domingo, 25 de abril de 2010

INTERESSE COLECTIVO VERSUS INTERESSE INDIVIDUAL


Como pode Hobbes defender que a racionalidade exige simultaneamente a guerra e a paz?

A resposta, creio, reside na distinção entre racionalidade individual e racionalidade colectiva. A racionalidade colectiva é aquilo que é melhor para cada indivíduo, partindo do pressuposto de que todos os outros agirão da mesma forma. As Leis da Natureza traduzem aquilo que é colectivamente racional. Podemos ilustrar esta distinção com um exemplo retirado de Jean-Paul Sartre. Consideremos um grupo de camponeses em que cada um cultiva a sua parcela de terreno, na vertente íngreme de um monte. Individualmente, apercebem-se de que poderiam aumentar a parte utilizável do seu terreno abatendo as árvores e semeando mais. Por isso, todos cortam as árvores. Mas, na tempestade seguinte a chuva arrasta o solo do monte, estragando a terra. Neste caso, podemos afirmar que a acção individualmente racional é cortar as suas árvores, por forma a aumentar a área de terra disponível para a agricultura. (O abate de árvores de uma só parcela de terreno não faz qualquer diferença significativa, no que diz respeito à erosão do solo.) Mas, colectivamente isto é um desastre, pois se todos cortarem as suas árvores, todas as parcelas ficarão inutilizáveis. Portanto, a acção colectivamente racional é deixar a maioria das árvores de pé – se não mesmo todas.

WOLFF, Jonahan, Introdução à Filosofia Política, 1ª edição, 2004. Lisboa: Gradiva, pp. 29-30

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A OMNIPOTÊNCIA DIVINA


Pode Deus fazer uma pedra tão pesada que Ele próprio seja incapaz de a levantar? Se pode, então não é todo-poderoso. Mas, se a não puder fazer, então também não será todo-poderoso. Em qualquer destes casos, temos uma coisa que Deus não consegue fazer. Assim, parece seguir-se que Deus (ou qualquer outra coisa, para o efeito) não pode ser omnipotente.
Apresenta-nos uma versão de um problema antigo, um problema que é incessantemente discutido por teólogos. Na sua formulação mais simples, diz o seguinte: pode Deus fazer uma pedra que seja simultaneamente grande e não grande? É óbvio que não. Logo, Deus não é omnipotente.

A resposta mais conhecida a esta questão, favorecida por S. Tomás de Aquino, é que temos de ter mais atenção quanto ao modo como entendemos o conceito de omnipotência. Ser omnipotente não é ser capaz de fazer seja o que for: é ser capaz de fazer tudo o que pode ser feito. Poderia Deus fazer uma pedra que fosse simultaneamente grande e não grande? Não. Mas o facto de Deus ser incapaz de o fazer não ameaça a omnipotência de Deus, uma vez que jamais poderia existir uma pedra que fosse ao mesmo tempo grande e não grande. De igual modo, se Deus é omnipotente, então é simplesmente impossível existir uma pedra tão grande que Ele não possa levantá-la. Assim, o facto de Deus não poder criar uma pedra tão grande que Ele não possa levantá-la não constitui um limite ao poder de Deus.
Vale a pena referir também que alguns filósofos – René Descartes, por exemplo - defenderam que Deus poderia fazer uma pedra que fosse simultaneamente grande e não grande! Segundo esta perspectiva, os poderes de Deus são completamente ilimitados, a ponto de Deus não estar sequer limitado pelas leis da lógica. Pode ser impossível, para nós, compreender como se consegue tal feito, mas esta incompreensão deve-se ao facto de as nossas mentes serem finitas, sendo a do Criador infinita.

GEORGE, Alexander (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.183-184

quinta-feira, 22 de abril de 2010

OS TERRORISTAS E OS COMBATENTES DA LIBERDADE


Qual é a diferença entre um terrorista e um combatente da liberdade?

Ser terrorista é aquele (ou aquela) que pretende alcançar os seus fins aterrorizando inocentes, ou mediante a ameaça de uso de tal expediente, e combatente da liberdade é aquele (ou aquela) que se envolve numa luta para libertar a população de um governante tirânico. Houve alguns combatentes da liberdade que foram terroristas, houve alguns combatentes da liberdade que não foram terroristas, e houve alguns terroristas que não foram combatentes da liberdade. Se “terrorista” refere a pessoa que adopta um meio específico “combatente da liberdade” caracteriza a pessoa atendendo aos fins que ela persegue, é de esperar que ocorra cruzamentos e sobreposições entre as classificações.

No discurso político público contemporâneo, estas designações são menos utilizadas para descrever a realidade do que para exprimir a aprovação ou condenação política de quem as emprega. Chamar “combatente da liberdade” a uma pessoa é louvá-la; apontá-la como terrorista é condená-la liminarmente. É evidente que estes juízos morais têm cabimento, mas quando o discurso político consiste apenas em tais juízos, sem que os acompanhe uma justificação ponderada do uso que deles está a ser feito, então está garantida a degradação do próprio discurso.

Acrescente-se que estamos perante definições um tanto imprecisas, pelo que não se pode esperar que sejam de grande utilidade quando se trata de descrever a complexidade das situações do mundo real. Além do mais, são definições susceptíveis de induzir em erro, dado encorajarem a ideia de que a técnica de aterrorizar inocentes é principalmente utilizada por indivíduos singulares, e eventualmente por grupos relativamente pequenos, quando, na realidade, dispomos de dados mais que suficientes para argumentar que as mais notáveis exemplificações de práticas terroristas foram perpetradas por governos. O discurso político seria mais salutar se se abandonassem os rótulos, se se deixasse de olhar para o imenso e variado mundo através de fendas tão estreitas, e se se procurasse descrever as coisas directamente, com clareza, e com honestidade.

GEORGE, Alexander (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.123-124

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O ESTADO DE NATUREZA


Como seria a vida num “estado de natureza”, num mundo sem governo?
Tomamos como adquirido o facto de vivermos num mundo de instituições políticas: o governo central, o governo local, a polícia, os tribunais. Estas instituições distribuem e administram o poder político. Colocam pessoas em cargos de responsabilidade e estas pessoas podem reivindicar o direito a mandar-nos a agir de determinadas formas.
É claro que não poderíamos abolir o estado apenas para descobrir como seria a vida sem ele e, por isso, na prática, o melhor que podemos fazer é uma experiência mental. Imaginamos um “estado de natureza”, uma situação na qual o estado não existe e ninguém detém o poder político. Em seguida, tentamos determinar como seria viver nestas condições.
Alguma vez existiu um estado de natureza? Muitos filósofos parecem relutantes em comprometer-se relativamente a este assunto. Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), por exemplo, pensava que levaria tanto tempo a passar de um estado de natureza para a “sociedade civil” (uma sociedade governada por um estado formal), que se tornava blasfemo supor que as sociedades modernas teriam surgido dessa forma. Afirmava que o tempo necessário à transição seria superior à idade do mundo, tal como registada nas escrituras.
Mas mesmo que nunca tenha existido um verdadeiro estado de natureza, podemos ainda assim, considerar como seria a vida se, hipoteticamente, nos víssemos sem um estado. Thomas Hobbes (1558-1679) em Leviatã, traçou um quadro negro desta situação hipotética, esperando convencer os leitores das vantagens do governo.
Mas é possível um estado de natureza? Por vezes, diz-se que não só os seres humanos sempre viveram sob um estado, como essa é a única forma de eles conseguirem viver. De acordo com esta perspectiva, o estado existe naturalmente, no sentido de ser natural para os seres humanos. Talvez não fôssemos seres humanos se vivêssemos numa sociedade sem estado. Talvez fôssemos uma forma inferior de vida animal. Se os seres humanos existem, também existe o estado.

WOLFF, Jonahan, Introdução à Filosofia Política, 1ª edição, 2004. Lisboa: Gradiva, pp. 18-19

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A INTOLERÂNCIA


O tolerante deve tolerar a intolerância?

Há, como sugere, qualquer coisa de paradoxal da tolerância. No entanto, esta aparência de paradoxo dissipa-se se distinguirmos duas coisas diferentes que as pessoas poderão ter em mente quando se discute o que é “tolerar” algo. Há uma acepção de “tolerância” que significa “ser indiferente a”, como por exemplo em “Não percebo porque toleram aqueles pais aquele tipo de comportamento dos seus filhos”. Esta é a acepção que penso que as pessoas terão em mente quando dizem, plausivelmente, que ninguém devia tolerar o racismo, o sexismo, ou, já agora, a intolerância.

Mas esta não é a acepção em que a “tolerância” é uma virtude. O tipo de tolerância que se exige a uma sociedade civil é aquele que reconhece a cada pessoa o direito a decidir por ela própria e a formar as suas próprias opiniões, e que torna ilegítima qualquer tentativa no sentido de coagir a mudar de opinião. Neste sentido, não há incompatibilidade entre tolerar uma crença racista e procura, recorrendo a todos os meios de persuasão legítimos, fazer a pessoa que assim pensa mudar de opinião. É nesta acepção que um indivíduo tolerante deve “tolerar” a intolerância; ao indivíduo tolerante cumpre reconhecer o direito que assiste a outra pessoa de discordar dele sobre o valor da tolerância, ou sobre o direito de outros defenderem determinadas opiniões. Todavia, o indivíduo tolerante não está obrigado a ignorar ou a aceitar a intolerância, e pode fazer o seu melhor para argumentar contra ela sempre que isso se proporciona.

GEORGE, Alexander (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.103-104

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ÉTICA E ESTUPIDEZ


É moralmente errado lucrar com os erros ou a estupidez de outras pessoas?

Depende de se estar a lucrar passiva ou activamente. Lucrar passivamente não é, em geral, moralmente errado. Aproveitar-se de é, em geral, moralmente errado, especialmente quando, ao explorar a estupidez de outrem, leva essa pessoa a cometer o erro, ou a laborar em erro (por exemplo, ao levar alguém a aceitar uma aposta impossível de ganhar). As situações em certo sentido menos activas são aquelas em que não desempenhamos qualquer papel na causa do erro, mas em que, ainda assim, o exploramos de algum modo. Isto pode ser errado – como quando apanhamos um maço de notas que alguém deixou cair ao chão e ficamos com ele em vez de tentarmos devolvê-lo a quem o deixou cair. Ou pode não ser errado, em casos menores, como quando ficamos com o troco que encontramos na calha de devolução de moedas de uma cabina telefónica pública.
A situação moral altera-se no contexto de jogos de competição, nos quais lucrar com as circunstâncias é entendido como parte do jogo. Num jogo de competição (xadrez, póquer, boxe) não é errado enganar o adversário levando-o a cometer um erro e depois explorar esse erro o melhor que pudermos e soubermos. O mesmo se aplica à competição entre empresas ou estados. Todavia, existem três restrições a observar: a primeira, podemos explorar os erros do adversário somente na medida em que essa exploração for permitida pelas regras do jogo – não podemos, por exemplo, oferecer ao adversário de xadrez um sonífero que (esperamos) ele confunda com uma drageia de hortelã-pimenta, tal como não podemos valer-nos de um erro do adversário numa competição de luta livre para o asfixiar até à morte; a segunda, a entrada do adversário no jogo tem de ser voluntária, e não uma consequência de o termos aliciado a entrar no jogo explorando a estupidez dele; e a terceira, as regras do jogo têm, elas mesmas, de ser moralmente aceitáveis.

GEORGE, Alexander (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.79-80

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A EXISTÊNCIA NA MENTE


O facto de uma coisa existir na imaginação de alguém não dá a essa coisa pelo menos um mínimo de realidade?

Ora bem, estou neste momento a imaginar que tenho no bolso uma cautela de lotaria premiada. Deixe-me verificar. (Pausa) Bolas. Nem perto de ser premiada. Na verdade, nem sequer tenho uma cautela de lotaria no bolso.

Podemos falar de um vaso de diamantes que exista na “imaginação de alguém”. Mas isto não significa que o vaso de diamantes esteja realmente, de um modo difuso, ou de outro modo qualquer, na mente dessa pessoa. Se existe alguma coisa na mente dessa pessoa, é a ideia do vaso de diamantes, ou talvez uma imagem dele. Mas não o vaso ele mesmo.

Achamo-nos contudo perigosamente perto de uma Grande Dor de Cabeça Filosófica: perceber o que faz essa ideia ou imagem ser acerca da coisa à qual diz respeito. Esta questão torna-se especialmente intrigante quando a coisa da qual é imagem não existe, de facto, de forma alguma.

GEORGE, Alexander (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.19-20