sábado, 24 de maio de 2008

UM OBJECTO NÃO É INTRINSECAMENTE UMA OBRA DE ARTE, TORNA-SE OBRA DE ARTE

Imagine que lhe perguntam se um cofre maciço, fechado a sete chaves, contém uma obra de arte, sem que possa abrir esse cofre e sem que alguém lhe tenha dito o que ele contém, se é que contém alguma coisa. Nestas condições, tudo parece indicar que não poderá pronunciar-se sobre a questão de saber se este cofre esconde, ou não, uma obra de arte. Por muito estranho que possa parecer, esta questão é todavia análoga a situação em que lhe perguntassem se um objecto anónimo qualquer é mesmo uma obra de arte. Entenda-se por objecto anónimo um objecto não identificado, acerca do qual não detém informação alguma. Não se trata de supor numa situação em que teria a oportunidade de reconhecer esta ou aquela obra, mais ou menos célebre, que já conhecia, nem de perceber que determinado objecto, em relação ao qual só sabe o que vier a descobrir, é uma obra de arte. Contrariamente ao que possa imaginar, o facto de abrir o cofre e de poder livremente examinar e manipular o seu conteúdo não lhe permitiria responder à questão colocada. Tanto dá que o cofre esteja aberto ou fechado, isso não altera em nada o problema. Seja qual for a situação, não poderá dizer, a não ser que o faça ao acaso, se esse objecto é, ou não, uma obra de arte.
Esta afirmação parece paradoxal, ou então absurda. Mas isso não é verdade, ele apenas visa mostrar como é ilusório pensar que as obras de arte são objectos que se definem por aquilo que nos dão a ver, a compreender, a saborear, a sentir, etc., ou seja, a sua aparência, ou ainda as suas propriedades estéticas.
As obras de arte não são compostas de moléculas de obras de arte do mesmo modo que a água é composta de moléculas de água. As obras de arte não têm um número atómico, não existe um código genético das obras de arte. Numa palavra, não há nada na aparência ou na estrutura íntima das obras de arte que seja característico do facto de se tratar de uma obra de arte.
Em conclusão: as obras de arte não são entidades que nos sejam impostas enquanto tais. Em particular, elas não são dotadas de nenhuma característica interna que permita distingui-las dos simples objectos. Mesmo que o cofre maciço seja aberto, nada muda: ninguém, do simples amador esclarecido até ao maior dos especialistas em arte, poderá dizer se um objecto anónimo qualquer é, ou não, uma obra de arte. O estatuto de obra de arte é um estatuto imaginário.

FERRET, Stéphane, Aprender com as coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 47-54

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