
Kierkegaard, In Vino Veritas, 1ª edição, 2005. Lisboa: Antígona, pp. 77-78
Imagine que um cirurgião decide aproveitar a sua presença no hospital para amputar cada um dos seus membros e lhe retirar todos os órgãos, com o intuito de resolver o enigma dos limites somáticos: o limite da amputação, antes da qual será sempre igual a si mesmo e depois da qual não será mais nada.
Você está adormecido numa mesa de operações, preso por correias de couro. A assistente preparou todos os instrumentos, o cirurgião pode começar a sua obra. A ideia não é realizar esta experiência crucial de qualquer maneira, abruptamente. Nesta primeira experiência, o cirurgião dá-se por satisfeito abrindo-lhe o crânio, arrancando-lhe os dentes, extraindo-lhe um rim, não terá pernas, apesar disso será a mesma pessoa.
Alguns filósofos recusariam este primeiro balanço. Ao primeiro órgão extraído, ao primeiro dedo cortado, ninguém permaneceria igual a si próprio. Estes filósofos são vítimas de uma confusão linguística. Pretender que uma pessoa deixa de ser quem é após uma intervenção cirúrgica, com a ablação das amígdalas ou do apêndice, é confundir a identidade pessoal, isto é, aquilo que somos ao longo de toda a nossa existência, com a imutabilidade ou a invariabilidade, conceito que se opõe por definição a qualquer tipo de mudança. O facto de irmos ao dentista ou ao cabeleireiro não faz com que desapareçamos. Na grande maioria dos casos, é precisamente porque desejamos continuar a ser nós mesmos que deixamos que nos cortem as unhas ou nos operem. É preciso aceitar a mudança para continuarmos a ser os mesmos.
Convencido pelos bons fundamentos desta primeira análise, o cirurgião decide prosseguir a sua investigação. Desta vez, ele decide ir até aos confins de si mesmo: não só lhe extrai os braços, mas também o sexo e a pele do corpo que vai esfolando. Ao abrir a caixa torácica fica com acesso às suas vísceras, que retira pacientemente. Para que não sucumba no curso desta operação, ele tem o cuidado de substituir ou de compensar cada órgão vital por uma prótese apropriada.
Decidido a levar a sua lógica até ao fim, o cirurgião decide agora destapar-lhe o cérebro. O cérebro é o limite somático das criaturas cerebrais.
Mas ninguém poderá imaginar seriamente que a nossa identidade depende da presença ou ausência de um neurónio (ou de uma sinapse, ou de uma conexão neuronal). Tal como um cérebro com um neurónio a menos permanece idêntico a si mesmo, é também um facto que um cérebro sem neurónios deixa de ser um cérebro.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 61-67
Que sabe do seu vizinho do lado? Provavelmente muitas coisas. O seu nome, sexo, talvez a idade, profissão, a sua altura, tom de pele, cor de cabelo e olhos, sabe os seus horários, etc.
Seja qual for o alcance dos seus conhecimentos e dos seus meios de investigação para os obter, há uma coisa, no entanto, que jamais poderá saber do seu vizinho. E essa coisa é a sensação de ser ele. Para saber qual será a sensação de ser o seu vizinho, seria necessário que ocupasse o seu lugar no mundo, no sentido do seu ponto de vista. Para experimentar o que ele experimenta, seria necessário que se metesse dentro dele, que a boca dele fosse a sua boca, as feridas dele, as suas feridas, a dor dele a sua dor. Seria necessário, numa palavra, que a consciência dele lhe fosse acessível. E é isso, precisamente, que não é possível: toda a consciência é irrevogavelmente inacessível às outras consciências.
A subjectividade não está no corpo do mesmo modo que o leite está no frigorífico. Ela é, antes de mais, uma forma singular de estar no mundo. E essa é a razão pela qual aceder ao cérebro do vizinho em nada contribui para aceder ao seu espírito. Mesmo que lhe abra o crânio, tudo a que terá acesso não passa de uma massa cinzenta e mole com inflorescências de couve-flor. Uma observação minuciosa das circunvoluções dos seus dois hemisférios não lhe traria nada de novo. Mesmo que venha a estabelecer uma relação muito precisa entre o que ele afirma representar – o medo, um sabor de ovos recheados, um desejo sexual – e uma configuração cerebral específica, mesmo assim permanecerá no seu exterior.
Não só nunca saberá o que é ser o seu vizinho, como também parece impossível que alguma vez venha a saber se sente as mesmas coisas que o seu vizinho. Nada garante que você e o seu vizinho estejam a experimentar as mesmas coisas quando adoptam comportamentos análogos.
Evidentemente que não é porque a consciência dos outros nos é inacessível que devemos concluir que as sujas sensações internas não têm nada em comum com as nossas, ou que não existe consciência. Mesmo que não possamos provar que os outros têm consciência, ninguém duvida disso. Ainda assim, não deixa de ser perturbador verificar até que ponto aquilo que geralmente damos por adquirido está, na realidade, longe de o ser. Mais do que qualquer outra consideração filosófica, estas hipóteses metafísicas, por muito inauditas e fantasistas que possam parecer, confrontam-nos com os fundamentos das nossas crenças e remetem-nos inexoravelmente para a nossa solidão.
Stéphane Ferret