossos costumes são «certos» e de que os costumes dos outros povos são inferiores. Isto significa, em parte, que devemos abster-nos de fazer juízos morais sobre as outras culturas. Devemos adoptar uma política de vive e deixa viver.
Superficialmente, esta atitude parece esclarecida. De facto, a tolerância é uma virtude importante e é óbvio que muitas práticas culturais não passam de costumes sociais - por exemplo, padrões de vestuário, de alimentação, de organização doméstica.
No entanto as questões fundamentais de justiça são diferentes. Quando pensamos em exemplos como a escravatura, o racismo e os maus tratos infligidos às mulheres, encolher os ombros e dizer «Eles têm os seus costumes e nós temos os nossos» já não parece tão esclarecido. (...)
(...) Temos a ideia, já mencionada, de que devemos respeitar as diferenças entre culturas. Por muito questionáveis que as práticas de outra sociedade possam parecer-nos, temos de reconhecer que as pessoas que vivem nessas culturas têm o direito de seguir as suas próprias tradições. (E acrescentar-se-á, as nossas tradições podem parecer-lhes igualmente questionáveis.) Será isto verdade? Como já observámos, esta ideia exerce uma certa atracção superficial. No entanto, caí por terra quando a analisamos.
Respeitar uma cultura não implica que tenhamos de considerar aceitável tudo o que nela existe. Podemos pensar que uma cultura tem uma história maravilhosa e que produziu grandes obras de arte e ideias belas. Podemos pensar que as suas figuras cimeiras são nobres e admiráveis. Podemos pensar que a nossa própria cultura tem muito a aprender com ela. Ainda assim, isto não significa que tenhamos de considerá-la perfeita. Pode incluir elementos terríveis. A maior parte de nós adopta precisamente esta atitude em relação à sua própria sociedade - se formos americanos, provavelmente pensamos que a América é um grande país, mas que alguns aspectos da vida americana são maus e precisam de ser corrigidos. Por que razão não devemos pensar o mesmo sobre o Paquistão ou a Nigéria? Se o fizermos, estaremos a concordar com muitos paquistaneses e negerianos.
Além disso, é um erro conceber o mundo como uma colecção de culturas discretas e unificadas que existem isoladamente. As culturas sobrepõem-se e interagem.
Problemas da Filosofia, James Rachels- Gradiva, (Colecção Filosofia Aberta, pp 237-240)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

ÉTICA E OBJECTIVIDADE


O Desafio de Trasímaco
Trasímaco tem o infortúnio de ser recordado sobretudo a partir da descrição de alguém que o desprezava. Foi um dos sofistas gregos, os professores profissionais que floresceram em Atenas na época de Sócrates. Contrariamente a Sócrates, os sofistas cobravam pelo seu ensino, e Platão não hesita em insinuar que estavam mais interessados no dinheiro do que na verdade. Platão é especialmente duro com Trasímaco, apresentando-o desta forma na Républica:
Enquanto conversávamos «diz Sócrates», Trasímaco tentara interromper-nos com frequência, mas fora impedido de o fazer pelos que estavam sentados junto de si, que queriam escutar o argumento até ao fim. Mas, quando parámos, ele não foi capaz de se conter e, num salto, atirou-se sobre nós como uma fera, como se quisesse fazer-nos em pedaços. Polemarco e eu ficámos assustados enquanto Trasímaco irrompeu e disse: «Que absurdo é este Sócrates?»
O «absurdo» era uma discussão sobre a justiça. Trasímaco estava impaciente porque Sócrates e os seus amigos estavam a presumir que a justiça era algo real e importante. Trasímaco negava isso. Em seu entender, as pessoas acreditavam no certo e no errado apenas por terem sido ensinadas a obedecer às regras da sua sociedade. No entanto, essas regras não passavam de invenções humanas. Trasímaco acrescentou que o código ético de uma sociedade reflectiria os interesses das suas classes dominantes, pelo que as pessoas comuns estavam a ser simplesmente estúpidas quando pensavam ter de «fazer aquilo que está certo».
Trasímaco desafiou Sócrates a provar que a ética tinha um fundamento objectivo. Obviamente, gostaríamos de acreditar que tem esse fundamento. Gostaríamos de pensar que algumas coisas são realmente boas e que outras são realmente más, sejam quais forem as nossas atitudes e convenções sociais. Mas como será possível msotrar isso? No mundo antigo, a ideia de que a ética é apenas uma questão de opinião era um lugar-comum. Com a ascensão da ciência moderna, o cepticismo quanto à ética tornou-se ainda mais atraente. A ciência moderna mostra-nos o mundo como um lugar frio e indiferente que não se importa connosco ou com os nossos projectos. O universo é visto como um domínio de factos alheios ao que está certo ou errado. Como Hume disse,» A vida de um homem não tem mais importância para o universo do que a de uma ostra». Deste modo, parece natural concluir que a ética não pode passar de uma invenção humana. Uma forma de enfrentar o desafio de Trasímaco pode consistir em introduzir noções religiosas. Se o universo foi criado por Deus segundo um plano divino, e se Deus produz mandamentos sobre como devemos viver, podemos encontrar aqui um fundamento objectivo para os nossos juízos sobre o que está certo e errado. Mas suponha-se que pomos de parte esta possibilidade. Haverá alguma forma de defender a objectividade da ética sem invocar considerações religiosas. Veremos que sim. Os argumentos a favor do cepticimo ético não são tão poderosos como parecem.
Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção Filosofia Aberta, pp. 235-7)

domingo, 27 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL vi


6. Sumário
O relativismo cultural afirma que "bem" significa o que é "socialmente aprovado" pela maioria de uma dada cultura. O infantícidio não é objectivamente um bem ou um mal; pelo contrário, é um bem numa sociedade que o aprove e um mal numa sociedade onde não obtenha aprovação.
O relativismo cultural considera que a moral é um produto da cultura. Afirma que as diferentes sociedades discordam amplamente sobre a moral e que não temos meios claros para resolver as diferenças. Os relativistas culturais consideram-se pessoas tolerantes; olham para as outras culturas não como estando "erradas" mas como "diferentes".
Apesar de inicialmente plausível, o relativismo cultural tem vários problemas. Por exemplo, torna impossível discordar dos valores da nossa sociedade. Acontece, por vezes, afirmarmos que, apesar de socialmente aprovada, uma certa atitude não é boa. E isto está em contradição com o RC.
Além disso, o relativismo cultural implica que a intolerância e o racismo sejam um "bem" se a sociedade o aprovar. Leva-nos ainda a aceitar as normas da nossa sociedade acriticamente.
O relativismo cultural combate a ideia de que existem valores objectivos. O ataque pode ser desmontado com facilidade se o examinarmos cuidadosamente.
São muitos os especialistas em ciências sociais que se opõem ao relativismo cultural. O psicólogo Lawrence Kohlberg, por exemplo, defende que as pessoas de todas as culturas passam pelos mesmos estádios de desenvolvimento moral. O relativismo cultural representa um estádio relativamente baixo no qual simplesmente nos conformamos com os valores da sociedade em que vivemos. Em estádios mais avançados, o relativismo cultural é rejeitado; consideramos criticamente as normas aceites e pensamos pela nossa cabeça em questões de ordem moral.
Harry Gensler
Tradução de Paulo Ruas
Retirado da Revista de Filosofia Crítica na Rede

sábado, 26 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL v


Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA
5. Ciências sociais
Há um estereótipo bastante divulgado que afirma que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais. Na verdade, os especialistas em ciências sociais defendem um âmbito variado de perspectivas sobre os fundamentos da ética. Muitos rejeitam este género de relativismo. O psicólogo moral Lawrence Kohlberg, por exemplo, considerava o relativismo cultural uma abordagem relativamente imatura da moralidade, típica de adolescentes e de adultos jovens. Kohlberg afirmava que todos nós, independentemente da nossa cultura, desenvolvemos o pensamento moral através de uma série de estádios. Os primeiros quatro são os seguintes:
Punição/obediência: o "mal" é o que implica punição.
Recompensas: o "bem" é aquilo que nos dá o que desejamos.
Aprovação familiar: o "bem" é o que agrada à mamã e ao papá.
Aprovação social: o "bem" é aquilo que é socialmente aprovado.
Quando são muito novas, as crianças pensam na moral em termos de punições e obediência. Mais tarde, começam a pensar em termos de recompensa e, em seguida, em termos de aprovação familiar. Mais tarde ainda, na adolescência ou quando são adultos jovens, atingem a fase do relativismo cultural. Nesta fase, o "bem" coincide com o que é socialmente aprovado, o grupo de amigos em primeiro lugar, e depois a sociedade como um todo. É dada importância ao tipo de vestuário que se usa e ao género certo de música que se ouve — onde "género certo" significa seja o que for que é socialmente aprovado. São muitos os jovens estudantes liceais que se debatem com estas questões. Talvez por isso levem a sério o relativismo cultural — mesmo que o ponto de vista seja implausível quando o analisamos cuidadosamente.
Segundo Kohlberg, que fase sucede ao relativismo cultural? Por vezes, confusão e cepticismo; de facto, um curso de ética pode promover esta atitude. A seguir, passamos para o estádio 5 (semelhante ao utilitarismo das regras) ou para o estádio 6 (próximo da Regra de Ouro). Ambos procuram avaliar as normas convencionais racionalmente.
Não estou a referir Kohlberg com o objectivo de argumentar que, sendo correcta a sua perspectiva, o relativismo cultural está errado. Esta perspectiva é controversa. São vários os psicólogos que propõem uma sequência diferente dos estádios morais ou que rejeitam a ideia de que existem estádios. Além disso, o relativismo cultural já foi adequadamente demolido; não é necessária a ajuda da psicologia. Mencionei Kohlberg porque muitas pessoas se sentem pressionadas a aceitar o relativismo cultural em virtude do mito de que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais. Mas este género de consenso não existe. Kohlberg e muitos outros especialistas em ciências sociais rejeitam enfaticamente o relativismo cultural. Vêem nele um estádio imaturo do pensamento moral que nos faz conformar com a nossa sociedade.
A abordagem de Kohlberg coloca, no entanto, um problema acerca do significado de "bem". As pessoas podem querer dizer com esta palavra diferentes coisas em estádios diferentes; numa criança, "bem" pode significar "o que agrada à mamã e ao papá". Logo, devemos dirigir a nossa atenção para aquilo que as pessoas com maturidade moral têm em vista com esta palavra. Se o nosso argumento estiver correcto, uma pessoa com maturidade moral, quando utiliza este termo, não pretende afirmar que "bem" significa "socialmente aprovado".

Retirado de Crítica na Rede

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL iv


Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA
4. Valores objectivos
É necessário falar um pouco mais acerca da objectividade dos valores. Este é um tópico bastante vasto e importante.
A perspectiva objectivista (também designada realismo moral) defende que certas coisas são objectivamente um bem ou objectivamente um mal, independentemente do que possamos sentir ou pensar. Martin Luther King, por exemplo, defendia que o racismo está objectivamente errado. Que o racismo esteja errado era para ele um facto. Qualquer pessoa e cultura que aprovasse o racismo estariam erradas. Ao dizer isto, King não estava a absolutizar as normas da nossa sociedade; discordava, pelo contrário, das normas amplamente aceites. Fazia apelo a uma verdade mais elevada acerca do bem e do mal, uma verdade que não estava dependente do modo de pensar ou sentir das pessoas neste ou naquele momento. Fazia apelo a valores objectivos.
Ana rejeita a crença em valores objectivos e chama-lhe "o mito da objectividade". Nesta perspectiva, as coisas são um bem ou um mal apenas relativamente a esta ou àquela cultura. Não são objectivamente boas ou más, como King pensava. Mas serão os valores objectivos realmente um "mito"? Para responder a isto convém examinar o raciocínio de Ana.
Ana tinha três argumentos contra a objectividade dos valores. Não existem verdades morais objectivas porque:
A moral é um produto da cultura;
As sociedades discordam amplamente acerca da moralidade;
Não existe uma maneira clara de resolver diferenças morais.
De facto, qualquer destes argumentos cede com facilidade se o examinarmos cuidadosamente.
"Dado que a moral é um produto da cultura, não podem existir verdades morais objectivas". O problema deste raciocínio é que um produto da cultura pode expressar uma verdade objectiva. Qualquer livro é um produto cultural; no entanto, muitos livros exprimem verdades objectivas. Da mesma forma, um código moral pode ser um produto cultural e expressar verdades objectivas acerca da maneira como as pessoas devem viver.
"Visto as diferentes culturas discordarem amplamente sobre a moral, não podem existir verdades morais objectivas." O simples facto de existir desacordo não mostra, no entanto, que não existe verdade neste domínio e que nenhum dos lados está certo ou errado. O extenso desacordo entre diferentes culturas acerca de antropologia, religião, e até em física, não impede a existência de verdades objectivas nestes domínios. Logo, o desacordo em questões morais não mostra que não exista verdade nestes assuntos. Podemos igualmente questionar-nos se as diferentes culturas divergem assim tão profundamente sobre a moral. Na maior parte das culturas existem normas muito semelhantes quanto a matar, roubar e mentir. E muitas das diferenças podem ser explicadas em resultado da aplicação dos mesmos valores básicos a diferentes situações. A Regra de Ouro "Trata os outros como queres ser tratado" é quase universalmente aceite em todo o mundo. E as diferentes culturas que constituem as Nações Unidas concordaram em larga medida a respeito dos direitos humanos mais elementares.
"Como não existe uma maneira clara de resolver diferenças morais, não é possível que existam verdades morais objectivas." Mas podem existir maneiras claras de resolver pelo menos um grande número de diferenças morais. Precisamos de uma forma de raciocinar em ética que faça apelo às pessoas inteligentes e com suficiente abertura de espírito de todas as culturas — isto faria pela ética o que se obteve em ciência com o método experimental. Ainda que não existisse uma maneira sólida de conhecer verdades morais, daí não se segue que tais verdades não existam. Existem verdades que não conhecemos inequivocamente. Terá chovido neste lugar 500 anos atrás? Há seguramente uma verdade acerca disto que nunca conheceremos. Apenas uma pequena percentagem de verdades são conhecidas. Logo, podem existir verdades morais objectivas mesmo que não possamos sabê-lo.
O ataque de Ana aos valores morais objectivos falhou. Mas isto não encerra o tema porque há mais argumentos. O debate sobre a objectividade dos valores é importante. Antes de terminar gostaria de clarificar alguns aspectos.
O ponto de vista objectivista afirma que algumas coisas são objectivamente um bem ou um mal, independentemente do que possamos pensar ou sentir; contudo, esta perspectiva está preparada para aceitar algum relativismo noutras áreas. Muitas regras sociais são claramente determinadas por padrões locais:
Regra local: "É proibido virar à direita com a luz vermelha."
Regra de etiqueta local: "Use o garfo apenas com a mão esquerda."
É necessário respeitar este género de regras locais; ao proceder de outra maneira podemos ferir as pessoas, quer porque chocamos contra os seus carros quer porque ferimos os seus sentimentos. Na concepção objectivista, a exigência de não magoar as outras pessoas é uma regra de um género diferente — uma regra moral — não determinada por costumes locais. Considera-se que as regras morais possuem mais autoridade que as leis governamentais ou as regras de etiqueta; são regras que qualquer sociedade deve respeitar se quiser sobreviver e prosperar. Se visitamos um lugar cujos padrões permitem magoar as pessoas por razões triviais, então esses padrões estão errados. O relativismo cultural disputa esta afirmação. A ideia é que os padrões locais são determinantes ainda que se trate de princípios morais básicos; assim, ferir outras pessoas por motivos triviais é um bem se esta atitude for socialmente aprovada.
Respeitar as diferenças culturais não nos transforma em relativistas culturais. Este é um falso estereótipo. O que caracteriza o relativismo cultural é a afirmação de que tudo o que é socialmente aprovado é um bem.
Retirado de Crítica na Rede, Revista de Filosofia.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL iii




Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA

3. Diversidade moral
O relativismo cultural considera o mundo como algo que está dividido de uma forma nítida em sociedades distintas. Em cada uma delas não existe desacordo em questões morais ou apenas em pequena escala, dado que a perspectiva maioritária determina o que é considerado um bem ou um mal nessa sociedade. Mas o mundo não é assim. Pelo contrário, o mundo é uma mistura confusa de sociedades e grupos sobrepostos; e os indivíduos não seguem necessariamente o ponto de vista da maioria.
O relativismo cultural ignora o problema dos subgrupos. Todos nós fazemos parte de grupos sobrepostos. Cada um de nós, por exemplo, faz parte de uma nação, de um estado, de uma cidade, de um bairro. Além disso, cada um de nós pertence a várias comunidades, profissionais, religiosas, grupos de amigos, etc. É frequente estes grupos terem valores que estão em conflito. De acordo com o RC, quando afirmo "O racismo é um mal" pretendo dizer "A minha sociedade desaprova o racismo". Mas a que sociedade nos referimos? Talvez a maioria das pessoas que pertencem à minha comunidade religiosa e ao meu país desaprove o racismo, enquanto a maioria dos que fazem parte do meu grupo profissional e familiar o aprovem. O relativismo cultural poderia dar-nos meios para nos conduzirmos correctamente no plano moral apenas se cada um de nós pertencesse a uma única sociedade. Mas o mundo é bastante mais complicado do que este quadro sugere. Até certo ponto, todos nós somos indivíduos multi-culturalizados.
O RC não tenta estabelecer normas comuns entre sociedades. À medida que a tecnologia invade o planeta, as disputas morais entre diferentes sociedades têm tendência para se tornarem mais importantes. O país A aprova a existência de direitos iguais para as mulheres (ou outras raças e religiões), mas o país B desaprova-o. Que deve fazer uma companhia multinacional que opera nos dois países? Ou as sociedades A e B têm conflitos de valores que conduzem à guerra. Dado que o relativismo cultural pouco nos ajuda acerca destes problemas, oferece-nos uma base muito pobre para responder às exigências da vida no século XXI.
Como responder à diversidade cultural entre sociedades? Ana rejeita a atitude dogmática do género "Nós estamos certos e eles errados". Percebe a necessidade de compreender as sociedades e culturas diferentes da sua própria a partir do ponto de vista dessas culturas e sociedades. Estas são ideias positivas. Mas, em seguida, afirma também que nenhum dos lados pode estar errado. Isto limita a nossa capacidade para aprender. Se a nossa cultura não pode estar errada, não pode aprender com os seus próprios erros. Compreender as normas de outras culturas não permitirá ajudar-nos a corrigir os erros das nossas próprias sociedades.
Aqueles que acreditam em valores objectivos vêem estes assuntos de um modo diferente. Poderiam defender algo como isto:
Existem verdades para descobrir no domínio moral, mas nenhuma cultura possui o monopólio destas verdades. As diferentes culturas necessitam de aprender umas com as outras. Para que tomemos consciência dos erros e dos nossos valores, é necessário conhecer como procedem as outras culturas, e de que forma reagem ao que nós fazemos. Aprender com diferentes culturas pode ajudar-nos a corrigir os nossos valores e a aproximar-nos da verdade acerca do modo como devemos viver.
Retirado da Revista Online Crítica na Rede

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL ii


Harry Gensler
John Carroll, University Cleveland, USA
2. Objecções ao RC
Ana deu-nos uma formulação clara de um ponto de vista acerca da moral que muitas pessoas consideram atractiva. Reflectiu bastante acerca da moral e isto permite-nos aprender com ela. Contudo, estou convencido de que a sua perspectiva básica neste domínio está errada. Suponho que Ana acabará por concordar à medida que as suas ideias ficarem mais claras.
Deixem-me indicar o principal problema. RC força-nos a conformar-nos com as normas sociais — ou contradizemo-nos. Se "bem" e "socialmente aprovado" significam a mesma coisa, seja o que for ao qual o primeiro termo se aplique também o segundo lhe é aplicável.
Assim, o seguinte raciocínio seria válido:
Isto e aquilo são socialmente aprovados. Logo, isto e aquilo são bens.
Se o relativismo cultural fosse verdadeiro, não poderíamos consistentemente discordar dos valores da nossa sociedade. Mas este resultado é absurdo. Claro que é possível consistentemente discordar dos valores da nossa sociedade. Podemos afirmar consistentemente que algo é socialmente aprovado e negar que seja um "bem". Isto não é possível se o RC for verdadeiro.
Ana poderia aceitar esta consequência implausível e dizer que é contraditório discordar moralmente da maioria. Mas esta seria uma consequência especialmente difícil de ser aceite. Ana teria de aceitar que os defensores dos direitos civis estariam a contradizer-se ao discordarem da perspectiva aceite pelos segregacionistas. E teria de aceitar a perspectiva da maioria em todas as questões morais — mesmo que perceba que a maioria é ignorante.
Suponha que Ana tinha aprendido que a maioria das pessoas da sua cultura aprovam a intolerância e também a ideia de ridicularizar pessoas de outras culturas. Teria ainda assim de concluir que a intolerância é um bem (apesar de esta atitude contrariar as suas próprias intuições).
A intolerância é socialmente aprovada. Logo, a intolerância é um bem.
Ana teria que aceitar a conclusão (aceitar que a intolerância é boa) ou rejeitar o relativismo cultural. Se quiser ser consistente é necessário modificar pelo menos uma destas perspectivas.
Eis uma dificuldade ainda mais grave. Imaginemos que Ana encontrava alguém chamada Rita Rebelde, oriunda de um país Nazi. Na terra natal de Rita, os judeus e os críticos do governo são colocados em campos de concentração. Sucede que a maioria das pessoas, mal informadas sobre o que se passa, aprovam esta política. Rita é uma dissidente. Defende que esta política, apesar do apoio da maioria das pessoas, está errada. Se Ana quisesse aplicar o RC a esta situação particular teria que dizer a Rita algo do género:
Rita, a palavra "bem" refere-se ao que é aprovado pela tua cultura. Como essa cultura aprova o racismo e a opressão, deves aceitar esta atitude como um bem. Não podes pensar diferentemente. A perspectiva minoritária está sempre errada — o "bem" é, por definição, aquilo que socialmente é aprovado.
A perspectiva do RC é intolerante para com as minorias (que automaticamente estão erradas) e forçaria Rita a aceitar o racismo e a opressão como sendo bons. Isto decorre da definição de "bem" como algo "socialmente aprovado". Ao compreendê-lo, talvez abandone o RC.
O racismo é um bom teste para a ética. Uma perspectiva ética satisfatória deve fornecer-nos os meios para combater actos racistas. O RC falha neste aspecto, dado estar comprometido com a tese segundo a qual as acções racialmente motivadas são boas numa dada sociedade se essa sociedade as aprova. Se Rita seguisse o RC, teria que concordar com a atitude racista da maioria, ainda que as pessoas estivessem mal informadas ou fossem ignorantes. O relativismo cultural parece bastante insatisfatório neste ponto.
A educação moral é também um bom teste ético. Se aceitassemos o RC, como educaríamos os nossos filhos em questões de ordem moral? Ensinar-lhes-íamos que pensassem e agissem de acordo com as normas da sua sociedade, qualquer que esta fosse. Estaríamos a ensiná-los a serem conformistas. Ensinar-lhes-íamos, por exemplo, que os seguintes raciocínios são correctos:
"A minha sociedade aprova A; logo, A é bom."
"O meu grupo aprova que nos embebedemos às sextas-feiras à noite e conduzamos no regresso a casa; logo, esta é uma boa atitude."
"A minha sociedade é Nazi e aprova o racismo; logo, o racismo é um bem."
Aceitar o RC priva-nos de exercer qualquer sentido crítico acerca das normas da nossa sociedade. Estas normas não podem estar erradas — ainda que resultem da estupidez e da ignorância.
Do mesmo modo, as normas de outras sociedades (mesmo as da terra natal de Rita) não podem estar erradas ou serem criticadas. O RC contraria o espírito crítico que é próprio da filosofia.

Retirado da Revista Crítica na Rede

domingo, 20 de dezembro de 2009

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL



Harry Gensler
John Carroll University, Cleveland, USA
Relativismo Cultural (RC): "Bem" significa "socialmente aprovado." Escolhe os teus princípios morais segundo aquilo que a tua sociedade aprova.
O relativismo cultural (RC) defende que o bem e o mal são relativos a cada cultura. O "bem" coincide com o que é "socialmente aprovado" numa dada cultura. Os princípios morais descrevem convenções sociais e devem ser baseados nas normas da nossa sociedade.
Começaremos por ouvir uma figura ficcional, a que chamarei Ana Relativista, e que nos explicará a sua crença no relativismo cultural. Ao ler o que se segue, ou explicações semelhantes, proponho-lhe que reflicta até que ponto esta é uma perspectiva plausível e se se harmoniza com o seu ponto de vista. Depois de ouvirmos o que Ana tem para dizer, consideraremos várias objecções ao RC.
1. Ana Relativista
O meu nome é Ana Relativista. Aderi ao relativismo cultural ao compreender a profunda base cultural que suporta a moralidade.
Fui educada para acreditar que a moral se refere a factos objectivos. Tal como a neve é branca, também o infanticídio é um mal. Mas as atitudes variam em função do espaço e do tempo. As normas que aprendi são as normas da minha própria sociedade; outras sociedades possuem diferentes normas. A moral é uma construção social. Tal como as sociedades criam diversos estilos culinários e de vestuário, também criam códigos morais distintos. Aprendi-o ao estudar antropologia e vivi-o no México quando estive lá a estudar.
Considere a minha crença de que o infanticídio é um mal. Ensinaram-me isto como se se tratasse de um padrão objectivo. Mas não é; é apenas aquilo que defende a sociedade a que pertenço. Quando afirmo "O infanticídio é um mal" quero dizer que a minha sociedade desaprova essa prática e nada mais. Para os antigos romanos, por exemplo, o infanticídio era um bem. Não tem sentido perguntar qual das perspectivas é "correcta". Cada um dos pontos de vista é relativo à sua cultura, e o nosso é relativo à nossa. Não existem verdades objectivas acerca do bem ou do mal. Quando dizemos o contrário, limitamo-nos a impor a nossas atitudes culturalmente adquiridas como se se tratassem de "verdades objectivas".
"Mal" é um termo relativo. Deixem-me explicar o que isto significa. Quero dizer que nada está absolutamente "à esquerda", mas apenas "à esquerda deste ou daquele" objecto. Do mesmo modo, nada é um mal em absoluto, mas apenas um mal nesta ou naquela sociedade particular. O infanticídio pode ser um mal numa sociedade e um bem noutra.
Podemos expressar esta perspectiva claramente através de uma definição: "X é um bem" significa "a maioria (na sociedade em questão) aprova X". Outros conceitos morais como "mal" ou "correcto", podem ser definidos da mesma forma. Note-se ainda a referência a uma sociedade específica. A menos que o contrário seja especificado, a sociedade em questão é aquela a que pertence a pessoa que formula o juízo. Quando afirmo "Hitler agiu erradamente" quero de facto dizer "de acordo com os padrões da minha sociedade".
O mito da objectividade afirma que as coisas podem ser um bem ou um mal de uma forma absoluta — e não relativamente a esta ou àquela cultura. Mas como poderemos saber o que é o bem ou o mal em termos absolutos? Como poderíamos argumentar a favor desta ideia sem pressupor os padrões da nossa própria sociedade? As pessoas que falam do bem e do mal de forma absoluta limitam-se a absolutizar as normas que vigoram na sua própria sociedade. Consideram as normas que lhes foram ensinadas como factos objectivos. Essas pessoas necessitam de estudar antropologia, ou viver algum tempo numa cultura diferente.
Quando adoptei o relativismo cultural tornei-me mais receptiva a aceitar outras culturas. Como muitos outros estudantes, eu partilhava a típica atitude "nós estamos certos e eles errados". Lutei arduamente contra isto. Apercebi-me de que o outro lado não está "errado" mas que é apenas "diferente". Temos, por isso, que considerar os outros a partir do seu próprio ponto de vista; ao criticá-los, limitamo-nos a impor-lhes padrões que a nossa própria sociedade construiu. Nós, os relativistas culturais, somos mais tolerantes.
Através do relativismo cultural tornei-me também mais receptiva às normas da minha própria sociedade. O RC dá-nos uma base para uma moral comum no interior da cada cultura — uma base democrática que abrange as ideias de todos e assegura que as normas tenham um amplo suporte. Assim, posso sentir-me solidária com pessoas que partilham comigo uma mesma comunidade, ainda que outros grupos possuam diferentes valores.
Antes de avançar para a secção 1.2, reflicta sobre as suas reacções iniciais ao relativismo cultural. O que lhe agrada ou desagrada neste ponto de vista? Que objecções tem a colocar?
Retirado da Revista Crítica na Rede

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

HAVERÁ PROVAS EM ÉTICA?


Se o subjectivismo ético não é verdadeiro, porque razão se sentem algumas pessoas atraídas por ele? Uma das razões tem que ver com o facto de a ciência fornecer o nosso paradigma de objectividade, e quando comparamos a ética à ciência, à ética parecem faltar as características que tornam a ciência tão irresistível. Por exemplo, a inexistência de provas em ética parece uma grande deficiência. Podemos provar que o mundo é redondo, que não existe o maior número primo e que os dinossauros viveram antes dos seres humanos. Mas poderemos provar que o aborto é certo ou errado?
A ideia geral de que os juízos morais não se podem provar é apelativa. Qualquer pessoa que já tenha debatido um tema como o aborto sabe como pode ser frustrante tentar «provar» que o seu ponto de vista é correcto. No entanto, se examinarmos esta ideia mais de perto, revela-se dúbia.
Suponha-se que examinamos um assunto muito mais simples que o aborto. Um aluno considera injusto um determinado teste aplicado por um professor. Trata-se, claramente de um juízo moral - a justiça é um valor moral essencial. Este juízo pode ser provado? O estudante poderia referir que o teste abrangia em pormenor assuntos sem importância, ignorando outros que o professor tinha tinha considerado importantes. O teste incluía ainda perguntas sobre alguns assuntos que não tinham sido tratados nem nas aulas teóricas nem nas práticas. Além disso, o teste era tão longo que nem os melhores alunos podiam terminá-lo no tempo permitido (e foi cotado partindo do princípio de que deveria ser feito até ao fim).
Suponha-se que tudo isto é verdade. E suponha-se ainda que o professor, quando lhe são pedidas explicações, não tem argumentos para se defender. Na verdade, o professor, que é muito inexperiente, parece confuso com toda a situação e não parece ter uma ideia clara do que estava a fazer. Assim sendo, não terá o aluno provado que o teste foi injusto? o que mais poderíamos desejar a título de prova?

Elementos da Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta, pp 68-9)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

EXISTIRÃO FACTOS MORAIS?


Um juízo moral – ou qualquer outro tipo de juízo de valor – tem de ser apoiado em boas razões. Se alguém disser que uma determinada acção seria errada, pode-se perguntar porque razão seria errada e, se não houver uma resposta satisfatória, pode-se rejeitar esse conselho por ser infundado. Neste aspecto, os juízos morais são diferentes de meras expressões de preferência pessoal. Se alguém diz «eu gosto de café», não necessita ter uma razão para isso; poderá estar a declarar o seu gosto pessoal e nada mais. Mas os juízos morais requerem o apoio de razões, sendo, na ausência dessas razões, meramente arbitrários.
Qualquer teoria adequada da natureza da avaliação moral deveria, portanto, ser capaz de dar conta das relações entre juízos morais e as razões que os sustentam. Foi justamente neste aspecto que o emotivismo fracassou.
Quais eram os pressupostos do emotivismo quanto a razões? Recorde-se que para o emotivismo um juízo moral é como uma ordem – é basicamente um meio verbal de tentar influenciar as atitudes e conduta de uma pessoa.
A concepção das razões que naturalmente acompanha esta ideia de base é que as razões são quaisquer considerações que tenham o efeito desejado, que influenciem as atitudes e comportamentos de forma desejada. Mas repare-se no que isto significa. Suponha-se que estou a tentar convencer alguém de que Goldbloom é um homem mau (estou a tentar influenciar a atitude dessa pessoa face a ele) e essa pessoa resiste. Sabendo que essa pessoa é um fanático, digo «O Goldbloom, como sabe, é judeu». Isso muda tudo; a atitude da pessoa muda, e concorda que Goldbloom é um patife. Poderia então parecer que, para o emotivismo, o facto de Goldbloom ser judeu é, pelo menos nalguns contextos, uma razão a favor do juízo de que é um homem mau.
De facto, Stevenson defende justamente esta perspectiva. Na sua obra clássica Ethic and Language (1944), afirma: «Qualquer afirmação sobre qualquer facto que qualquer interlocutor considere susceptível de alterar atitudes pode ser aduzida com uma razão a favor ou contra um juízo ético.»
Era óbvio que algo tinha corrido mal. Não pode ser verdade que qualquer facto possa contar como razão a favor de qualquer juízo. Primeiro de tudo, o facto tem de ser relevante para o juízo, e a influência psicológica não traz necessariamente consigo relevância. (O facto de alguém ser judeu não é relevante no momento de avaliar a sua maldade, independentemente das associações psicológicas no espírito de quem quer que seja.) Há uma lição pequena e outra grande a retirar daqui. A pequena é que uma determinada teoria, o emotivismo, parece estar errada e, com ela, toda a concepção do subjectivismo ético fica em causa. A grande está relacionada com a importância da razão na ética.
Hume sublinhava que se examinarmos as acções malévolas – «homicídio voluntário, por exemplo» - não encontramos «matéria de facto» que corresponda à maldade. Excluindo as nossas atitudes, o universo não contém tais factos. Esta tomada de consciência tem frequentemente sido entendida como motivo de desespero, porque as pessoas presumem que isto deve significar que os valores não têm estatuto «objectivo» Mas porque razão deveria a observação de Hume surpreender-nos? Os valores não são o tipo de coisas que possam existir como existem es estrelas e os planetas. (Concebido desta maneira, qual seria o aspecto de um «valor»?) Um erro fundamental no qual incorrem muitas pessoas quando pensam sobre este assunto é partir do princípio de que há apenas duas possibilidades:
1. Há factos morais da mesma maneira que há factos sobre estrelas e planetas; ou
2. Os nossos valores não são mais que a expressão dos nossos sentimentos subjectivos.
Isto é um erro porque descura uma terceira possibilidade crucial. As pessoas não têm apenas sentimentos, têm também razão, e isso faz uma grande diferença. Pode pois ser que
3. As verdades morais são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se for sustentado por razões melhores que os juízos alternativos.
Assim, se quisermos entender a natureza ética, devemos atentar nas razões. Uma verdade em ética é uma conclusão apoiada por razões: a resposta correcta a uma questão moral é simplesmente a resposta que tem do seu lado o peso da razão. Tais verdades são objectivas no sentido em que são verdadeiras independentemente do que possamos querer ou pensar. Não podemos tornar algo bom ou mau pelo simples desejo de que seja assim, porque não podemos simplesmente querer que o peso da razão esteja a favor ou contra algo. Isto explica igualmente a nossa falibilidade Podemos enganar-nos sobre o que é bom ou mau porque podemos estar enganados sobre o que a razão recomenda. A razão diz o que diz, alheia às nossas opiniões e desejos.
Elementos da Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva-(Colecção Filosofia Aberta, pp.65-7)

domingo, 13 de dezembro de 2009

O SUBJECTIVISMO EM ÉTICA iv



1. O primeiro argumento era que se o subjectivismo simples está correcto, então somos todos infalíveis no que respeita aos juízos morais; mas não somos, por certo, infalíveis; portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
Este argumento só é eficaz porque o subjectivismo simples interpreta os juízos morais como afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. «Infalível» significa que os juízos de alguém são sempre verdadeiros; e o subjectivismo simples atribui aos juízos morais um significado que será sempre verdadeiro desde que o interlocutor seja sincero. É por isso que, nessa teoria, as pessoas acabam por ser infalíveis. O emotivismo, por outro lado, não interpreta os juízos morais como afirmações verdadeiras ou falsas; e por isso o mesmo argumento não funciona contra ele. Uma vez que as ordens e as expressões de atitudes não são verdadeiras nem falsas as pessoas não podem ser «infalíveis» em relação a elas;
2. O segundo argumento tinha que ver com o desacordo moral. Se o subjectivismo simples estiver correcto, então quando uma pessoa afirma «X é moralmente aceitável« e outra pessoa afirma «X é moralmente inaceitável» não estão realmente a discordar. Estão, na verdade, a falar de coisas inteiramente diferentes - cada uma está a fazer uma afirmação sobre a sua atitude, com a qual a outra poderá prontamente concordar. Mas, prossegue o argumento, as pessoas que dizem estas coisas estão realmente em desacordo, e por isso, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
O emotivismo sublinha que há mais de uma maneira pela qual as pessoas podem discordar. Compare-se estes dois tipos de desacordo:
" Primeiro: Uma pessoa pensa que Lee Harvey Oswald agiu sozinho no assassinato de John Kennedy, e outra pensa que houve conspiração. Isto é um desacordo sobre os factos - uma pessoa pensa ser verdadeiro algo que outra pensa ser falso.
Segundo: Uma pessoa defende legislação para o controlo de armas de fogo e outra opõe-se a isso. Neste caso não são as crenças das pessoas que estão em conflito mas sim os seus desejos - uma quer que aconteça algo que a outra não quer. (Ambas podem estar de acordo sobre todos os factos que rodeiam a controvérsia sobre o controlo de armas de fogo e mesmo assim tomar posições diferentes quanto ao que querem ver realizado.)
No primeiro tipo de desacordo, acreditamos em coisas diferentes, não podendo ambas ser verdadeiras. No segundo, queremos coisas diferentes, não podendo ambas realizar-se. Stevenson chama desacordo de atitude ao último tipo de desacordo, e distingue-o do desacordo sobre atitudes. Duas pessoas podem concordar em todos os juízos que fazem sobre atitudes: concordam que uma se opõe ao controlo de armas, e que a outra é a favor. Mas mesmo assim não estão de acordo nas suas atitudes. Os desacordos morais, afirma Stevenson, têm esta foram: são desacordos de atitude. O subjectivismo simples não podia explicar o desacordo moral porque este desaparecia, uma vez que interpretava os juízos morais como afirmações sobre atitudes.
O subjectivismo simples era uma tentativa de captar a ideia de base do subjectivismo ético e exprimi-la de uma forma aceitável. Meteu-se em sarilhos porque presumiu que os juízos morais são declarações sobre atitudes. O emotivismo era melhor porque se libertou da pressuposição problemática e a substituiu por uma perspectiva mais sofisticada do funcionamento da linguagem moral. Mas, como veremos de seguida, o emotivismo teve também as suas dificuldades. Um dos seus principais problemas era não poder dar conta do lugar da razão na ética.

Elementos da Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta, pp. 63-5)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O SUBJECTIVISMO EM ÉTICA iii


A segunda fase: o emotivismo
A versão melhorada é uma teoria que se tornou conhecida como «emotivismo». Desenvolvida principalmente pelo filósofo americano Charles L. Stevenson (1908-1979), o emotivismo tornou-se uma das teorias éticas mais influentes do século XX. É muito mais subtil e sofisticada do que o subjectivismo simples.
O emotivismo começa com a observação de que a linguagem é usada de várias maneiras. Um dos seus usos principais é a afirmação de factos, ou pelo menos a afirmação do que pensamos serem factos. Podemos, assim, dizer:
«Abraham Lincoln foi presidente dos Estados Unidos.»
«Tenho um encontro às quatro horas.»
«A gasolina custa 0,970 cêntimos por litro.»
«Shakespeare é o autor de Hamelt.»

Em cada caso estamos a dizer algo que é verdadeiro ou falso, e o propósito da elocução é, normalmente, comunicar informação ao ouvinte.
No entanto, há outros propósitos para os quais a linguagem pode ser usada. Suponha-se que digo: «Fecha a porta!» esta elocução não é verdadeira nem falsa. Não é uma afirmação de tipo algum; é uma ordem, o que é algo diferente. O seu propósito não é transmitir informação; o seu propósito é, antes, levar alguém a fazer qualquer coisa. Não estou a tentar alterar as crenças de alguém; estou a tentar influenciar a conduta.
Considere-se elocuções como as seguintes, que não são afirmações de facto nem ordens:

«Um viva por Abraham Lincoln!»
«Ai de mim!»
«Quem me dera que a gasolina não fosse tão cara!»
«Que se dane o Hamlet.»
Estes são tipos comuns de frases que entendemos com bastante facilidade. Mas nenhuma delas é «verdadeira» ou «falsa». (Não faz sentido dizer: «É verdade que um viva por Abraham Lincoln» ou «É falso que ai de mim»). estas frases não são, recorde-se, usadas para afirmar factos. São usadas, isso sim, para exprimir as atitudes do interlocutor.
É preciso notar claramente a diferença entre relatar uma atitude e exprimir essa mesma atitude. Se alguém disser «Gosto de Abraham Lincoln», está a comunicar o facto de ter uma atitude positiva em relação a Lincoln. Isto é uma afirmação de facto, que é verdadeira ou falsa. Por outro lado, se alguém gritar: «Um viva por Lincoln!», não está a declarar qualquer tipo de facto, nem mesmo um facto sobre as suas atitudes. Está a exprimir uma atitude, mas não a relatar que a tem.
Com estes reparos em vista, voltemos agora a atenção para a linguagem moral. Segundo o emotivismo, a linguagem moral não é uma linguagem de afirmação de factos; não é normalmente usada para transmitir informação. O seu propósito é diferente. É usada, primeiro, como um meio de influenciar o comportamento das pessoas. Se alguém diz «Não deves fazer isso», essa pessoa está a tentar impedir outra de o fazer. A elocução é, pois, mais parecida a uma ordem do que a uma afirmação de facto; é como se a pessoa tivesse dito: «Não faças isso!» em segundo lugar, a linguagem moral é usada para exprimir (e não para relatar) a atitude de alguém. Afirmar: «Lincoln era um homem bom», não é o mesmo que afirmar «Eu gosto de Lincoln», mas é como dizer »Um viva por Lincoln!»
A diferença entre o emotivismo e o subjectivismo simples deve agora ser óbvia. O subjectivismo simples interpretava as afirmações éticas como afirmações de facto de um tipo especial - nomeadamente como relatos da atitude do interlocutor. Sgundo o subjectivismo simples, quando Falwell afirma «A homossexualidade é imoral», isto significa o mesmo que »Eu (Falwell) desaprovo a homossexualidade» - uma afirmação de facto sobre a atitude de Falwell. O emotivismo, por seu lado, nega que esta elocução declare qualquer facto, mesmo um facto sobre o próprio interlocutor. Em vez disso, o emotivismo interepreta a elocução de Falwell como equivalente a algo como «A homossexualidade - que horror!» ou «Não se envolva em actos homossexuais!», ou ainda «Quem me dera não existisse homossexualidade».
Isto pode parecer uma distinção picuinhas e trivial com a qual não vale a pena preocuparmo-nos. Mas do ponto de vista teórico trata-se, na realidade, de uma diferença importante. Uma forma de verificar isso é considerar novamente os argumentos contra o subjectivismo simples. Embora esses argumentos fossem muito embaraçosos para o subjectivismo simples não afectam em nada o emotivismo.

Elementos da Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta -pp. 61-3)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O SUBJECTIVISMO EM ÉTICA ii


O Subjectivismo simples não dá conta da nossa falibilidade. Ninguém é infalível. Estamos por vezes errados nas nossas avaliações e quando o descobrimos podemos querer corrigir os nossos juízos. Mas, se o subjectivismo simples estivesse correcto, isso seria impossível, porque o subjectivismo simples pressupõe que somos infalíveis.
Considere-se Falwell, que considera a homossexualidade imoral. Segundo o subjectivismo simples, Falwell está simplesmente a afirmar que desaprova a homossexualidade. É claro que há a possibilidade de não estar a falar sinceramente – é possível que ele não desaprove realmente a homossexualidade, mas esteja simplesmente a responder às expectativas da sua audiência conservadora. No entanto, se supusermos que está a falar sinceramente – se supusermos que Falwell desaprova mesmo a homossexualidade –, segue-se então que o que ele diz é verdade. Enquanto estiver honestamente a representar os seus sentimentos não pode estar enganado.
Mas isto contradiz o facto elementar de nenhum de nós ser infalível. Por vezes estamos errados Portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
O subjectivismo simples não dá conta do desacordo. O segundo argumento contra o subjectivismo simples baseia-se na ideia de que esta teoria não pode explicar a existência de desacordo moral. Matt Foreman não pensa que a homossexualidade seja imoral. Perante isto, parece que ele e Falwell discordam. Mas repare-se o que o subjectivismo simples sugere quanto a esta situação.
Segundo o subjectivismo simples, quando Foreman afirma que a homossexualidade não é imoral está simplesmente a declarar a sua atitude – está a dizer que ele, Foreman, não desaprova a homossexualidade. Falwall discordaria disso? Não, Falwall estaria de acordo que Foreman não desaprova a homossexualidade. Simultaneamente, quando Falwall afirma que a homossexualidade é imoral, está apenas a dizer, que ele Falwall, a desaprova. Como poderia alguém discordar disso? Assim, segundo o subjectivismo simples, não há desacordo entre eles; cada um deveria admitir a verdade do que o outro está a dizer. No entanto, parece evidente que algo não está certo aqui, pois Falwell e Forema discordam realmente sobre a questão de saber se a homossexualidade é imoral ou não.
Há uma espécie de frustração eterna implícita no subjectivismo simples: Falwell e Foreman estão em profundo desacordo; no entanto, não podem sequer apresentar as suas posições de forma a debater o tema em conjunto. Foreman pode tentar negar o que Falwell afirma, mas, segundo o subjectivismo simples, apenas consegue mudar de assunto.
O argumento pode ser resumido assim: Quando uma pessoa afirma «X é moralmente aceitável» e alguém diz «X é moralmente inaceitável», estão em desacordo. No entanto, se o subjectivismo simples estivesse correcto não haveria desacordo entre eles. Logo, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
Estes argumentos, e outros semelhantes, mostram que o subjectivismo simples é uma teoria falhada. Não pode ser sustentada, pelo menos de uma forma tão rígida. Perante tais argumentos, alguns pensadores preferiram rejeitar o subjectivismo ético no seu todo. Outros, no entanto, esforçaram-se por produzir uma versão melhorada da teoria que não fosse vulnerável a tais objecções.
Elementos de Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva, (Colecção Filosofia Aberta - pp 59- 60)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O SUBJECTIVISMO EM ÉTICA


O desenvolvimento de uma teoria filosófica percorre frequentemente vários estádios. De início a ideia será apresentada de uma forma crua e simples, e muitas pessoas achá-la-ão atraente por uma razão ou outra. Mas a ideia é então submetida a uma análise crítica e descobre-se que tem defeitos. Apresentam-se argumentos contra ela. Nessa altura, algumas pessoas podem ficar tão impressionadas com as objecções que abandonam totalmente a ideia, concluindo que não pode estar correcta. Outras, no entanto, podem continuar a confiar na ideia de base e tentarão, por isso, aprimorá-la, dando-lhe uma formulação melhorada que não seja vulnerável às objecções. Durante algum tempo poderá parecer que se salvou a teoria. Mas podem então encontrar-se novos argumentos que lançam dúvidas sobre a nova versão da teoria. Uma vez mais, as novas objecções podem levar algumas pessoas a abandonar a ideia, enquanto outras mantêm a fé e tentam salvar a teoria formulando ainda outra versão nova e «melhorada». O processo de revisão e crítica começará então de novo.
A teoria do subjectivismo ético desenvolveu-se justamente desta maneira. Começou com uma ideia simples - nas palavras de David Hume, a ideia de que a moralidade é uma questão de sentimento e não de facto. Mas à medida que se apresentavam objecções à teoria, e que os seus defensores tentavam responder-lhes, a teoria evoluiu para algo muito mais sofisticado.
A primeira fase: o subjectivismo simples
A versão mais simples da teoria, que expõe a ideia principal mas não tenta aprimorá-la por aí além, é esta: quando uma pessoa afirma que algo é moralmente bom ou mau isso significa que ele ou ela aprovam, ou desaprovam, essa coisa, e nada mais do que isso. Por outras palavras:
X é moralmente aceitável
X está correcto
X é bom
Deve-se fazer X
E pela mesma ordem de ideias:
X é moralmente inaceitável
X está errado
X é mau
Não se deve fazer X
Podemos chamar subjectivismo simples a esta versão da teoria. Exprime a ideia básica do subjectivismo ético numa forma elementar e simples, e muitas pessoas acharam-na atraente. No entanto, o subjectivismo simples está aberto a várias objecções, porque tem implicações contrárias ao que sabemos (ou pelo menos contrárias ao que pensamos saber) sobre a natureza da avaliação moral.
Elementos da Filosofia Moral, James Rachels, Gradiva, (Colecção Filosofia Aberta - pp. 55-9)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A SUBJECTIVIDADE DOS VALORES ii


A teoria que estou a defender é uma forma daquela que é conhecida por doutrina da «subjectividade» dos valores. Esta doutrina consiste em sustentar que, se dois homens discordam quanto a valores, há uma diferença de gosto, mas não um desacordo quanto a qualquer género de verdade. Quando um homem diz «As ostras são boas» e outro diz « Eu acho que são más», reconhecemos que nada há para discutir. A teoria em questão sustenta que todas as divergências de valores são deste género, embora pensemos naturalmente que não o são quando estamos a lidar com questões que nos parecem mais importantes que a das ostras. A razão principal para adoptar esta perspectiva é a completa impossibilidade de encontrar quaisquer argumentos que provem que isto ou aquilo tem valor intrínseco. Se estivéssemos de acordo a este respeito, poderíamos defender que conhecemos os valores por intuição. Não podemos provar a um daltónico que a relva é verde e não vermelha, mas há várias maneiras de lhe provar que ele não tem um poder de discriminação que a maior parte dos homens tem. No entanto, no caso dos valores não há qualquer maneira de fazer isso, e aí os desacordos são muito mais frequentes que no caso das cores. Como não se pode sequer imaginar uma maneira de resolver uma divergência a respeito de valores, temos de chegar à conclusão de que a divergência é apenas de gostos e não se dá ao nível de qualquer verdade objectiva.
Bertrand Russell, «Ciência e Ética», 1935, trad. de Paula Mateus § 10-20

domingo, 6 de dezembro de 2009

A SUBJECTIVIDADE DOS VALORES



As questões sobre «valores» - isto é, sobre o que é bom ou mau em si, independentemente dos seus efeitos - estão fora do domínio da ciência, como os defensores da religião afirmam veemente. Eu penso que nisto têm razão, mas retiro outra conclusão que eles não retiram - a de que as questões sobre «valores« estão completamente fora do domínio do conhecimento. Por outras palavras, quando afirmamos que isto ou aquilo tem «valor», estamos a exprimir as nossas emoções, e não a indicar algo que seria verdadeiro mesmo que os nossos sentimentos pessoais fossem diferentes. (...)
Qualquer tentativa de persuadir as pessoas de que algo é bom (ou mau) em si, e não apenas por causa dos seus efeitos, depende não de qualquer recurso a provas, mas da arte de suscitar sentimentos. O talento do pregador consiste sempre em criar nos outros emoções semelhantes às suas - ou diferentes, se ele for hipócrita. Ao dizer isto não estou a criticar o pregador, mas a analisar o carácter essencial da sua actividade.
Quando um homem diz «Isto é bom em si» parece estar a exprimir uma proposição, como se tivesse dito«Isto é um quadrado» ou «Isto é doce». Julgo que isto é um erro. Penso que aquilo que o homem quer realmente dizer é «Quero que toda a gente deseje isto», ou melhor, «Quem me dera que toda a gente desejasse isto» Se aquilo que ele diz for interpretado como uma proposição, esta é apenas sobre o seu desejo pessoal. Se for antes interpretado num sentido geral, nada afirma, exprimindo apenas um desejo. O desejo, enquanto acontecimento, é pessoal, mas o que se deseja é universal. Penso que foi este curioso entrelaçamento entre o particular e o universal que provocou tanta confusão na ética. (...)
Se esta análise está correcta, a ética não contém quaisquer proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas, consistindo em desejos gerais de uma certa espécie, nomeadamente naqueles que dizem respeito aos desejos da humanidade em geral - e dos deuses, dos anjos e dos demónios, se eles existirem. A ciência pode discutir as causas dos desejos e os meios para os realizar, mas não contém quaisquer frases genuinamente éticas, pois esta diz respeito ao que é verdadeiro ou falso.
Bertrand Russell, «Ciência e Ética», 1935, trad. de Paula Mateus, § 10-20

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ÉTICA E LIVRE - ARBÍTRIO v


A lógica do louvor é semelhante à lógica da censura. Uma pessoa é louvável por ter realizado um certo acto somente se a) realizou de facto esse acto, b) foi bom que o tenha realizado e c) não estão presentes condições análogas às desculpas. É curioso que não haja um nome para essas condições análogas. Temos uma palavra «desculpas», para as condições que tornam imprópria a censura, mas não temos uma palavra para as condições que tornam impróprio o louvor. No entanto, é evidente que há condições similares que funcionam de formas similares. Se fizermos algo esplêndido apenas por acidente ou por ignorância, não merecemos louvor, o que aconteceria se tivéssemos realizado deliberadamente o acto. Talvez não haja uma palavra geral para essas condições porque as pessoas não costumam tentar evitar ser louvadas. Podemos designá-las por «condições eliminatórias de crédito»
Deste modo, a concepção de senso comum de responsabilidade diz-nos que as pessoas são responsáveis pelo que fizeram se não estão presentes condições de desculpa ou condições eliminatórias de crédito. Nessas circunstâncias, merecem o louvor se se comportam bem, mas merecem a censura se se comportam mal. E esta concepção de responsabilidade, devemos sublinhar, é inteiramnete compatível com a possibilidade de o comportamento estar causalmente determinado.
Podemos resumir tudo isto de duas formas alternativas, o que depende de considerarmos o compatibilismo uma teoria viável. Os compatibilistas diriam que, se essas condições são satisfeitas, então agimos livremente. Porém, os deterministas podem dizer que não somos livres, mas que não deixamos de ser responsáveis, dado que a responsabilidade não requer o livre-arbítrio. Correu muita tinta neste debate, mas tudo parece, suspeitosamente, não passar de uma disputa verbal. A ideia essencial é que o facto de o comportamento das pessoas estar causalmente determinado não implica que elas não sejam responsáveis pelo que fazem.

Conclusão. O problema do livre-arbítrio é uma das questões filosóficas mais difíceis, e quem arrisque dar uma opinião a seu respeito deve estar devidamente consciente da possibilidade de estar enganado. Ainda assim, vale a pena considerar esta possibilidade: perderemos pouco se deixarmos de nos conceber como seres com livre-arbítrio. Podemos continuar a ver-nos como seres inteligentes que agem segundo objectivos, que são capazes de agir bem ou mal, e podemos continuar a avaliar as pessoas como boas ou más em função das suas escolhas. Podemos continuar a reagir positiva ou negativamente aos outros em função daquilo que fazem e do tipo de pessoa que são. Ao mesmo tempo, no entanto, faremos tudo isto compreendendo também que, em última análise, as pessoas não controlam o seu carácter ou os seus desejos. No que respeita ao «livre-arbítrio», isto pode ser tudo o que há para saber.

Problemas da Filosofia,James Rachels, Gradiva -(Colecção Filosofia Aberta, pp. 202-3)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ÉTICA E LIVRE - ARBÍTRIO iv


Responsabilidade. Mas poder-se-á objectar, se as pessoas não têm livre - arbítrio, então não são responsáveis pelo que fazem. Nesse caso, como poderemos afirmar que Eric Rudolph, ou seja quem for, é realmente um homem mau?
É natural supor que, se não temos livre - arbítrio, então não somos responsáveis. Alguns filósofos pensam que esta é uma conclusão perturbante que devemos resistir, mas outros consideram-na uma ideia esclarecedora que devemos saudar. Bertrand Russell aceitou esta última perspectiva. Escreveu o seguinte:
Nenhum homem trata um automóvel tolamente como trata outro ser humano. Quando o carro não arranca, ele não atribui o seu comportamento irritante ao pecado. Ele não diz: « És um automóvel perverso e não vou dar-te mais gasolina enquanto não arrancares.» Ele tenta descobrir o que há de errado e consertá-lo.”
Similarmente, pensa Russell, quando uma pessoa se comporta mal, devemos tentar descobrir por que razão isso acontece e lidar com o problema. Há seguramente alguma verdade nesta ideia, o que se nota especialmente quando pensamos na lei criminal e nas causas sociais do crime.
Surpreendentemente, no entanto, a noção de senso comum de responsabilidade revela-se perfeitamente compatível com o Determinismo. Ser responsável, no sentido comum, significa poder prestar contas pelo que se fez – podemos ser censurados quando nos comportámos mal e louvados quando nos comportámos bem. Assim, se somos seres responsáveis, têm de existir algumas condições sob as quais sejamos censuráveis por ter feito algo. Que condições serão essas?
Do ponto de vista do senso comum, parece que há três condições: 1) temos de ter realizado o acto em questão, 2) o acto tem de ser errado em algum sentido e 3) temos de não ter culpa para o ter realizado.
A noção de desculpa é crucial. As desculpas são factos que nos tiram o peso de cima quando fazemos algo de mal. Podemos dizer que foi um acidente, que não sabíamos o que estávamos a fazer ou que nos forçaram a agir dessa forma. Não é possível apresentar uma lista completa de desculpas legítimas, mas algumas das comuns são as seguintes:
- Engano. Por exemplo, quando saímos de casa de uma certa pessoa, levámos o seu chapéu-de-chuva por engano – pensámos que era o nosso. Se tivéssemos levado o chapéu-de-chuva intencionalmente, isso teria sido censurável.
- Acidente. Enquanto estávamos a conduzir de forma segura, tomando todas as precauções razoáveis, uma criança pôs-se subitamente à frente do automóvel – não podíamos ter evitado atropelá-la. Se tivéssemos tentado atropelá-la, ou mesmo se pudéssemos razoavelmente tê-lo evitado, poderíamos ser censurados.
- Coerção. Fomos forçados a abrir o cofre para assaltantes do banco porque eles nos apontaram uma arma à cabeça. Se o tivéssemos aberto voluntariamente, poderíamos ser censurados.
- Ignorância. Demos veneno à nossa mulher com a bebida para tomar ao deitar, mas não sabíamos que era veneno porque as pílulas estavam no frasco dos medicamentos e julgávamos que eram aspirina. Se soubéssemos que eram veneno, seríamos assassinos.
- Insanidade. Sofremos do síndrome de Capgras, uma doença mental rara que faz as pessoas acreditarem que alguém que conhecem – geralmente um amigo ou um familiar – foi substituído por um impostor. Assim, não temos culpa do nosso comportamento objectável. Há muitas outras doenças do género e geralmente acredita-se que resultam de danos em partes específicas do cérebro.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta -pp- 200 -o2)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ÉTICA E LIVRE - ARBÍTRIO iii


Avaliar as pessoas como boas ou más.Poderemos continuar a considerar as pessoas boas ou más se elas não tiverem livre-arbítrio? Pode parecer surpreendente que diga isto, mas não vejo razão para pensar que não. Mesmo que não tenham livre-arbítrio, as pessoas não deixarão de ter virtudes e vícios. Continuarão a ser corajosas ou cobardes, benevolentes ou cruéis, generosas ou gananciosas. Um assassino não deixará de ser um assassino - e continuará a ser mau ser um assasssino. Obviamente, pode ser possível explicar as más acções de uma pessoa como resultado dos seus genes, da sua história ou da química do seu cérebro. Isto pode levar-nos a ver essa pessoa como alguém que teve azar nas circunstâncias que a fizeram tornar-se naquilo que é. Porém, isto não significa que ela não seja má. Precisamos de distinguir a) a questão de saber se alguém é má pessoa de b) a questão de saber como alguém se tornou má pessoa. Uma explicação causal do carácter de uma pessoa não implica que ela não seja má. Mostra apenas como ela se tornou má.
(...) Eric Rudolph foi acusado pelo FBI de ter realizado um atentado à bomba a uma clínica de aborto, no qual um polícia morreu e uma enfermeira ficou terrivelmente ferida. A história da vida de Rudolph fornece amplas provas de que ele não foi responsável por se ter tornado assim. Conhecendo o seu passado, podemos acabar por considerar que ele apenas teve o azar de ter tido uma vida infortunada. Como se costuma dizer, graças a Deus que não somos assim. Contudo, podemos continuar a pensar que Rudolph é um homem mau, já que, afinal ele é um assassino. Ele dispôs-se deliberadamente a maltratar pessoas inocentes. Agora, no entanto, compreendemos melhor o que o fez ficar assim.

Problemas da Filosofia, James Rachels -Gradiva, (Colecção Filosofia Aberta, pp. 199-200)

domingo, 29 de novembro de 2009

ÉTICA E LIVRE - ARBÍTRIO ii



Deliberar sobre o que é melhor. Para começar, podemos pôr de parte a ideia de que somos «simples robôs» se não temos livre-arbítrio. Não somos nada como robôs. Temos pensamentos, intenções e emoções. Sentimos felicidade e infelicidade. Amamos os nossos filhos e, se tivermos sorte, eles também nos amam. Dá-nos prazer ir ao cinema, jogar futebol e ouvir Mozart. Os robôs não são assim. A nossa capacidade de ter estas experiências e actividades não depende do livre-arbítrio. Mesmo que o nosso comportamento esteja completamente determinado, tudo isto continuará a ser verdade.
Também somos diferentes dos rôbos noutros aspectos: temos frequentemente razões para o que fazemos, e isto não deixará de ser assim se não tivermos livre-arbítrio. Desde que tenhamos crenças e desejos, e o nosso comportamento esteja conectado com eles, continuaremos a ser capazes de agir racionalmente. Continuaremos a perseguir os nossos objectivos como sempre. Obviamente, o sentido em que os nossos objectivos são «nossos» terá sofrido uma mudança subtil. Não poderemos já concebê-los como algo que escolhemos livremente. Vê-lo-emos antes como objectivos que resultam da nossa constituição, do que acontece no nosso cérebro e da influência do nosso ambiente. Mas o que interessará isso? Os nossos objectivos continuarão a ser os nossos objectivos e ainda nos importaremos com eles.
Sugere-se por vezes que a negação do livre-arbítrio condiziria a uma atitude fatalista em relação ao futuro: não faria sentido esforçarmo-nos por mudar as coisas. Ma é óbvio que isto não se
segue da negação do livre-arbítrio. O futuro depende do que fazemos e, se queremos um certo tipo de futuro, temos boas razões para fazer o que é necessário para lhe dar origem. Suponha-se que queremos que as crianças doentes da Nigéria tenham cuidados médicos de que precisam e que, por essa razão, contribuímos para esforços humanitários. Ajudamos a mudar o futuro. E isso faz seguramente sentido - sem a ajuda, as crianças ficariam pior. Uma vez mais, a presença ou ausência do livre-arbítrio não faz diferença.
Poderemos deliberar acerca do que fazer se não acreditarmos que temos livre-arbítrio? Alguns filósofos defenderam que, se acreditamos que não somos livres, não faz sentido «deliberar». Afinal, deliberar significa tentar decidir, o esforço de decidir parece pressupor que podemos fazer coisas diferentes. Este raciocínio parece plausível. Mas o que fazemos realmente quando deliberamos? Pensamos sobretudo naquilo que queremos e no modo como diversas acções conduziriam a resultados diferentes. Pensamos nas crianças da Nigéria, no que é estar doente e não dispor de ajuda, no modo como o nosso dinheiro poderia satisfazer as suas necessidades e assim por diante. Podemos pensar também noutras coisas que poderemos fazer com o dinheiro. Na ideia de que não tenho livre-arbítrio, nada há que me impeça de continuar a ponderar desta forma.
Logo, a negação do livre-arbítrio não implica o fim da ética. Podemos continuar a considerar que certas coisas são boas e que outras são más - mesmo que ninguém tenha livre - arbítrio, não deixa de ser melhor que as crianças da Nigéria não morram. Além disso, podemos continuar a avaliar as acções em função dos melhores ou piores resultados que produzem. Mesmo que não tenhamos livre-arbítrio, não deixará de ser bom contribuir para esforços humanitários.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta, pp 196-8)

sábado, 28 de novembro de 2009

ÉTICA E LIVRE - ARBÍTRIO


Muitos filósofos e teólogos vêem uma crise nas implicações deterministas da ciência moderna. A nossa liberdade, dizem, é essencial à nossas dignidade como seres morais. Separa-nos dos animais. Se começamos a conceber-nos como simples robôts, arrastados por forças impessoais, perdemos a nossa humanidade.
Porém, antes de cedermos a estes receios, temos de perguntar pelas verdadeiras implicações do determinismo. As questões mais preocupantes estão relacionadas com a ética. Se não temos livre-arbítrio, seremos ainda agentes morais responsáveis? A ética não perderá a sua razão de ser? Mas talvez a perda do livre-arbítrio não seja assim tão perturbante. Nesse caso, não teremos razões para a recear, nem necessidade de conceber defesas do livre-arbítrio.

Problemas da Filosofia, James Rachels - Gradiva, (Colecção Filosofia Aberta - pp 196 -7)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A RESPOSTA COMPATIBILISTA iii



O problema com o Compatibilismo. Na opinião da maior parte dos filósofos de hoje, o Compatibilismo tem as melhores hipóteses de salvar o livre-arbítrio e de proteger a noção de responsabilidade moral do ataque do determinismo. Contudo, o compatibilismo tem um problema grave. O compatibilismo afirma que somos livres se as acções decorrem do nosso carácter e dos nossos desejos não manipulados. O problema é que, em última análise, o nosso carácter e os nossos desejos são causados por forças que não controlamos. Este facto é suficiente para colocar em dúvida a nossa «liberdade». Peter van Inwagen exprime assim esta ideia:
Se o determinismo é verdadeiro, então as nossas acções são consequências das leis da natureza e de acontecimentos que ocorreram num passado remoto. Mas tanto as leis da natureza como aquilo que aconteceu antes de termos nascido não depende de nós. Logo, as consequências destas coisas (incluindo os actos que realizamos agora) não dependen de nós.
Os compatibilistas concordam que o carácter e os desejos que temos agora não dependem de nós. Esta concessão parece constituir uma derrota. Pelo menos, é suficiente para que as pessoas reflexivas se sintam desconfortáveis, mesmo que a análise compatibilista nos permita continuar a dizer que somos livres.
Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva, Colecção Filosofia Aberta - ( pp 195-6)

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A RESPOSTA COMPATIBILISTA ii



O Livre-arbítrio implica o Determinismo. Será que o Compatibilismo é uma teoria viável? O argumento básico a seu favor é o que se segue.
Toda a preocupação com o livre-arbítrio começa com a ideia de que se uma acção é causada, então não pode ser livre. Sem este pressuposto, o problema do livre-arbítrio não se coloca. A questão, então, é a de saber se este pressuposto é verdadeiro.
Se o pressuposto fosse verdadeiro, então, para que fosse livre, um acto teria de ser não causado. Mas pensemos no que isso significaria. Como seria um qualquer acontecimento ser não causado? Imagine-se que as bolas de bilhar deixavam de obedecer às leis causais. O movimento tornar-se-ia imprevisível, mas apenas porque elas seriam aleatórias e caóticas. Poderiam fazer ângulos estranhos, saltar ou parar subitamente. Quando fossem atingidas pela bola branca, poderiam ficar paradas, explodir ou transformar-se em gelo. Tudo poderia acontecer.
Do mesmo modo, se as acções de uma pessoa se desligassem subitamente da rede de causas e efeitos, tornar-se-iam aleatórias, caóticas e imprevisíveis. Um homem que estivesse num passeio poderia saltar para a estrada em vez de esperar pela luz verde. Ou poderia tirar a roupa, atacar a pessoa mais próxima, saltar repetidamente ou recitar a Magna Carta. As coisas seriam assim se o comportamento fosse não causado, mas não é isto que entendemos por «livre». Não pensamos que quem começasse a comportar-se dessa forma teria adquirido subitamente livre-arbítrio – pensamos que teria enlouquecido. As acções livres não são aleatórias e caóticas; são ordenadas e ponderadas.
Podemos dar mais um passo nesta linha de pensamento. O livre-arbítrio não é meramente compatível com o Determinismo: O livre-arbítrio exige o Determinismo. Num mundo aleatório e caótico, ninguém seria livre; mas num mundo que opera de forma ordenada, segundo leis causais, as acções livres e racionais são possíveis, pois nesse mundo aquilo que a pessoa fizer será controlado pelo seu carácter e pelos seus desejos.
No entanto, as acções das pessoas seriam previsíveis no mundo causalmente determinado. Isto não derruba a noção de que seriam livres?
Como é óbvio, as acções das pessoas são frequentemente previsíveis, apesar do que dissemos sobre as recusas maliciosas de agir em conformidade com as expectativas. Se conhecemos uma pessoa suficientemente bem, muitas vezes conseguimos dizer de antemão que tipo de escolhas irá ela fazer. Tenho uma amiga que vê muitos filmes e sei exactamente de que tipo de filmes ela gosta. Há anos que observo o seu hábito de ir ao cinema. Se a minha amiga está a escolher um filme para ver esta noite e eu sei que filmes estão em exibição, posso prever razoavelmente bem qual deles irá ela escolher.
Mas será que o facto de eu conseguir prever a sua escolha significa que ela não é livre? de forma alguma – ela consulta a lista de filmes n jornal, pensa sobre o que quer ver e decide em função disso. Ninguém lhe está a apontar uma arma à cabeça. Ninguém implantou um dispositivo de controlo remoto no seu cérebro. Assim, ela escolhe «de livre vontade». O facto de eu, conhecendo-a como conheço, conseguir prever as suas escolhas nada altera. Na verdade, algo estaria errado se eu não conseguisse prever que ela vai preferir Os Despojos do Dia a Mcquade, o Lobo Solitário.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta, pp 194-5)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A RESPOSTA COMPATIBILISTA





O Compatibilismo é a ideia de que um acto pode ser simultaneamente livre e determinado. Isto pode parecer uma contradição, mas, segundo esta teoria, isso não é verdade. Contrariamente ao que possamos pensar, é possível aceitar que o comportamento humano está causalmente determinado e pensar correctamente em nós próprios como agentes livres.
Entre os filósofos, o Compatibilismo é de longe a teoria do livre-arbítrio mais popular. De uma forma ou de outra foi a teoria de Hobbes, Hume, Kant e Mill, e é defendida hoje pela maior parte dos autores que escrevem sobre o assunto. Isto costuma surpreender as pessoas que não estão familiarizadas com a literatura filosófica, dado que o livre-arbítrio e o Determinismo parecem obviamente incompatíveis. De que modo são supostamente consistentes entre si? Como pode um acto ser livre e estar determinado ao mesmo tempo?
Segundo o Compatibilismo, algumas das acções são obviamente livres e algumas são obviamente não livres. O que interessa é encontrar a diferença entre elas.
Eis alguns exemplos de acções que não são livres:

Entregamos a carteira porque um assaltante nos aponta uma arma à cabeça.
Vamos ao piquenique da empresa porque o patrão nos disse que tínhamos de ir.
Apresentamo-nos para a incorporação no exército porque fomos convocados e mandar-nos-ão para a prisão se não nos apresentarmos.
Nestes casos, não estamos a agir livremente, porque fomos forçados a fazer aquilo que não queríamos fazer.

Estes, pelo contrário, são casos em que agimos livremente:

Contribuímos com dinheiro para uma organização de beneficência porque decidimos que essa organização merece o nosso apoio.
Incitamos a nossa empresa a patrocinar um piquenique porque pensamos que isso seria muito bom para os empregados. Ficamos satisfeitos com o assentimento do patrão e ajudamos voluntariamente a organizar o evento. No dia do piquenique, chegamos mais cedo por estarmos tão excitados.
Alistamo-nos no exército porque a perspectiva de ser soldado nos atrai. Pensamos que essa seria uma boa carreira.
Estas acções são livres porque a nossa escolha se baseia nos nossos próprios desejos, sem que ninguém nos diga o que temos de fazer. É isto que significa fazer algo, «de livre vontade». Mas repare-se que isto é perfeitamente compatível com as nossas acções estarem causalmente determinadas pelo nosso passado, pelos acontecimentos que ocorrem no nosso cérebro e assim por diante – é mesmo compatível com os nossos desejos serem causados por factores que não controlamos. Deste modo, o livre-arbítrio e o Determinismo são compatíveis.
Podemos resumir a ideia básica do Compatibilismo dizendo que «livre» não significa «não causado» - significa antes algo como «isento de coerção». Assim, o facto de o nosso comportamento ser ou não ser livre não depende de se é ou não causado, depende apenas do modo como é causado.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva – (Colecção Filosofia Aberta, pp 192-3)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A RESPOSTA LIBERTISTA v


Será que o libertismo é coerente? Por fim podemos examinar o problema de saber se o Libertismo faz algum sentido enquanto perspectiva positiva sobre o comportamento humano. Para compreender o nosso comportamento, não basta negar que as nossas acções estão determinadas. Precisamos também de uma perspectiva positiva acerca da forma como tomamos decisões.
Se as nossas acções não estão determinadas causalmente, como surgirão supostamente? O que produzirá ao certo as nossas decisões? Podemos imaginar que há, dentro de cada um de nós, uma espécie de «ser mental» cujas decisões não estão constrangidas pelas leis causais - um controlador fantasmagórico que faz escolhas independentemente daquilo que ocorre no cérebro. Mas isto não é credível. Vai contra o que a ciência nos diz sobre o funcionamento das coisas. Não há provas de qualquer tipo da existência de uma «energia mental» que actue dentro de nós, desligada da operação do nosso sistema neurológico. E, mesmo pondo de parte a ciência, esta especulação parece não passar de um conto de fadas.
No entanto, se não devemos supor que há dentro de nós uma entidade mental desconectada a controlar as coisas, o que haveremos de pensar? Que uma parte do cérebro opera à margem da rede causal do mundo? isto parece uma tolice, mas é difícil pensar em algo melhor. Parece que não dispomos de uma perspectiva plausível que dê sentido à «liberdade» dos libertistas. Na ausência de tal perspectiva, temos de procurar noutro lugar uma solução para o problema do livre-arbítrio.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção - Filosofia Aberta, pp. 191-2)

domingo, 22 de novembro de 2009

A RESPOSTA LIBERTISTA iv


O argumento da responsabilidade. O pressuposto de que temos livre-arbítrio está profundamente enraizado nas nossas formas habituais de pensar. Ao reagir a outras pessoas, não conseguimos deixar de as ver como autoras das suas acções Consideramo-las responsáveis, censurando-as caso se tenham comportado mal e admirando-as caso se tenham comportado bem. Para que estas reacções estejam justificadas, parece necessário que as pessoas tenham livre –arbítrio.
Outros sentimentos humanos importantes, como o orgulho e a vergonha, também pressupõem o livre-arbítrio. Alguém que conquista uma vitória ou tem sucesso num exame pode sentir-se orgulhoso, enquanto alguém que desiste ou faz batota pode sentir-se envergonhado. Porém, se as nossas acções se devem sempre a factores que não controlamos, os sentimentos de orgulho e de vaidade são infundados. Estes sentimentos são uma parte inescapável da vida humana. Assim, uma vez mais, parece inescapável que nos concebamos como livres.
Podemos, portanto, raciocinar desta forma:
1. Não conseguimos deixar de admirar ou de censurar as pessoas pelo que fazem, nem conseguimos deixar de, por vezes, sentir orgulho ou vergonha pelo que fazemos.
2. Estas reacções – admiração, censura, orgulho e vergonha – não seriam apropriadas se as pessoas não tivessem livre-arbítrio.
3. Logo, temos de acreditar que as pessoas têm livre-arbítrio.
4. Dado que temos de ter essa crença, temo-la de facto: as pessoas têm livre-arbítrio.

Este é um exemplo daquilo que Immanuel Kant (1724-1804) designou por «argumento transcendental». Kant, que muitos consideram o maior dos filósofos modernos, observou que não conseguimos deixar de acreditar em certas coisas. Sendo assim, não conseguimos deixar de acreditar também naquilo que é necessário para que essas crenças sejam verdadeiras. Suponha-se que não conseguimos deixar de acreditar que X. Mas X pressupõe Y. Logo, disse Kant, não temos escolha: temos de presumir que é verdade que Y.
O problema dos argumentos deste tipo é óbvio. As crenças originais podem ser falsas, ainda que sejam psicologicamente inescapáveis. Se soubéssemos que as crenças originais são verdadeira – que as pessoas são censuráveis e que o orgulho é justificado - , poderíamos concluir que tudo o que essas crenças implicam também é verdade. Contudo, se não sabemos se as crenças são verdadeiras, não podemos extrair justificadamente quaisquer conclusões a partir delas. Não podemos concluir que temos livre-arbítrio a partir do simples facto de o livre-arbítrio ser implicado por crenças que temos, mas que não constituem conhecimento.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta - pp.189 -191)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A RESPOSTA LIBERTISTA iii


O argumento de que não podemos prever as nossas próprias decisões. Um tipo de argumento diferente a favor do Libertismo baseia-se na ideia de que tudo o que está causalmente determinado é previsível, pelo menos em princípio. Como é óbvio, algo pode estar determinado mas não ser previsível na prática em virtude de não termos conhecimento suficiente. A árvore que vejo da janela está cada vez mais inclinada e mais tarde ou mais cedo vai cair. Não posso prever quando ocorrerá a queda, pois não sei o suficiente, por exemplo, sobre a árvore, o solo ou a quantidade de chuva que teremos nos próximos dias. Mas se soubesse todas essas coisas e compreendesse perfeitamente as Leis da Natureza, poderia presumivelmente prever quando irá cair a árvore.
Se as acções humanas estão causalmente determinadas, então deve ser possível, em princípio, prevê-las da mesma forma. Precisamos apenas de conhecer os factos pertinentes sobre a pessoa, as suas circunstâncias e as leis causais relevantes.
Mas há aqui um problema. Isto parece plausível apenas se estivermos a prever o comportamento de outra pessoa. Suponha-se que o nosso amigo, João, está a decidir se há-de aceitar um emprego noutra cidade. Se tivermos informação suficiente sobre ele – sobre os acontecimentos que ocorrem no seu cérebro, entre outras coisas -, poderemos ser capazes de prever qual será a sua decisão e quando irá tomá-la. Poderemos dizer, por exemplo, que amanhã às 22:07 João irá decidir aceitar o emprego. Deste modo, saberíamos o que João iria fazer antes de ele ter agido. Até aqui tudo bem.
No entanto, as coisas são diferentes quando se trata de prever as nossas próprias decisões. Suponha que é a pessoas que está a tentar decidir se há-de aceitar o emprego fora da cidade. Se possuir toda a informação relevante sobre si próprio, será capaz de prever o que irá decidir? Conseguirá prever que irá continuar a deliberar até amanhã às 22:07, altura em que irá decidir aceitar o emprego? Esta é uma ideia estranha. Para começar, se souber à partida o que vai decidir, as suas deliberações podem terminar já. Por que razão há-de continuar a pensar se já sabe o que vai fazer? Mas, nesse caso, a previsão de que vai continuar a deliberar será falsa. Além disso, o leitor pode ser uma pessoa maliciosa que detesta ser previsível. Assim, seja qual for a conclusão atingida acerca do seu comportamento futuro, poderá fazer o contrário apenas para provar a falsidade da previsão. A previsão, poderemos dizer, derrota-se a si mesma. Isto parece mostrar que há uma grande diferença entre prever o comportamento humano e prever outros acontecimentos do mundo físico.
Podemos resumir o argumento desta maneira:
1. Se o comportamento humano está causalmente determinado, então é previsível em princípio.
2. Mas uma previsão sobre o que alguém irá fazer pode ser contrariada se a pessoa cujo o comportamento está a ser previsto souber qual é a previsão e escolher agir de outra forma.
3. Logo, nem todas as acções humanas são previsíveis em princípio.
4. E, por isso, nem todas as acções humanas estão causalmente determinadas.
Este é um argumento inteligente, mas será sólido? Há vários problemas nele. A primeira coisa que podemos observar é que as pessoas por vezes prevêem as suas próprias decisões, sem que por isso as impeça de continuar a deliberar. Isto está sempre a acontecer. Podemos prever correctamente que vamos acabar por recusar o emprego por não ser especialmente atraente, sabendo do que já recusámos empregos melhores fora da cidade. Apesar de sabermos isto, podemos continuar a ponderar a oferta.
No entanto, é verdade que uma previsão introduz um novo elemento na situação e as pessoas podem reagir-lhe. Mas isto não significa que o resultado não esteja determinado. Precisamos apenas de esclarecer o que significa «previsível» neste contexto. Devemos distinguir dois tipos de previsibilidade:
a) Previsível por um hipotético observador ideal que permanece fora do sistema e observa os acontecimentos, mas não interfere neles.
b) Previsível pelos seres humanos no mundo real.
O determinismo implica a previsibilidade no sentido a), mas não no sentido b). Com isto em mente, consideremos o caso em que prevejo que uma pessoa irá fazer algo e ela faz o oposto só para me contrariar. A minha previsão pode revelar-se errada. Ainda assim, um observador ideal poderia saber exactamente o que ia acontecer, incluindo a minha previsão e a resposta maliciosa dessa pessoa.
Este argumento, então, não prova que o nosso comportamento não esteja determinado. Mas há mais um argumento para apreciar.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva - (Colecção Filosofia Aberta, pp. 186-9)