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sexta-feira, 4 de julho de 2008

O AMOR ii

Os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade. É isto que exprimem daquela maneira estranha que consiste em abraçarem-se no fervor do momento, na suposição de que toda a satisfação e prazer da bênção do amor haja de residir aí. Mas todo o prazer é egoísta. O prazer do amante não é decerto egoísta em relação ao da pessoa amada, mas o dos dois em união é absolutamente egoísta, na medida em que ambos em união e amor formam um ego. E contudo são enganados; porque no mesmo instante a espécie triunfa sobre os indivíduos, a espécie sai vitoriosa enquanto os indivíduos ficam reduzidos a submeter-se ao serviço dela.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, pp. 77-78

segunda-feira, 30 de junho de 2008

O AMOR

Se fosse expressão do amor amar a primeira criatura que surgisse, então poder-se-ia entender que o indivíduo não se conseguisse explicar melhor, mas como a expressão do amor é amar uma única criatura, uma só no mundo inteiro, então parece que um acto de selecção tão desmesurado teria que conter em si uma dialéctica dos fundamentos à qual seria preciso não dar ouvidos, não tanto porque nada explicasse, mas antes porque seria demasiado extensa para se lhe dar atenção. Mas não, o amante não consegue explicar coisa alguma. Viu centenas e mais centenas de mulheres, terá porventura avançado nos anos, nada sentiu; de súbito vê-a, ela, a única.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, p. 65

sábado, 28 de junho de 2008

A ARTE DA RECORDAÇÃO

Não é fácil a arte de recordar, porque a recordação, no momento em que é preparada, pode modificar-se, enquanto a memória se limita a flutuar entre a lembrança certa e a lembrança errada. Por exemplo, o que é a saudade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudade gera-se simplesmente pelo facto de se estar ausente. Arte seria conseguir sentir-se saudade sem se estar ausente. Para tanto é preciso estar-se treinado em matéria de ilusão. Viver numa ilusão, em que o crepúsculo é contínuo e nunca se faz dia, ou alguém ver-se reflectido numa ilusão, não é tão difícil como alguém reflectir-se para dentro de uma ilusão e ser capaz de deixá-la agir sobre si, com todo o poder que é o da ilusão, apesar de se ter pleno conhecimento disso.
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, p. 20

terça-feira, 10 de junho de 2008

SEXO

Segundo Freud, o alvo do desejo sexual é “a união dos órgãos sexuais no acto conhecido como cópula, que conduz à libertação da tensão sexual e à extinção temporária do instinto sexual – uma satisfação análoga ao saciar da fome”. Esta imagem científica do desejo sexual originou, na altura própria, o relatório Kinsey, e faz agora parte da mercadoria padronizada do desencantamento.
O que é exactamente o prazer sexual? Assemelha-se ao prazer de comer e beber? Ao de repousar num banho quente? Ao de olhar a nossa criança a brincar? É claramente como todos eles e diferente de todos eles. É diferente do prazer de comer no facto do seu objectivo não ser consumido. É diferente do prazer do banho no facto de envolver ter prazer numa actividade, e na outra pessoa que se junta. É diferente do de olhar a nossa criança a brincar no facto de envolver sensações corporais e uma entrega ao desejo físico. O prazer sexual assemelha-se no entanto, num ponto crucial, ao prazer de olhar algo: tem intencionalidade. Não é apenas uma sensação de formigueiro; é uma resposta a outra pessoa, e ao acto em que se está envolvido com ele ou ela. A outra pessoa pode ser imaginária: mas é na direcção de uma pessoa que os nossos pensamentos estão orientados, e o prazer depende do pensamento.
Esta dependência no pensamento significa que o desejo sexual pode ser enganado, e que cessa quando o engano é conhecido. Apesar de eu ser um pateta se não saltar de um banho relaxante depois de me ter sido dito que o que tomei por água é na realidade ácido, não é por ter cessado de sentir sensações agradáveis na minha pele. No caso do prazer sexual, as descobertas de que é uma mão indesejada que me toca extingue de imediato o meu prazer. Uma mulher que faz amor com o homem que se disfarçou de seu marido não deixa de ser vítima de violação, e a descoberta do seu engano pode levar ao suicídio. Não é simplesmente por o consentimento obtido por fraude não ser consentimento; mas porque a mulher foi violada, no próprio acto que lhe causou prazer.
O que torna um prazer num prazer sexual é o contexto da excitação. E excitação não é o mesmo que intumescência. É uma “propensão para” o outro, um movimento na direcção do acto sexual, que não pode ser separado, nem dos pensamentos em que é fundado nem do desejo a que conduz. A excitação é uma resposta ao pensamento do outro como um agente consciente de si, que está consciente de mim, e que é capaz de ter “intenções” em mim.
SCRUTON, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, 2007. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., pp. 155-157

sexta-feira, 30 de maio de 2008

A RELAÇÃO ESPÍRITO – CORPO

O problema da relação entre a matéria e o pensamento entre o corpo e o espírito, entre o cérebro e a consciência, é uma fonte de perplexidade e um tema de controvérsia tipicamente filosófico. Várias respostas foram propostas, ainda que nenhuma provoque necessariamente maior adesão.
Entre os seres, uns parecem providos de espírito, outros não. Os cinzeiros, as bolas de neve, os ramos de salsa pertencem, inegavelmente, à segunda categoria. Os seres humanos, os símios, as chinchilas pertencem, inegavelmente, à primeira categoria. Esta distinção permite esclarecer a noção de espírito, que apenas remete para alguns tipos de actividade mental. Todo o ser que experimente algo do “interior” e a quem podemos razoavelmente atribuir propriedades mentais é dotado de espírito.
O ponto de partida do problema poderá ser o seguinte. Por um lado, o corpo e o espírito estão em estreita relação – um, exerce uma influência considerável sobre o outro. Por outro lado, parece possível imaginá-los funcionando autonomamente, independentemente um do outro.
A primeira afirmação, que sublinha a existência de interacções entre o corpo e o espírito, parece incontestável. Basta decidir esticar o braço esquerdo para que o meu braço esquerdo se estique. O mesmo acontece se eu decidir pôr a língua de fora ou voltar a cabeça. Reciprocamente, o meu corpo também influencia o meu espírito. Basta que bata com o dedo do pé numa porta para que sinta uma dor.
Tudo se passa como se o espírito condicionasse certos movimentos do corpo, e como se aquilo que acontece ao corpo pudesse condicionar certos estados ou acontecimentos mentais.
A segunda afirmação, que sublinha que o espírito e o corpo poderão funcionar um sem o outro, como duas realidades bem distintas, baseia-se em vários indícios. A crença numa existência autónoma do espírito funda-se no facto de que não é difícil imaginar que existimos no corpo de outro qualquer, ou sem corpo. Quanto à crença numa existência autónoma do corpo, ela baseia-se na hipótese do homem-zombie: um autómato humano sem a mais pequena das consciências não é inconcebível. Uma criatura desse género não experimentaria nada de “interior”, tal qual acontece como uma torradeira ou um qualquer brinquedo.
No entanto, se não é difícil imaginar com que se parecerá num corpo sem espírito – um elevador, um legume, um calhau -, o mesmo já não podemos dizer a propósito de um espírito sem corpo. Afinal, poder imaginar uma situação não é suficiente para que possamos afirmar que essa situação é possível.
Mas se parece natural aceitar que existem estas correspondências entre o espírito e o corpo via cérebro, já o mesmo não acontece se postularmos uma identidade estrita entre o cérebro e o espírito. Se a=b, então tudo o que é verdadeiro para a é verdadeiro para b. Dito de outro modo, se meu espírito=meu cérebro, então tudo o que pode ser dito do meu espírito poderá ser igualmente dito do meu cérebro. E isto não é o que se passa neste caso. O meu cérebro é, por natureza, objectivo, é um órgão, ou seja, um corpo localizado no espaço e no tempo. O meu espírito é, por natureza, subjectivo, não é um órgão, mas um ponto de vista. Se o meu cérebro fosse idêntico ao meu espírito, o que é objectivo seria subjectivo, o que constitui uma contradição nos termos. Defender que o cérebro é idêntico ao espírito significa acreditar que um livro é idêntico ao facto de lê-lo, o que parece absurdo.
Em conclusão, podemos afirmar, que o espírito, se é que posso dizê-lo, é entregue ao corpo e só dele depende. Todavia, não se reduz a isso.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 70-75

domingo, 25 de maio de 2008

QUAIS SÃO OS LIMITES DA NOSSA IDENTIDADE PESSOAL?

Imagine que um cirurgião decide aproveitar a sua presença no hospital para amputar cada um dos seus membros e lhe retirar todos os órgãos, com o intuito de resolver o enigma dos limites somáticos: o limite da amputação, antes da qual será sempre igual a si mesmo e depois da qual não será mais nada.
Você está adormecido numa mesa de operações, preso por correias de couro. A assistente preparou todos os instrumentos, o cirurgião pode começar a sua obra. A ideia não é realizar esta experiência crucial de qualquer maneira, abruptamente. Nesta primeira experiência, o cirurgião dá-se por satisfeito abrindo-lhe o crânio, arrancando-lhe os dentes, extraindo-lhe um rim, não terá pernas, apesar disso será a mesma pessoa.
Alguns filósofos recusariam este primeiro balanço. Ao primeiro órgão extraído, ao primeiro dedo cortado, ninguém permaneceria igual a si próprio. Estes filósofos são vítimas de uma confusão linguística. Pretender que uma pessoa deixa de ser quem é após uma intervenção cirúrgica, com a ablação das amígdalas ou do apêndice, é confundir a identidade pessoal, isto é, aquilo que somos ao longo de toda a nossa existência, com a imutabilidade ou a invariabilidade, conceito que se opõe por definição a qualquer tipo de mudança. O facto de irmos ao dentista ou ao cabeleireiro não faz com que desapareçamos. Na grande maioria dos casos, é precisamente porque desejamos continuar a ser nós mesmos que deixamos que nos cortem as unhas ou nos operem. É preciso aceitar a mudança para continuarmos a ser os mesmos.
Convencido pelos bons fundamentos desta primeira análise, o cirurgião decide prosseguir a sua investigação. Desta vez, ele decide ir até aos confins de si mesmo: não só lhe extrai os braços, mas também o sexo e a pele do corpo que vai esfolando. Ao abrir a caixa torácica fica com acesso às suas vísceras, que retira pacientemente. Para que não sucumba no curso desta operação, ele tem o cuidado de substituir ou de compensar cada órgão vital por uma prótese apropriada.
Decidido a levar a sua lógica até ao fim, o cirurgião decide agora destapar-lhe o cérebro. O cérebro é o limite somático das criaturas cerebrais.
Mas ninguém poderá imaginar seriamente que a nossa identidade depende da presença ou ausência de um neurónio (ou de uma sinapse, ou de uma conexão neuronal). Tal como um cérebro com um neurónio a menos permanece idêntico a si mesmo, é também um facto que um cérebro sem neurónios deixa de ser um cérebro.

FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 61-67

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A INACESSIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA DOS OUTROS

Que sabe do seu vizinho do lado? Provavelmente muitas coisas. O seu nome, sexo, talvez a idade, profissão, a sua altura, tom de pele, cor de cabelo e olhos, sabe os seus horários, etc.
Seja qual for o alcance dos seus conhecimentos e dos seus meios de investigação para os obter, há uma coisa, no entanto, que jamais poderá saber do seu vizinho. E essa coisa é a sensação de ser ele. Para saber qual será a sensação de ser o seu vizinho, seria necessário que ocupasse o seu lugar no mundo, no sentido do seu ponto de vista. Para experimentar o que ele experimenta, seria necessário que se metesse dentro dele, que a boca dele fosse a sua boca, as feridas dele, as suas feridas, a dor dele a sua dor. Seria necessário, numa palavra, que a consciência dele lhe fosse acessível. E é isso, precisamente, que não é possível: toda a consciência é irrevogavelmente inacessível às outras consciências.
A subjectividade não está no corpo do mesmo modo que o leite está no frigorífico. Ela é, antes de mais, uma forma singular de estar no mundo. E essa é a razão pela qual aceder ao cérebro do vizinho em nada contribui para aceder ao seu espírito. Mesmo que lhe abra o crânio, tudo a que terá acesso não passa de uma massa cinzenta e mole com inflorescências de couve-flor. Uma observação minuciosa das circunvoluções dos seus dois hemisférios não lhe traria nada de novo. Mesmo que venha a estabelecer uma relação muito precisa entre o que ele afirma representar – o medo, um sabor de ovos recheados, um desejo sexual – e uma configuração cerebral específica, mesmo assim permanecerá no seu exterior.
Não só nunca saberá o que é ser o seu vizinho, como também parece impossível que alguma vez venha a saber se sente as mesmas coisas que o seu vizinho. Nada garante que você e o seu vizinho estejam a experimentar as mesmas coisas quando adoptam comportamentos análogos.
Evidentemente que não é porque a consciência dos outros nos é inacessível que devemos concluir que as sujas sensações internas não têm nada em comum com as nossas, ou que não existe consciência. Mesmo que não possamos provar que os outros têm consciência, ninguém duvida disso. Ainda assim, não deixa de ser perturbador verificar até que ponto aquilo que geralmente damos por adquirido está, na realidade, longe de o ser. Mais do que qualquer outra consideração filosófica, estas hipóteses metafísicas, por muito inauditas e fantasistas que possam parecer, confrontam-nos com os fundamentos das nossas crenças e remetem-nos inexoravelmente para a nossa solidão.

Stéphane Ferret