sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Argumentos do Desígnio ii


Parte II
Felizmente existe um padrão destes que usamos constantemente na explicação dos fenómenos mundanos. Chamo-lhe explicação pessoal. Quando explicamos o facto de o livro estar na mesa, ou das palavras destas frases estarem no meu papel, explicamo-los em termos da acção de uma pessoa com capacidades para mudar as coisas e um propósito que procura assim realizar. As palavras que estão no papel têm de ser explicadas como causadas por uma pessoa (eu) com uma capacidade de mover o meu corpo de certos modos (i.e. escrever), e um propósito (ter um artigo para mandar ao editor). As explicações científicas postulam com frequência inobserváveis (e.g. protões e electrões) para explicar os dados observáveis; e os fundamentos para a suposição que fazem é que a hipótese explicativa é simples e leva-nos a esperar com alguma probabilidade os dados que de outra forma não esperaríamos. As explicações pessoais em termos de pessoas inobserváveis têm de ser aceites por razões análogas. A simplicidade de uma hipótese consiste em postular poucas entidades com poucas propriedades simples.
Os dados inexplicáveis pela ciência para os quais chamei a atenção ― o comportamento uniforme dos objectos de acordo com as leis da natureza, e o carácter especial dessas leis e das condições iniciais (ou limite) do Universo ― são facilmente explicáveis em termos de um Deus, omnipotente (todo-poderoso), omnisciente (conhece tudo) e perfeitamente livre. Está em actividade constante, movendo as estrelas e os átomos de forma regular (tal como podemos mover os nossos corpos de forma regular nos padrões de uma dança), e de modo a que, em conjunto com a matéria primeva que ele fez, dar origem aos animais e aos seres humanos. Sendo omnipotente, pode fazer isto. Sendo omnisciente, verá uma boa razão para fazê-lo. Um mundo que evolui regularmente é bonito, e os seres humanos que surgirão podem eventualmente aprender como funciona, o que só poderão fazer se houver leis da natureza simples, que entendam e possam depois até certo ponto escolher como modelar o mundo para o bem ou para o mal. É bom que existam seres humanos desempenhando um papel no processo de criação. Deus, sendo perfeitamente livre, não será impedido por forças irracionais de criar o que percebe ser bom.
Diz-se às vezes que sendo as leis da natureza como são, e sendo as condições iniciais como são no nosso Universo, este seria explicado se existisse um trilião de outros universos com leis e condições iniciais diferentes. Seria então muito provável que existisse um universo em que estes factores fossem exactamente os correctos para a evolução dos animais e dos seres humanos. Mas seria o cúmulo da irracionalidade postular um trilião de universos (por oposição a um Deus) a fim de explicar o nosso Universo, a menos que existam características particulares do nosso Universo que sejam melhor explicadas por uma super-teoria que tenha como consequência o trilião de universos. Mas mesmo até uma tal super-teoria teria de postular condições limite muito especiais para o super-Universo de universos e super-leis da natureza muito especiais, que tivessem como consequência a evolução de uma variedade tal de universos que tornasse muito provável que pelo menos num houvesse a evolução da vida. A maior parte das super-teorias (para além de serem muito complicadas) não terão essa consequência. Assim temos o problema de saber precisamente porque o super-Universo tinha as leis da natureza e as condições limite que tinha. E assim uma vez mais, quer se trate de um universo ou de um super-universo, ou a sua ordem e o seu carácter 'afinado' são factos brutos e inexplicáveis ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.
A hipótese do teísmo é uma hipótese muito simples. Postula um ser pessoal, não muitos. As pessoas são seres com poderes para mudar o mundo, conhecimento de como fazê-lo, e algum grau de liberdade na forma de fazê-lo. Deus é postulado como um género muito simples de pessoa ― tendo graus infinitos de poder, conhecimento e liberdade; ou, pondo negativamente, limite zero ao seu poder, conhecimento e liberdade. Os cientistas postulam sempre graus infinitos (ou zero) de propriedades como a hipótese mais simples, se o podem fazer consistentemente com os dados. Postulam que os fotões têm massa em repouso zero, em vez de alguma massa em repouso muito, muito pequena que iria predizer os dados igualmente bem; e costumavam postular que a força da gravidade tinha velocidade infinita até que outras considerações os obrigaram a aceitar uma hipótese diferente. Postular Deus é postular um ser de um género muito simples, e esta hipótese faz com que seja não improvável que encontremos os dados para que chamámos a atenção.
Supor que os dados são apenas factos brutos e inexplicáveis parece, contudo, altamente irracional. Supor simplesmente que é uma grande coincidência que cada pedaço de matéria por todo o Universo se comporte exactamente da mesma forma é terrivelmente irracional ― e ainda mais quando há uma hipótese rival simples que nos leva a esperar esses dados, assim como que o mundo esteja afinado para produzir os animais e os seres humanos. A razão conduz-nos inevitavelmente da Natureza para a Natureza de Deus.

Richard Swinburne

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Argumentos do Desígnio


As razões para acreditarmos que há um Deus existem desde que existem pessoas que sustentam esta crença; e os filósofos tentaram transformar estas razões em 'argumentos' com uma forma mais rigorosa desde que existem filósofos. O meu ponto de vista é o de que quando estes argumentos são articulados da forma correcta (i.e. de uma forma análoga à dos argumentos da ciência ou da história) e tomados em conjunto, constituem um caso poderoso e cumulativo a favor da existência de Deus.
Parece-me que entre os argumentos mais fortes a favor da existência de Deus, estão duas formas do argumento do desígnio ― a que chamarei o argumento da ordem temporal e o argumento da ordem espacial. O argumento da ordem temporal começa por chamar a atenção para o facto de que em todo o tempo e espaço possivelmente infinitos, os objectos materiais comportam-se da forma simples codificada pelas leis científicas.
Podemos ainda não saber o que são exactamente as leis mais fundamentais da natureza ― talvez sejam as equações de campo da Teoria da Relatividade Geral, ou talvez as leis da Teoria da Grande Unificação ou de uma teoria ainda maior a ser formulada. Dizer que essas leis governam a matéria é precisamente dizer que todo o pedaço de matéria, todo o neutrão, protão e electrão em todo o espaço e tempo infinitos comportam-se exactamente da mesma maneira (i.e. de acordo com exactamente as mesmas leis fundamentais). Isto é extraordinário!
É claro que isto não poderá ser sempre explicado cientificamente ― porque a explicação científica da operação de uma lei natural consiste em mostrar que é uma consequência de algumas leis ainda mais fundamentais ― explicamos a operação das leis da queda de Galileu mostrando que são uma consequência, para as circunstâncias particulares da Terra, das leis do movimento de Newton; e poderemos vir a ser capazes de explicar a operação das leis de Einstein pelas da Teoria da Grande Unificação. Mas o meu interesse é pela operação das leis mais fundamentais de todas. Ou a existência de tais leis é um facto bruto e inexplicável, ou tem de ser explicada por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.
A segunda forma de argumento ― o argumento da ordem espacial ― chama a nossa atenção para a complexa construção das plantas, dos animais e dos seres humanos. Eles estão organizados para apanhá-los, a criarem-se e a reproduzirem-se ― eles são como máquinas muito complicadas. Ora, como é óbvio, há uma explicação bem conhecida de tudo isto em termos de evolução por Selecção Natural. Há muito tempo, diz a história, existiram organismos muito simples, e eles tiveram descendentes que diferiram dos progenitores de várias formas (alguns sendo maiores, outros mais pequenos, alguns mais simples e alguns mais complexos do que os seus progenitores). Os melhor adaptados à sobrevivência (e muitas vezes a complexidade de organização fornece uma vantagem selectiva) fizeram-no e por sua vez produziram descendentes com características que diferem ligeiramente das suas em direcções aleatórias; e foi assim que as plantas, os animais e os seres humanos complexos evoluíram. Esta história é de certeza basicamente correcta. Mas por que é que começaram a existir organismos simples? Presumivelmente porque a matéria-energia na altura do 'Big Bang' quando o Universo (ou de alguma forma o seu estado actual) começou há 15 biliões de anos tinha precisamente a quantidade, densidade e velocidade inicial para conduzir com o tempo à evolução de organismos. E porque há no Universo leis da evolução? Isto é, leis que provocam a mutação aleatória dos genes dos animais, que levam a que os animais produzam muitos descendentes, etc.? Presumivelmente porque estas leis derivam da leis fundamentais da natureza. Apenas um determinado tipo de disposição crítica da matéria e determinados géneros de leis da natureza darão origem a tais organismos. Recente trabalho científico sobre a 'afinação' do Universo mostrou que a matéria inicial e as leis da natureza tiveram de ter de facto características muito, muito especiais para que os organismos pudessem evoluir. Por exemplo, o Big Bang teve de ser exactamente do tamanho certo ― se tivesse sido ligeiramente maior, os quanta de energia ter-se-iam afastado uns dos outros demasiado depressa para que a matéria se pudesse condensar nas galáxias, estrelas e planetas e assim permitir que os organismos evoluam. Se o Bang tivesse sido ligeiramente menor, o Universo teria colapsado antes de ser suficientemente frio para que a química dos elementos se formasse e assim permitir que os organismos evoluam. Se as leis da natureza tivessem a forma actual, mas as constantes físicas que entram nelas tivessem valores ligeiramente diferentes dos actuais (ou se elas tivessem tido uma das muitas outras formas diferentes), também não teria havido evolução. É, assim, extraordinário que as condições iniciais e as leis estivessem tão 'afinadas' que permitissem a produção das plantas, dos animais e dos seres humanos! Uma vez mais, isto não só não é, como, devido à própria natureza da ciência, nunca poderá ser explicável cientificamente. A ciência não poderá explicar por que razão as leis básicas da natureza são como são, nem porque na altura do Big Bang (ou perpetuamente, se não houve começo) tinham as características que tinham. Tudo isto é donde a ciência começa, o que explica outras coisas em termos de. Daí que, uma vez mais, ou estes são factos brutos e inexplicáveis, ou têm de ser explicados por um padrão de explicação ligeiramente diferente do científico.

Richard Swinburne

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

“ANTEVISÕES? ii”


A tecnologia médica propõe-nos, em muitos casos, um verdadeiro pacto com o diabo: uma vida mais longa, mas com as capacidades mentais reduzidas; fuga à depressão, mas sem criatividade ou espírito; terapias que tornam nebulosas as fronteiras entre o que conseguimos por nós próprios e o que fazemos apenas com o auxílio dos produtos químicos que actuam no nosso cérebro.
Consideremos os três cenários que se seguem, todos eles apresentando possibilidades que se podem concretizar ao longo da próxima geração ou seguinte.
O primeiro tem a ver com as novas drogas. Na sequência dos avanços da neurofarmacologia, os psicólogos descobrem que a personalidade humana é muito mais plástica do que se pensava. Já hoje se constata que certas drogas psicotrópicas, como o Prozac e o Ritalin podem afectar características como a auto-estima e a capacidade de concentração, mas também produzem efeitos colaterais indesejáveis, sendo por isso evitados a não ser em casos de absoluta necessidade. Contudo, no futuro, o conhecimento do genoma humano permitirá à indústria farmacêutica produzir drogas especialmente adequadas ao perfil genético de cada paciente, reduzindo assim os efeitos colaterais negativos. Pessoas apáticas tornam-se vivazes; os introvertidos passam a extrovertidos; pode adoptar-se uma personalidade à quarta-feira e outra para o fim-de-semana. Já não há desculpas para andar deprimido ou infeliz; até as pessoas “normalmente” felizes se podem tornar ainda mais felizes, sem riscos de dependências, de ressacas, ou de danos cerebrais a longo prazo.
No segundo cenário, os avanços nas pesquisas das células estaminais permitem aos cientistas regenerarem virtualmente qualquer tecido do corpo, de modo que a esperança de vida se pode estender para além dos 100 anos. Se precisarmos de um coração ou de um fígado novos, basta fazer crescer um novo órgão dentro de um porco ou de uma vaca; os danos cerebrais provocados pela doença de Alzheimer ou por uma apoplexia podem ser reversíveis. O único problema é que no envelhecimento humano há muitos aspectos subtis, e outros não tanto, para os quais a indústria da biotecnologia ainda não tem resposta: as pessoas desenvolvem uma rigidez mental e uma inflexibilidade de pontos de vista à medida que envelhecem e, por muito que o queiram, não se mantêm sexualmente atraentes umas para as outras, continuando a desejar parceiros sexuais dentro da idade da reprodução. Pior do que tudo, recusam afastar-se para dar lugar não só aos filhos, como aos netos e bisnetos. Por outro lado, são tão poucos os que têm filhos ou qualquer tipo de relação com os processos tradicionais de reprodução, que estes são remetidos para uma importância periférica.
No terceiro cenário, os ricos procedem rotineiramente à análise dos embriões antes da implementação de forma a optimizar o tipo dos filhos que têm. Torna-se possível referenciar o estrato social de um jovem pelo seu aspecto e pela sua inteligência; se alguém não corresponde às expectativas sociais, tende a culpar as escolhas genéticas erradas feitas pelos pais em vez de assumir as suas próprias responsabilidades. Os genes humanos foram transferidos para animais, e até mesmo para plantas, para efeito de investigação e para produzir novos medicamentos, e genes de animais foram adicionados a certos embriões para aumentar as suas capacidades físicas ou a resistência às doenças. Os cientistas não se atreveram a produzir uma quimera à escala real, meio-humano, meio-macaco, embora pudessem fazê-lo; mas os jovens começam a suspeitar que os colegas de escola que revelam grandes dificuldades não são, geneticamente, inteiramente humanos. Porque, na realidade, não o são.
FUKUYAMA, Francis, O Nosso Futuro Pós-Humano, 2ª edição, 2002. Lisboa: Quetzal Editores, pp. 26-28

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O sentido da vida iv


Parte IV
4. Sentido subjectivo e objectivo
Embora as discussões sobre o sentido da vida estejam muitas vezes associadas a considerações sobre o nosso lugar no universo, também há contextos em que a inteligibilidade do contraste entre vidas com sentido e vidas sem sentido parece ser totalmente independente da questão cósmica.
Já mencionámos antes a ideia de que o tipo de sentido que importa ter em consideração é o sentido objectivo. Alguns filósofos, como David Wiggins (1976), pensam que uma explicação totalmente subjectiva sobre o sentido não pode fazer justiça ao uso corrente do termo. Como Wiggins assinala, a ideia de uma distinção entre uma vida com sentido e uma vida sem sentido não é equivalente à diferença mais óbvia e incontroversa entre uma vida que é subjectivamente satisfatória ou enriquecedora e outra que não o é. Quando perguntamos se as nossas vidas têm sentido não estamos a fazer algo totalmente introspectivo, e quando procuramos uma forma de dar sentido às nossas vidas, não estamos à procura do comprimido da felicidade. A vida de Sísifo, perpetuamente condenado a carregar um pedregulho por um monte acima que depois caía outra vez, tem sido caracterizada, pelo menos desde os escritos de Camus, como um paradigma da ausência de sentido. Se imaginarmos que Sísifo encontrava uma perversa satisfação nesta actividade repetitiva e inútil, então não é claro se pensamos que nesse caso a sua vida tem mais sentido, ou se pelo contrário é mais miserável.
Todavia, as explicações sobre o sentido da vida não têm de ser reduzidas a alternativas puramente subjectivas e puramente objectivas. Os paradigmas mais naturais de vidas com sentido são tanto subjectivamente bastante enriquecedores como dignos de admiração e válidos se julgados de pontos de vista externos aos próprios agentes. O tipo de vida que é mais confortavelmente descrita como tendo sentido parece ser uma vida em que há uma ligação feliz entre os interesses reais de uma pessoa e o conjunto de coisas que são dignas de interesse. O sentido parece emergir quando a atracção subjectiva se interliga ao que é objectivamente atraente.
Se este tipo de existência de sentido está relacionada com a preocupação que mais naturalmente parece requerer uma ligação a algum desígnio divino ou cósmico, e como, são questões de difícil determinação. Além disso, a noção de algo «objectivamente atraente» (ou de valia ou valor objectivo), à qual esta concepção de existência de sentido faz referência, é notoriamente controversa. Se, no limite, esta noção é inteligível, particularmente na ausência de uma metafísica religiosa, é algo que constitui em si uma importante questão filosófica. No entanto, não é surpreendente que a questão do sentido da vida derive para outras questões filosóficas importantes e a elas se ligue. Trata-se afinal de um dos tópicos mais profundos e fundamentais de toda a filosofia.
Susan Wolf

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O sentido da vida iii


Parte III
3. Absurdo
Muitos filósofos defendem que se Deus não existe, a vida humana é um absurdo. Segundo eles, a condição humana conteria assim uma desarmonia fundamental e imutável. Albert Camus concentrou-se sobre o conflito entre a nossa exigência de que o mundo seja razoável, ordeiro e atento a nós e a realidade do mundo, isto é, o facto de o mundo ser mudo, inexpressivo e indiferente. Thomas Nagel acentua a discrepância entre a insignificância objectiva das nossas vidas e dos nossos projectos e a seriedade e a energia que lhes dedicamos. Como devemos então reagir?
Uma vez que o reconhecimento da indiferença do universo pode ser uma experiência aniquiladora, a ideia do suicídio emerge naturalmente. Se todos os nossos objectivos forem baseados no pressuposto de que a nossa existência ou as nossas acções dizem respeito a uma entidade ou processo mais abrangentes e menos necessitados de validação do que nós próprios, então a descoberta da inexistência de uma tal entidade deixa-nos sem qualquer direcção a seguir. E se além disso pensarmos que qualquer direcção que tomarmos reintroduzirá necessariamente o pressuposto que agora sabemos ser falso, então nessa altura poderá parecer-nos que a única opção que evita a contradição é o suicídio. No entanto, Camus (1955) pensava que há um modo de vida que não é contraditório. Descreveu o «homem absurdo» como aquele que vive «sem apelo», desafiando a indiferença que o mundo lhe oferece. Uma pessoa assim abraça a vida o mais plenamente possível, mas sem nunca esquecer ou negar a ausência de algum fundamento racional para a mesma.
Nagel dá-nos uma resposta mais suave (1971): o reconhecimento da nossa insignificância é uma função da capacidade distintamente humana de adoptarmos uma perspectiva externa sobre nós próprios; como tal, não há qualquer razão para tentar negá-la ou para dela fugir. Ao mesmo tempo, se as nossas vidas são cosmicamente insignificantes, também o é a maneira como respondemos a este facto. À luz deste argumento, sugere Nagel, a atitude de desafio parece excessivamente exagerada e dramática, sendo a ironia mais apropriada.
Richard Taylor (1970) retira uma moral diferente do silêncio do universo: o reconhecimento de que a vida seria, por assim dizer, objectivamente desprovida de sentido, deveria convencer-nos a deslocar a nossa procura de sentido para o interior. O tipo de sentido da vida que importa ter em consideração é um sentido para nós. A vida tem sentido se pudermos ocupar-nos de actividades que achamos serem significativas; de outro modo, não.
Todos estes filósofos partilham a ideia de que se não há nada mais vasto e mais intrinsecamente válido do que nós próprios, algo a que nos possamos ligar de uma forma positiva, então a vida não tem sentido pelo menos numa acepção importante. Nisto concordam com quem tem uma ideia positiva do sentido da vida baseada na existência de um Deus benevolente. Uma vez que também acreditam que a condição para o sentido não pode ser encontrada, e que ainda assim devemos viver como se a vida tivesse sentido, concluem que a vida humana é absurda. No entanto, e tal como Joel Feinberg (1992) assinala, há uma diferença entre uma situação absurda e uma pessoa absurda. Ao tomarmos uma atitude face ao nosso dilema, quer desafiante quer irónica, ou uma qualquer terceira alternativa, pelo menos podemos livrar-nos de ser ridículos.
Porém, em termos racionais, não é claro que tenhamos que fazer até esta concessão relativamente não pessimista ao pensamento de que a vida humana é absurda. Tal como vimos, esta concepção assenta na ideia de que há um conflito inelutável entre o que exigimos ou que inevitavelmente pressupomos acerca do nosso lugar no universo e a realidade da nossa situação. Todavia, a tendência para desejar ou insistir na nossa importância cósmica pode ser menos profunda e inevitável do que estes filósofos pensam. Enfrentar as dificuldades da vida e tentar realizar projectos com energia e dedicação são práticas que não precisam de ser baseadas numa megalomania. Não é pelo menos óbvio que quando o atleta olímpico se esforça até ao limite na tentativa de atingir um recorde mundial, ou quando uma mãe põe de lado o seu sono e o seu conforto para alimentar a sua criança, o façam com base na crença de que estes feitos terão um significado cósmico.

Susan Wolf

sábado, 24 de janeiro de 2009

O sentido da vida ii


Parte II
2. A relevância da morte
O sentimento de que estamos perante um problema quando pomos a questão do sentido da vida é frequentemente induzido pela contemplação da morte. Na verdade, muitas vezes pensa-se — como Schopenhauer (1851) e Tolstoi (1886) — que a questão emerge precisamente do facto de as nossas vidas acabarem com a morte. No entanto, como alguns filósofos observaram, a ligação entre a nossa finitude e o sentido da vida é desconcertante. Se o pressuposto de que todos morremos faz a vida parecer sem sentido, de que maneira o pressuposto contrário — de que viveremos eternamente — melhora a situação?
Uma possível explicação para a ligação entre o pensamento da morte e o medo de que a vida não tenha sentido é que quando enfrentamos a nossa própria mortalidade destruímos os nossos ideais de felicidade. Se a felicidade plena fosse verosímil, ou mesmo possível, poderíamos não sentir a necessidade de encontrar um sentido — não precisamos de ter uma razão para viver enquanto a vida é agradável, e o objectivo de atingir a felicidade plena, se esta fosse atingível, já seria suficiente. No entanto, para alguns, a ideia de que um dia morrerão torna a felicidade impossível. De uma maneira algo diferente, o reconhecimento da inevitabilidade da morte da nossa cultura e da nossa espécie, tal como de nós próprios, pode dar agora a ideia de que os interesses e os objectivos que tínhamos são destituídos de valor ou vãos.
Uma vez mais, a crença num Deus pode aliviar estas preocupações. A promessa de uma vida após a morte, na qual pelo menos alguns atingem a felicidade eterna, renova a possibilidade de procurar obter a felicidade plena. Por si só, a existência de um ser eterno e superior que cuida de nós e através do qual pautamos as nossas vidas alivia a preocupação com a insignificância dos nossos objectivos e da nossa conduta.

Susan Wolf

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O sentido da vida


O sentido da vida é um tema obscuro, e no entanto central para a filosofia. Frequentemente associada à questão de os seres humanos fazerem parte de um desígnio mais vasto ou divino, a pergunta «qual é o sentido da vida?» parece pedir uma resposta religiosa. No entanto, grande parte das discussões filosóficas questiona a necessidade desta associação. A atenção dedicada à inevitabilidade da morte parece muitas vezes tornar a questão do sentido da vida problemática, mas não é óbvio que a imortalidade pudesse fazer a diferença entre o sentido e a sua ausência. O tema do absurdo é recorrente nas discussões entre quem pensa que o universo é indiferente aos nossos destinos. Embora as nossas vidas não tenham sentido, defendem que devemos viver como se tivessem. Perante este absurdo, alguns propõem o suicídio, outros a rebelião, outros ainda a ironia. Também é possível virar as costas à questão do sentido cósmico e procurar um sentido para a vida noutro lugar.
1. O que significa «o sentido da vida»?
A pergunta «qual é o sentido da vida?» é provavelmente a que causa ao mesmo tempo mais desprezo e mais respeito pela filosofia. Por um lado é uma pergunta notoriamente vaga e deu azo a muitos disparates pomposos. Por outro, a necessidade de compreender o sentido da nossa existência é profunda e universal, apontando qualidades da mente que são possivelmente centrais para a existência humana.
Uma dificuldade significativa que rodeia este tópico é a falta de clareza do próprio tema, e as comparações que podemos fazer com outros contextos nos quais procuramos encontrar um sentido tendem a aumentar a confusão. Quando procuramos o sentido de palavras ou frases tentamos averiguar a forma como normalmente são usadas para comunicar. Porém, a vida não é um elemento num sistema de comunicação. Nada indica que seja usada ou que sirva para representar alguma coisa para além de si própria. Em certas circunstâncias, também falamos sobre o sentido de elementos não-linguísticos: as pegadas indicam a presença de alguém; as pintas vermelhas na pele de uma criança significam que tem sarampo. No entanto, as analogias com estes usos da palavra «sentido» não nos ajudam a responder à nossa pergunta.
A religião, e particularmente o judeo-cristianismo, proporciona um contexto natural para a questão do sentido da vida. Se acreditarmos que um ser sobrenatural criou o mundo de acordo com um plano grandioso, então a nossa pergunta procura saber qual é a finalidade desse plano ou qual é o lugar que a vida nele ocupa. No entanto, não se pode reduzir o tópico filosófico do sentido da vida — ou, melhor, o conjunto de tópicos interrelacionados que ao longo do tempo têm vindo a ser associados à nossa pergunta — a questões que só fazem sentido no âmbito da religião.
As preocupações centrais que subjazem a este tópico incluem questões sobre a existência de um objectivo para a vida, sobre o valor da vida e sobre a existência de uma razão para viver, independentemente das circunstâncias e interesses individuais. Qualquer destas questões pode ser aplicada à vida, normalmente à vida humana, mas também às vidas individuais, particularmente às nossas próprias vidas. Podemos procurar motivações, razões e valores aceitáveis a partir de pontos de vista que nos são exteriores, ou podemos restringir a nossa atenção ao campo dos desejos e objectivos das nossas psiques ou das nossas comunidades, indiferentes a possíveis perspectivas que possam existir além da esfera humana. Embora a expressão «o sentido da vida» pareça pressupor apenas um sentido para a vida, podemos ser levados a rejeitar este pressuposto sem ser preciso concluirmos que a vida não tem sentido. Muitas vezes o próprio objecto da pergunta vai-se transformando ao longo do próprio processo de lhe dar uma resposta.
Portanto, indagar sobre o sentido da vida é como envolvermo-nos numa busca em que só estamos certos daquilo que procuramos quando o encontramos. Qualquer tentativa de arranjar uma paráfrase inequívoca para a expressão «o sentido da vida» está sujeita, tal como a própria expressão, a excluir certas opções e suprimir caminhos de questionamento que não deveriam ser abandonados de antemão.

Susan Wolf

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

“ANTEVISÕES?”


A meio século de distância da publicação destes livros [1984, de George Orwell e O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley], podemos constatar que, enquanto as antevisões tecnológicas se mostraram surpreendentemente exactas, as previsões políticas do primeiro livro, 1984, estavam rotundamente erradas. O ano de 1984 começou e acabou com os Estados Unidos e a União Soviética envolvidos na Guerra Fria. Neste ano, a IBM introduziu no mercado um novo modelo de computador pessoal, o começo do que viria a ser a revolução dos computadores pessoais. Como afirmou Peter Huber, o computador pessoal ligado à Internet foi a concretização do painel de visualização de Orwell. Só que, em vez de se tornar num instrumento de centralização e tirania, teve precisamente o efeito contrário: a democratização do acesso à informação e a descentralização da política.
Apenas cinco anos depois de 1984, e após uma série de acontecimentos dramáticos que algum tempo antes não pareciam mais do que ficção política, assistiu-se ao colapso da União Soviética e do seu império, desaparecendo assim a ameaça totalitária tão vivamente evocada por Orwell. Uma vez mais se afirmou que as duas ocorrências, o desmantelamento dos impérios totalitários e a emergência do computador pessoal, assim como dos outros meios tecnológicos pouco dispendiosos, desde as televisões aos rádios, aos aparelhos de telecópia e ao correio electrónico, não podiam deixar de ter ligação entre si. E isto porque qualquer governo totalitário depende da capacidade do regime para manter o monopólio sobre a informação e, uma vez que as novas tecnologias da informação tornam impossível tal desiderato, o poder do regime é substancialmente enfraquecido.
FUKUYAMA, Francis, O Nosso Futuro Pós-Humano, 2ª edição, 2002. Lisboa: Quetzal Editores, pp. 20-21

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A teoria da justiça de John Rawls v


Parte V
A objecção do jogador de basquetebol
Esta objecção foi apresentada pelo filósofo Robert Nozick. Ao contrário das duas objecções anteriores, não procura melhorar o princípio da diferença de maneira a que respeite cabalmente as nossas intuições morais de igualdade e justiça. O objectivo de Nozick é antes derrubar o princípio da diferença e fazer assentar em bases sólidas o seu princípio da transferência — tudo o que é legitimamente adquirido pode ser livremente transferido. Para isso, formula o contra-exemplo que é a seguir submetido à tua avaliação.
Wilt Chamberlain é um jogador de basquetebol em alta. A sociedade em que vive distribui a riqueza segundo o princípio da diferença ou segundo o princípio "a cada um segundo as suas necessidades", ou então segundo o princípio que achares mais correcto — escolhe o princípio que quiseres. A esta distribuição de riqueza vamos chamar D1. Depois de várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com uma equipa: nos jogos em casa, recebe 25 cêntimos por cada bilhete de entrada. A emoção é grande. Todos o querem ver jogar. Chamberlain joga muito bem. Vale a pena pagar o bilhete. A época termina e 1 milhão de pessoas viu os jogos. Chamberlain ganhou 250 000 euros. O rendimento obtido é bem maior que o rendimento médio. Gera-se assim uma nova distribuição de riqueza na sociedade em questão, a que vamos chamar D2.
Por que razão é este caso um contra-exemplo ao princípio da diferença? Dado que cria uma enorme desigualdade, Nozick pergunta por que razão esta nova distribuição de riqueza é injusta. Na situação D1, as pessoas tinham um rendimento legítimo e não havia protestos de terceiros para que se redistribuísse a riqueza. Nenhuma questão se levantava acerca do direito de cada um controlar os seus recursos. Depois as pessoas escolheram dar 25 cêntimos do seu rendimento a Chamberlain e gerou-se a distribuição D2. Haverá agora lugar a reclamações de terceiros que antes nada reclamavam e que continuam a ter o mesmo rendimento? Que razão há para se redistribuir a riqueza? Que razão tem o estado para interferir no rendimento de Chamberlain cobrando-lhe impostos elevados?
Se concordas com Nozick e aceitas que a situação D2 é legítima, então o seu princípio da transferência está mais de acordo com as tuas intuições do que princípios redistributivos como o princípio da diferença. Mas se assim for, o que fazer em relação às desigualdades naturais que condenam à indigência pessoas cujos talentos naturais não são rentáveis no mercado? Nozick aceita que temos intuições poderosas a favor da compensação de desigualdades não escolhidas; o problema é que os nossos direitos particulares sobre as nossas posses e rendimentos não deixam espaço para direitos gerais. A propriedade é absoluta. E se o é, que meios materiais tem o estado para garantir outros direitos? É a ti que cabe fazer um juízo sobre este problema.
Faustino Vaz

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A teoria da justiça de John Rawls iv


Parte IV
Objecções
A teoria de Rawls não compensa as desigualdades naturais
A concepção comum de igualdade de oportunidades não limita a influência dos talentos naturais. Rawls tenta resolver essa falha através do princípio da diferença. Assim, os mais talentosos não merecem ter um rendimento maior e só o têm se com isso beneficiarem os menos favorecidos. Mas talvez Rawls não tenha resolvido o problema. Talvez a sua teoria da justiça deixe ainda demasiado espaço para a influência das desigualdades naturais. E nesse caso o destino das pessoas continua a ser influenciado por factores arbitrários.
Rawls define os menos favorecidos como aqueles que têm menos bens sociais primários. Imagina agora duas pessoas na mesma posição inicial de igualdade: têm as mesmas liberdades, recursos e oportunidades. Uma das pessoas tem o azar de contrair uma doença grave, crónica e incapacitante. Esta desvantagem natural implica custos na ordem dos 200 euros por mês para medicação e equipamentos. O que oferece a teoria de Rawls a esta pessoa? Como esta pessoa tem os mesmos bens sociais que a outra e os menos favorecidos são definidos em termos de bens sociais primários, a teoria de Rawls não prevê a possibilidade de a compensar. Sobre as desigualdades naturais, apenas é dito que os mais agraciados em talentos pela natureza podem ter um rendimento maior se com isso beneficiarem os menos favorecidos.
O princípio da diferença assegura os mesmos bens sociais primários a esta pessoa doente, mas não remove os encargos causados, não pelas suas escolhas, mas pela circunstância de ter contraído uma doença grave, crónica e incapacitante. A crítica à concepção dominante de igualdade de oportunidades devia ter levado Rawls ao princípio de que as desigualdades naturais, tal como as sociais, devem ser compensadas. Não se vê justificação para tratar as limitações naturais de maneira diferente das sociais. Logo, as desvantagens naturais devem ser compensadas (equipamento, transportes, medicina e formação profissional subsidiadas). A teoria de Rawls enfrenta a objecção de não reconhecer como desejável a tentativa de compensação destas desvantagens.
A teoria de Rawls leva a que certas escolhas subsidiem injustamente outras
A intuição que está por detrás da objecção anterior diz-te que não é justo responsabilizar as pessoas pelas circunstâncias em que por acaso se encontram: um deficiente não é responsável pela sua deficiência e um doente crónico pela sua doença crónica. O outro lado da mesma intuição diz-te agora que não é justo desresponsabilizar as pessoas pelas suas escolhas. Mais uma vez, o recurso a um exemplo pode ajudar-te a compreender melhor o que está em jogo.
Imagina duas pessoas que trabalham na mesma empresa de electrodomésticos. Têm, por isso, os mesmos recursos económicos. Mas também têm em comum os mesmos talentos naturais e antecedentes sociais. Uma delas é apaixonada por futebol e gasta uma parte razoável do seu rendimento nas deslocações permanentes que faz para apoiar o seu clube. Somadas as outras despesas inevitáveis de uma família, nada sobra. Por vezes esta família tem de recorrer a apoio social do estado. A outra resolveu estudar sistemas eléctricos depois do expediente normal de trabalho. Após um período de estudo, compra o equipamento necessário e resolve vender os seus serviços de electricista das seis da tarde às nove da noite. Com muitas horas de trabalho, esforço e competência, duplica o rendimento inicial. O princípio da diferença diz que as desigualdades de rendimento são permitidas se beneficiarem os menos favorecidos. Que consequência tem a sua aplicação a este caso? A consequência de fazer o apaixonado por futebol beneficiar do rendimento do electricista esforçado.
Isto viola a tua intuição de justiça. Parece obviamente justo compensar custos não escolhidos (doenças, deficiências, etc.), mas é obviamente injusto compensar custos escolhidos. E é isso o que acontece neste caso; o princípio da diferença leva a que o electricista esforçado pague do seu bolso a escolha que faz e ainda subsidie a escolha do apaixonado por futebol. Corrói assim a igualdade em vez de a promover: cada um tem o estilo de vida que prefere, mas um vê o seu rendimento aumentado e o outro vê o seu rendimento diminuído através dos impostos com que subsidia o outro. Rawls afirma que a sua teoria da justiça tem a preocupação de regular as injustiças que resultam das circunstâncias, e não das escolhas. Mas porque não faz a distinção entre desigualdades escolhidas e desigualdades não escolhidas, o princípio da diferença viola a tua intuição de que é justo que cada um seja responsável pelos custos das suas escolhas. A não ser assim, que sentido fazem ainda o esforço e a ambição das nossas escolhas pessoais?
As duas objecções precedentes foram apresentadas pelo filósofo Ronald Dworkin. Dada a sua importância central, Dworkin formulou uma teoria que visa explicitamente dar-lhes resposta.

Faustino Vaz

domingo, 18 de janeiro de 2009

A teoria da justiça de John Rawls iii


Parte III
O argumento do contrato social hipotético
Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a tua concepção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser favorecido ou desfavorecido.
Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objectivos teremos, há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais. Os bens primários sociais são directamente distribuídos pelas instituições sociais e incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não directamente distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais distribuam directamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são instituições sociais.
Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de futebol justo, a pessoa que estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens sociais primários em mundos só com três pessoas:
Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.
Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível? Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que procura maximizar o mínimo. (Repara que a soma total de bens sociais do mundo 1 é 20, ao passo que no mundo 3 a soma total é apenas 16. Por outras palavras, o mundo 3 é menos rico do que o mundo 1, mas mais igualitário.) Nessa medida, defende que devemos escolher, de entre todos as situações possíveis, aquela em que a pessoa menos favorecida fica melhor em termos de distribuição de bens primários. É verdade que os outros dois padrões de distribuição têm uma utilidade média mais alta. (A utilidade média obtém-se somando a riqueza total e dividindo-a pelas pessoas existentes. A utilidade média do mundo 1 é 6,6 e a do mundo 3 é de apenas 5,3.) Todavia, como só tens uma vida para viver e nada sabes sobre qual será a tua posição mais provável nos outros dois padrões, a escolha do mundo 3 é mais racional e ao mesmo tempo mais compatível com as tuas intuições de igualdade e justiça. E o que diz o princípio da diferença? Diz precisamente que a sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto as desigualdades económicas e sociais que beneficiam os menos favorecidos. Afinal, parece que nenhuma das desigualdades dos mundos 1 e 2 traz benefícios para os menos favorecidos.

Faustino Vaz

sábado, 17 de janeiro de 2009

A teoria da justiça de John Rawls ii


Parte II
Estes três princípios formam a concepção de justiça de Rawls. Mas por si só estes princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades, são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te serem cobrados impostos.
Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma desigualdade de liberdade, oportunidade ou rendimento será permitida se beneficiar os menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias. Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.
As liberdades básicas a que Rawls dá atenção são os direitos civis e políticos reconhecidos nas democracias liberais, como a liberdade de expressão, o direito à justiça e à mobilidade, o direito de votar e de ser candidato a cargos públicos.
A parte mais disputável da teoria de Rawls é a que diz respeito à exigência de distribuição justa de recursos económicos — o que se compreende. Uma vez resolvido o problema dos direitos e liberdades básicas nas sociedades democráticas liberais, o grande problema com que estas sociedades se deparam é o de saber como devem ser distribuídos os recursos económicos — trata-se do problema da justiça distributiva. Ora, como essa exigência de distribuição justa é expressa pelo princípio da diferença, serão submetidos à tua avaliação crítica os argumentos de Rawls em defesa desse princípio.
Argumentos
Rawls apresenta dois argumentos a favor do princípio da diferença: o argumento intuitivo da igualdade de oportunidades e o argumento do contrato social hipotético.
O argumento intuitivo da igualdade de oportunidades
Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco. Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades actuais a ideia de que as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a maioria pensa.
Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão: reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se for determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.
O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.
Faustino Vaz

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A teoria da justiça de John Rawls


Problema
Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro e falta de escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não permite fazer mais do que uma refeição por dia; jovens que não têm a menor possibilidade de adquirir pelo menos a escolaridade básica; cidadãos que estão presos por terem defendido as suas ideias. Perante casos destes sentimos que as nossas intuições morais de justiça e igualdade não são respeitadas. Surge assim a pergunta: Como é possível uma sociedade justa? Este problema pode ter formulações mais precisas. Uma delas é a seguinte: Como deve uma sociedade distribuir os seus bens? Qual é a maneira eticamente correcta de o fazer? Trata-se do problema da justiça distributiva. A pergunta que o formula é a seguinte: Quais são os princípios mais gerais que regulam a justiça distributiva? A teoria da justiça de John Rawls é a resposta mais influente a este problema. Esta lição irá sujeitar à tua avaliação crítica os argumentos em que se apoia e algumas objecções que enfrenta.
Teoria
A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reacção ao utilitarismo clássico. De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres parecem em princípio justificados. Mas na prática o utilitarismo prefere uma distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta última aumentará substancialmente. Isto compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade marginal do dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se "utilidade marginal" ao benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício bruto: achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos correctos acerca da igualdade, Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade não é boa em si — é boa apenas porque produz a maior felicidade total.
Por consequência, o ponto de partida de Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls parte então de uma concepção geral de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os bens sociais primários — liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases sociais da auto-estima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe essa desigualdade. Por exemplo, pode ser preciso pagar mais dinheiro aos professores para os incentivar a estudar durante mais tempo, diminuindo assim a taxa de reprovações. As desigualdades serão proibidas se diminuírem a tua parte igual de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio aos menos favorecidos, estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que sacrificam e não promovem os seus interesses.
Mas esta concepção geral ainda não é uma teoria da justiça satisfatória. A razão é que a ideia em que se baseia não impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais distribuídos. Por exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a desempregados que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de oportunidades se ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de completarem a escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma sociedade garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus cidadãos e ao mesmo tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma escola da área de residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da sua área de residência por ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito entre a igualdade de oportunidades no acesso à educação e a liberdade de escolher a escola que cada um acha melhor.
Como podes ver, a concepção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro, é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua concepção geral em três princípios:
Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.
Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza, excepto se a existência de desigualdades económicas e sociais beneficiar os menos favorecidos.
Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades.

Faustino Vaz

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

TERRORISMO ANTIGO E TERRORISMO MODERNO


Tanto o terrorismo antigo como o moderno recusam-se a seguir as regras ocidentais da guerra que distinguem combatentes de não combatentes. O terrorismo não se pode fazer valer contra o poder de fogo de regimes estabelecidos, mas tem de lutar nas sombras, usando o engano, a surpresa e mesmo a violência desproporcionada contra o seu inimigo. Neste sentido, o terrorismo é a arma dos fracos. Tanto o terrorismo antigo como o moderno pretendem usar a violência para incutir o medo e o terror no coração do inimigo, mas há diferenças. O terrorismo antigo é o tipo de terrorismo que caracterizou a Europa e a Ásia durante anos antes do 11 de Setembro – o IRA; os separatistas bascos; o Congresso Nacional Africano; o Grupo Stern, Irgun e Haganah dos anos 40; o início da OLP; os rebeldes argelinos; o grupo alemão Baader-Meinhof e outros do mesmo género. O terrorismo antigo coloca limites à sua violência; por exemplo, o IRA abstinha-se de colocar bombas no metro de Londres e escolhia cuidadosamente os seus alvos. O terrorismo tradicional é fundamentalmente local e está preocupado com a ideologia nacionalista tradicional, procurando instaurar um Estado onde julga existir a necessidade de independência nacional. O terrorismo moderno é muito diferente. É a criação do globalismo, a interdependência do florescimento económico, cultural e político no mundo moderno. É em grande medida uma reacção islâmica contra o secularismo ocidental e aquilo que o Islão vê como decadência ocidental e desrespeito pelo Islão. Incluído neste tipo de terrorismo estão grupos como a Al-Qaida, um conjunto vagamente de organizações islâmicas; o Grupo Islâmico Armado (GIA); a Jihad Islâmica; o Hezbollah; o Hamas, a Organização Abu Nidal (OAN); a Frente Mundial Islâmica pela Jihad contra os Judeus e os Cruzados; e o Movimento Jihad Palestino Islâmico (JPI).
POJMAN, Louis, Terrorismo, Direitos Humanos e a Apologia do Governo Mundial, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, pp. 39-41

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Kant: o princípio da acção moral ii


Parte II
O princípio da universalidade
A teoria moral de Kant concilia a ideia de que os deveres morais são criações dos indivíduos e a ideia de que a moral é universal, comum a todos. Esta ideia pode surpreender-nos: não é verdade que "cada cabeça, cada sentença"?
A acção correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal. Como? Abstraindo dos seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses e pensa imparcialmente faz o mesmo: é honesta e devolve os 50 €. Aplica a mesma ideia a deveres morais comuns como "Cumpre as promessas", "Paga o que deves", "Sê leal", "Não roubes" e verifica, com Kant, que só o interesse e a parcialidade do agente podem levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos segundo uma perspectiva universal e aprovamo-las. Kant exprimiu esta ideia numa fórmula conhecida por princípio da universalizabilidade:
"Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal."
Uma máxima é uma regra que deve valer para certos tipos de acção e será moral ou imoral consoante esteja ou não de acordo com o princípio moral, que é uma regra que deve valer para todas as acções. A máxima da acção a) poderia enunciar-se assim "Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro ao seu dono." Poderia Silva querer que ela fosse universalmente acatada? Não, porque a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas terrível em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados… Tenta transformar outras violações dos deveres em máximas e pergunta se podes querer que todos as cumpram. Pode o ladrão querer que todos roubem quando a oportunidade surge? Podes querer que todos façam promessas sem a intenção de cumprir?
O princípio da autonomia
Se juntares agora o princípio da universalizabilidade e o esclarecimento da origem dos deveres, compreenderás a ideia surpreendente de Kant de que nas decisões morais nós somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais.
Esta ideia também pode parecer estranha porque nos parece que os deveres não estiveram à nossa espera para serem criados. Pensamos que são as tradições que constituem listas de deveres apoiadas em sistemas de punições e recompensas. Mas, aceitar esta teoria implica afirmar que a acção c) é impossível porque, nesse caso, Silva só poderia agir por causa do seu interesse em evitar punições ou de ser recompensado e, em consequência, a nossa aprovação moral de c) não teria sentido. Se aceitarmos os princípios já expostos, conclui Kant, aceitamos que em cada juízo ou decisão moral, o sujeito determina o dever. O facto de esses deveres coincidirem com alguns dos deveres tradicionais explica-se pela universalidade da razão. Kant sublinhou esta ideia de autonomia do sujeito em outras fórmulas do princípio moral:
"Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza."
"Age… de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal."
A fórmula da universalizabilidade ainda poderia sugerir que quando decide moralmente, o sujeito escolhe entre máximas que ele não criou mas que já estão disponíveis. A novidade mais notória destas fórmulas está no facto de acentuarem a autonomia do sujeito: o sujeito deve obedecer apenas a regras que criou, ao mesmo tempo, para si mesmo e para todos os seres racionais.
O princípio do respeito pela pessoa
Perguntemos como é que, em cada um dos casos a), b) e c), as pessoas são tratadas.
Em a), Silva usou o outro como meio, como se a outra pessoa fosse uma coisa ou instrumento, para o aumento directo da sua fortuna. Em b), Silva usou a outra pessoa como meio de marketing e propaganda. Nestes dois casos, ao mesmo tempo que usou a outra pessoa apenas como meio, Silva usou-se como meio, abdicando da sua autonomia para favorecer impulsos e interesses que o escravizam. Que quer dizer "usar-se como meio"? Silva é uma pessoa, um ser autónomo. O que constitui esta pessoalidade ou autonomia é a capacidade de pensar e decidir por si. Mas nos casos a) e b) usou estas capacidades para servir fins ditados pelo interesse. Usar-se como meio é usar a sua autonomia para a perder.
Em c), Silva não tratou a outra pessoa como meio, tratou-a como sendo um fim. Devemos esclarecer esta ideia.
Se a devolução dos 50€ não visou servir qualquer interesse, então para quê fazê-lo? Qual é a sua finalidade? A finalidade, já vimos, foi a de cumprir o dever pelo dever. Mas isso, também já vimos, é, ao mesmo tempo, definir a única legislação adequada a qualquer a pessoa, ou seja, a todo o ser racional, capaz de ultrapassar interesses para pensar e decidir por si. Assim, cumprindo o dever que deu a si mesmo, Silva respeita todos os seres racionais, incluindo, claro, tanto o próprio Silva como a pessoa do seu cliente. O mesmo seria dizer que respeitando a pessoa do seu cliente, Silva respeita-se e respeita todos os seres racionais, tomando-os como fins da sua acção.
Kant sintetizou o seu pensamento em outra fórmula
"Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio."
Nota que a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras, porque se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe Silva de usar os seus clientes para prosperar, mas se Silva enganar nos preços e não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.

Júlio Sameiro
Retirado de http://www.filedu.com/

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Kant: o princípio da acção moral


A teoria ética de Kant oferece-nos um princípio da moral que deve poder ser aplicado a todas as questões morais. Kant enuncia-o de diferentes maneiras com o objectivo de esclarecer as suas implicações. Partiremos de um caso simples, de senso comum, para esclarecer essas diferentes formulações:
Silva reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50 €. Apanhou-a e … que fez?
Avaliemos três decisões possíveis de Silva
a) Ficou com os 50 €.
b) Devolveu os 50 € para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.
c) Devolveu os 50 € pelo simples facto de pertencerem ao cliente.
O princípio do desinteresse
A acção a) é claramente imoral. Silva ficou com os 50 € por causa do seu interesse. Quanto à acção b), o senso comum diria que é hipócrita ou interesseira, por Silva devolver os 50 € apenas por isso ser do seu interesse. De facto, o princípio da decisão em b) foi o mesmo que em a) ― o interesse. Pôr o seu interesse acima de tudo, como princípio das acções, é imoral. Assim, só a acção c) é moralmente correcta, já que Silva ultrapassou os seus interesses e agiu de forma desinteressada.
O nosso juízo sobre cada uma das possíveis decisões de Silva foi guiado pelo princípio do desinteresse:
"Age desinteressadamente."
A teoria de Kant não impede que a pessoa satisfaça os seus interesses ― afinal também era do interesse de Silva decidir o que fazer com os 50 € e, apesar de não ter sido esse o motivo da acção c), também ganhou a consideração do cliente. O acto deve ser desinteressado mas se, para além disso, satisfizer interesses, tanto melhor para o agente; se contrariar interesses, paciência.
O princípio da imparcialidade
Podemos enunciar o princípio do desinteresse de outra maneira:
"Decide com imparcialidade."
Aprovamos moralmente as decisões e as acções quando o sujeito, como no caso c), decide como um juiz imparcial. Nos casos a) e b) Silva permitiu que os seus interesses lhe roubassem a imparcialidade.
É provável que Kant, neste aspecto, se afaste um pouco do senso comum. O senso comum pode pensar que "imparcialidade" será considerar igualmente "cada um dos interesses envolvidos" ou, então, ajuizar sobre cada caso atendendo ao "interesse de todos". Mas os "interesses das partes envolvidas" podem ser igualmente imorais. Quanto ao “interesse de todos” pode nem existir (afinal é típico os interesses estarem em conflito…) e, se existir, será, como todos os interesses, contingente, caprichoso como a humanidade, e a moral não pode estar sujeita a caprichos. Imparcialidade para Kant significa decidir independentemente de quaisquer interesses. De facto, Kant pensava, em parte de acordo com o senso comum, que o progresso moral também ajuda à felicidade e aos interesses mais dignos das pessoas. Mas ele sabe que a harmonia entre a moral e a felicidade não é certa e que se a acção moral gerar felicidade será por acréscimo ou efeito secundário.
O princípio do dever
Se a pessoa não deve agir por interesse, então deve agir por obrigação, por dever. A acção a) foi em tudo contrária ao dever. A acção b) está em conformidade com o dever, porque Silva fez o que deveria ter feito, mas foi feita por interesse e não por dever. Só a acção c), a única a ter toda a nossa aprovação moral, foi feita por dever. Assim, o princípio da moralidade pode ser enunciado deste modo:
"Age apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou fins."
Devemos ter em mente que falamos de decisões e acções morais. Se um papel inútil na minha secretária me incomodar, é do meu interesse deitá-lo para a reciclagem e, ao fazê-lo, não estou a violar o princípio dos deveres; mas se atirar o papel para o quintal do vizinho, deixo de cumprir o dever de respeitar as pessoas…
Os deveres morais e as convenções sociais
Os princípios do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e têm as mesmas implicações. Isto permite esclarecer o que são deveres morais:
O dever é uma regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial.
Assim, podemos evitar o erro, bastante difundido, de supor que os deveres morais são criações ou convenções sociais. Dois argumentos contribuem para este erro. O primeiro parte do facto de alguns dos "deveres morais" de uma sociedade serem diferentes dos de outras, para concluir, erradamente, que todos os deveres são convenções sociais. O segundo argumento parte do facto de muitas vezes cumprirmos os deveres contrariados, como se fôssemos obrigados por uma autoridade externa, para concluir que não podem ter origem em nós mas sim numa autoridade externa.
Ora, a teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é a ordem que damos a nós mesmos ("Sê honesto!" ― ordenou Silva a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever ("Mas os 50 € davam-me jeito…" ― hesitou Silva), explica porque o dever parece ter uma origem numa autoridade exterior que nos contraria.

Júlio Sameiro

domingo, 11 de janeiro de 2009

A ARTE NÃO REPRODUZ A SUA ÉPOCA


A Arte não é expressão de nada, a não ser de si mesma. Tem uma vida independente, tal como o Pensamento a tem, e desenvolve-se estritamente por caminhos próprios. Não é necessariamente realista numa época de realismo, nem espiritual numa época de fé. Longe de ser uma criação do seu tempo, está normalmente em oposição frontal a ele, e a única história que preserva para nós é a história da sua própria evolução. Por vezes, retrocede sobre si mesma, e faz reviver alguma forma antiga, como aconteceu no movimento arcaizante da arte grega tardia, ou no movimento pré-rafaelita dos nosso dias. Noutras palavras, antecipa por completo a sua época, e produz num dado século obras que exigirão um outro século para serem percebidas, apreciadas e fruídas. Em circunstância alguma reproduz a sua época. Passar da arte de uma época à época em si é o grande erro que todos os historiadores cometem.
A segunda doutrina é esta. Toda a má arte nasce de um retorno à Vida e à Natureza, e da elevação destas a ideais. A Vida e a Natureza podem por vezes ser usadas como parte da matéria-prima da Arte, mas, antes de constituírem um benefício real para ela, têm de ser traduzidas em convenções artísticas. No momento em que a Arte abandona o seu meio imaginativo, abandona tudo. Como método o Realismo é um fracasso completo, e as duas coisas que todo o artista deverá evitar são a modernidade da forma e a modernidade do assunto.
A terceira doutrina é que a Vida imita a Arte muito mais do que a Arte imita a Vida. Isto resulta não apenas do instinto imitativo da Vida, mas do facto de o fim confesso da Vida ser o de encontrar expressões, e de a Arte lhe oferecer algumas formas belas através das quais poderá realizar a sua energia. Esta é uma teoria nunca antes exposta, mas que é extremamente fértil, e lança uma luz inteiramente nova sobre a História da Arte.
Segue-se, como corolário disto, que também a Natureza exterior imita a Arte. Os únicos feitos que é capaz de mostrar-nos são efeitos que veríamos antes na poesia, ou em pinturas. É este o segredo do encanto da Natureza, assim como a explicação da sua debilidade.
WILDE, Oscar, Intenções, 3ª edição, 2006. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 50-51

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Deontologia ii


Parte II
Além disso, os deontologistas moderados que explicam as opções em termos de custo para o agente estão sujeitos a uma objecção delicada. Se, por um lado, o custo para o agente pode prevalecer sobre o bem, e, por outro lado, o bem pode prevalecer sobre as restrições, por que não há-de o custo para o agente poder prevalecer sobre as restrições em algumas circunstâncias? Deste modo, o deontologista moderado vê-se ameaçado pela conclusão pouco aliciante de que uma restrição pode ceder em virtude de a sua observância representar um custo muito elevado para o agente. A esta luz, poder-se-ia alegar que é permissível um agente assassinar uma pessoa inocente quando a existência dessa pessoa constitui um enorme obstáculo para o seu projecto de vida.
Além de se decidir quanto à força das restrições, o deontologista tem de delimitar o seu alcance, pois a ausência de uma delimitação apropriada produz a ameaça de uma ética paralisante — interpretada sem quaisquer limites, a restrição contra maltratar, por exemplo, proibiria toda a conduta que pudesse dar origem de alguma maneira à morte de uma pessoa inocente. As tentativas de clarificação do alcance das restrições mais debatidas assentam em grande medida nas distinções fazer/permitir e intenção/previsão.
Quem se baseia na primeira distinção delimita a restrição contra maltratar de uma maneira que resulta na proibição de matar pessoas inocentes, mas não na proibição de deixar morrer pessoas inocentes. No entanto, a diferença entre matar e deixar morrer — ou, de um modo mais geral, entre infligir um mal a alguém e permitir que alguém sofra um mal — está longe de ser clara e tem-se revelado resistente à análise. Por exemplo, o médico que desliga a máquina do paciente em coma irreversível está a matá-lo ou a deixá-lo morrer? Além disso, as análises mais promissoras têm alimentado um forte cepticismo quanto à relevância moral da distinção fazer/permitir. A análise de Jonathan Bennett (1995), por exemplo, diz-nos aproximadamente o seguinte: afirmar que um agente provoca um dado resultado é dizer que entre todos os seus movimentos possíveis relativamente poucos dariam origem ao resultado; afirmar, pelo contrário, que o agente permite que o resultado se verifique é dizer que entre os seus movimentos possíveis quase todos dariam origem a esse resultado. Se a distinção fazer/permitir consiste essencialmente nesta diferença, como poderá alguma vez ser moralmente significativa?
Para alguns deontologistas, como Thomas Nagel (1986), a chave para uma delimitação apropriada das restrições reside antes na distinção intenção/previsão. Esta distinção separa dois tipos de efeitos da conduta: por um lado, temos aqueles efeitos que o agente tem a intenção de produzir, isto é, os efeitos pretendidos como um fim ou como um meio para outro fim; por outro lado, temos os efeitos que o agente acredita que resultarão da sua conduta ainda que não tenha a intenção de os produzir, isto é, os efeitos meramente previstos. Os deontologistas que subscrevem a relevância moral desta distinção pensam pelo menos o seguinte: em igualdade de circunstâncias, é mais objectável pretender um mal enquanto meio para um bem do que dar origem a um mal prevendo-o como simples efeito colateral do meio utilizado para alcançar o bem. Esta tese, aliás, constitui o elemento mais controverso da Doutrina do Duplo Efeito. Quem, como Nagel, delimita o alcance das restrições em conformidade com esta doutrina pensa que para violar a restrição contra maltratar é preciso infligir intencionalmente um mal a alguém inocente. No contexto da guerra, para indicar um exemplo muito discutido, o agente que bombardeia civis de modo a apressar a rendição do inimigo viola esta restrição, mas o agente que pretende apenas bombardear alvos militares para o mesmo fim não a violará mesmo que saiba que o bombardeamento resultará na morte de civis. Tal como a distinção fazer/permitir, também a distinção intenção/previsão tem resistido às tentativas de clarificação, sobretudo devido à dificuldade de encontrar uma maneira satisfatória de demarcar aquilo que é pretendido enquanto meio daquilo que resulta do meio escolhido como simples efeito colateral. E a relevância moral da distinção também tem sido fortemente questionada, sendo de destacar a este respeito as discussões de Kagan (1989) e Bennett (1995). (O primeiro, aliás, desenvolve a crítica mais aprofundada e sistemática a todo o programa deontológico de justificar restrições e opções.)
Note-se que, ao limitar o alcance das restrições através das distinções indicadas, o
deontologista não está a afirmar que é permissível dar origem a quaisquer males desde que estes sejam meramente permitidos ou meramente previstos. Se um curso de acção viola uma restrição, então é pelo menos prima facie errado e a simples ponderação das consequências não é suficiente para o tornar permissível, mas um curso de acção que não viola qualquer restrição pode ainda assim ser profundamente errado por outras razões — por exemplo, por dar origem a um mal significativo facilmente evitável.
Além da restrição geral contra maltratar, os deontologistas costumam reconhecer restrições contra mentir e contra quebrar promessas, bem como restrições decorrentes de compromissos e papéis relativos ao próprio agente. A força destas restrições é explicada independentemente da utilidade da sua observância geral. Um problema central é o de saber se algumas destas restrições podem traduzir-se em deveres do agente para consigo próprio; outro problema importante, decisivo para clarificar uma questão como a da moralidade da eutanásia, é o de saber se em algumas circunstâncias o consentimento pode fazer cessar força de uma restrição.
Pode-se distinguir duas estratégias gerais para justificar uma visão deontológica da ética. A primeira consiste em procurar um fundamento adequado para as restrições e opções, isto é, em mostrar que estas decorrem de princípios mais gerais racionalmente irrecusáveis. Apelando à noção de respeito pelos outros enquanto criaturas racionais, muitos deontologistas contemporâneos, como Nozick, Fried e Donagan, têm encontrado em Kant uma fonte permanente de inspiração. O contratualismo, embora por tradição esteja mais associado à filosofia política, também tem inspirado alguns esforços de encontrar fundamentos para a deontologia. A segunda estratégia de justificação — que, note-se, não é incompatível com a primeira — consiste em tentar mostrar que temos de adoptar uma perspectiva deontológica para gerar um acordo com as nossas intuições morais relativas a situações actuais ou hipotéticas. O influente ensaio de Judith Thomson (1985) exemplifica esta estratégia e mostra-nos como os próprios deontologistas divergem significativamente entre si quanto à maneira adequada de obter tal acordo.
Pedro Galvão

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Deontologia


A perspectiva deontológica da ética, por oposição ao consequencialismo, não concebe os agentes morais como meros instrumentos para a promoção de estados de coisas valiosos numa perspectiva impessoal. Para o deontologista, a moralidade não depende unicamente das consequências — existem outros factores que determinam a obrigatoriedade, permissividade ou impermissividade dos actos. Interessa primariamente aquilo que fazemos e não tanto aquilo que acontece no mundo, e como agentes morais temos a prioridade de evitar praticar o mal. Encontramos na ética de Kant a expressão clássica mais influente da deontologia.
Os deontologistas afastam-se de duas maneiras da visão estritamente consequencialista da ética. Por um lado, reconhecem opções (ou prerrogativas) centradas no agente, isto é, sustentam que os agentes morais não estão sob a obrigação permanente de maximizar o bem. Cada agente pode desenvolver projectos e compromissos puramente pessoais, utilizando os seus recursos sem atender ao maior bem. Embora costumem admitir um dever de beneficência, os deontologistas atribuem-lhe um alcance limitado: este dever rivaliza com outros deveres pelo menos tão fortes e não impõe exigências que ameacem a autonomia ou integridade do agente. (Nesta perspectiva há espaço para actos superrogatórios, ou seja, para actos louváveis nos quais o agente vai além daquilo que lhe era exigível em termos de promoção do bem.) Uma maneira influente de explicar a existência e os limites das opções centra-se na noção pouco precisa de custo para o agente. Quem recorre a esta noção pensa que, apesar de não termos a obrigação de maximizar o bem, é impermissível desperdiçar a oportunidade de produzir um bem significativo quando isso implica um custo insignificante para o agente.
Além de opções, os deontologistas reconhecem, por outro lado, restrições centradas no agente, admitindo no mínimo uma restrição geral contra maltratar os outros.
O dever de não matar pessoas inocentes é talvez a expressão mais forte e consensual desta restrição. Entender este dever como uma restrição centrada no agente implica defender não só que é errado matar uma pessoa inocente para benefício dos outros, mas também que é errado matá-la mesmo que isso seja necessário para impedir que outros agentes matem pessoas inocentes para benefício dos outros. Como Robert Nozick (1974) sugeriu, a racionalidade das restrições é questionável: se não violar uma restrição R é assim tão importante, como pode a preocupação em não violar R levar à recusa de violar R mesmo quando isso permitiria evitar um maior número de violações de R?
Além de enfrentarem o problema de justificar a existência de restrições, os deontologistas precisam de clarificar a sua força respondendo ao problema de saber se estas são ou não absolutas. Os absolutistas, como Kant, defendem que pelo menos algumas restrições nunca podem ser violadas — pensam, por exemplo, que matar uma pessoa inocente é errado sejam quais forem as consequências de não matar uma pessoa inocente. As situações em que o agente terá de violar uma restrição faça o que fizer constituem uma possibilidade embaraçosa para o absolutista, pois aparentemente nessas situações não haverá uma maneira correcta de decidir o que fazer. Além disso, o absolutismo parece ter consequências profundamente contra-intuitivas — a restrição contra maltratar parece implicar, por exemplo, que seria errado matar uma pessoa inocente mesmo que isso fosse necessário para evitar a morte de milhões de pessoas.
Perante este tipo de objecção, alguns absolutistas, como Alan Donagan (1977), sugerem que tais consequências contra-intuitivas decorrem de cenários demasiado fantasiosos para serem levados a sério no pensamento moral; outros tentam mitigar de alguma maneira o carácter absoluto das restrições. Charles Fried (1978), por exemplo, sustenta que em situações catastróficas o próprio pensamento moral colapsa e, portanto, aquilo que o agente fizer não será moralmente certo nem errado.
Os deontologistas moderados, como David Ross (1930) e muito outros, acreditam que as restrições dão origem não a deveres absolutos, mas a deveres prima facie. Isto significa que em algumas circunstâncias as restrições podem ceder — por exemplo, se o bem a realizar (ou o mal a mitigar) for suficientemente significativo, a restrição cederá e tornar-se-á permissível violá-la. Embora tenha a vantagem de não levar a um beco sem saída em casos de conflitos de deveres, esta perspectiva parece deixar-nos excessivamente entregues aos caprichos da intuição moral. Afinal, como poderemos determinar se o bem é suficientemente significativo ou qual o dever prima facie mais forte numa dada ocasião?

Pedro Galvão

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A PUBLICIDADE É O OXIGÉNIO DO TERRORISMO


O terrorismo existiu desde tempos imemoriais, mas com o aparecimento da tecnologia moderna – incluindo o transporte rápido, a bomba, o avião e a guerra química, biológica, radiológica e nuclear – a ameaça à sociedade aumentou exponencialmente. Além disso, a televisão e a comunicação de massas deu, em geral, ampla publicidade ao terrorismo. A publicidade é o oxigénio do terrorismo. Os actos terroristas exibidos em estações de televisão e de rádio, como na CNN, espalhados por todo o mundo, prendem a nossa atenção e este aspecto não foi esquecido pelos líderes terroristas.
POJMAN, Louis, Terrorismo, Direitos Humanos e a Apologia do Governo Mundial, 1ª edição, 2007. Lisboa: Editorial Bizâncio, p. 35

domingo, 4 de janeiro de 2009

Consequencialismo


O consequencialismo é a perspectiva normativa segundo a qual as consequências das nossas opções constituem o único padrão fundamental da ética. Esta perspectiva corresponde a um conjunto muito abrangente e diversificado de teorias da obrigação moral, do certo e do errado, e não há um acordo perfeito quanto às condições que uma teoria tem de satisfazer para ser classificada como «consequencialista». (O egoísmo ético, por exemplo, nem sempre é considerado uma versão de consequencialismo.) No entanto, as teorias consequencialistas mais puras exibem seguramente três características importantes. Em primeiro lugar, aplicam-se directamente a actos individuais. Em segundo lugar, prescrevem a maximização do bem, isto é, afirmam que os agentes morais estão sob a obrigação permanente e ilimitada de dar origem aos melhores estados de coisas ou situações. Em terceiro lugar, pressupõem uma teoria do valor que resulta numa avaliação dos estados de coisas em termos estritamente impessoais.
Pedro Galvão
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sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A NATUREZA IMITA A ARTE


Tudo o que desejo sublinhar é o princípio geral segundo o qual a Vida imita a Arte muito mais do que a Arte imita a Vida, e estou certo de que, se pensares a sério na questão, verás que é verdade. A Vida ergue um espelho em frente à Arte, e, ou reproduz algum tipo estranho imaginado por qualquer pintor ou escultor, ou realiza de facto aquilo que foi sonhado na ficção. De um ponto de vista científico, a base da vida – a energia da vida, como lhe chamaria Aristóteles – é simplesmente o desejo de expressão, e a Arte está continuamente a apresentar várias formas das quais uma tal expressão pode ser conseguida. A Vida apossa-se delas e usa-as, mesmo se em detrimento próprio.
A Natureza é, não em menor grau que a vida, uma imitação da Arte.
De onde, se não dos Impressionistas, vieram esses maravilhosos nevoeiros castanhos que vemos cair sobre as nossas ruas, esbatendo os candeeiros a gás e tornando as suas casas monstruosas? A Natureza não é nenhuma grande mãe que nos tenha gerado. É uma criação nossa. É no nosso cérebro que ela ganha vida. As coisas existem porque as vemos, e aquilo que vemos, e o modo como o vemos, depende das Artes que nos tiverem influenciado. Olhar para uma coisa é bem diferente de ver uma coisa. Ninguém vê uma coisa até ver a sua beleza. É nesse momento, e unicamente nesse momento, que ela se torna existente. Actualmente, as pessoas vêem nevoeiros, não porque haja nevoeiros, mas porque poetas e pintores lhes ensinaram o misterioso encanto de tais efeitos.
WILDE, Oscar, Intenções, 3ª edição, 2006. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 40-42

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A teoria moral de Kant iv


Parte IV
Um problema do critério de universalizabilidade
Há um problema geral nos quatro exemplos de Kant — na verdade, há um problema no próprio critério de universalizabilidade. Um objecto singular exemplifica vários tipos. Isto significa que uma dada acção pode ser descrita como incorporando diferentes propriedades. Kant parece pressupor que cada acção incorpora apenas uma máxima, de maneira que podemos testar a moralidade de um acto universalizando a sua máxima. O problema é que há várias máximas que podem conduzir a uma determinada acção; algumas podem ser universalizadas, enquanto outras não.
Vejamos este problema no exemplo da promessa. Alguém tem de decidir se pede dinheiro emprestado prometendo que paga o empréstimo, embora não tenha a intenção de cumprir a promessa. O que significaria isto caso todos se comportassem assim? Uma maneira de descrever esta acção decorre da máxima "Faz uma promessa mesmo que tenhas a intenção de a quebrar". Kant afirma que universalizar esta máxima é impossível porque a proposição seguinte é uma contradição:
Todos fazem promessas mesmo que ninguém tenha a intenção de cumprir as promessas que faz.
Todavia, também podemos descrever a acção do homem como decorrendo de uma máxima bastante diferente: "Não faças promessas a menos que tenhas a intenção de as cumprir, excepto se estiveres numa situação de vida ou de morte e se a tua intenção de quebrar a promessa não for evidente para os outros". Universalizar esta máxima não conduz a contradição, uma vez que é perfeitamente possível que o mundo seja da seguinte maneira:
Todos fazem promessas e em geral as pessoas esperam cumprir as promessas. A excepção surge quando há uma enorme vantagem pessoal em fazer a promessa sem a intenção de a cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os outros.
Longe de ser impossível, esta generalização parece descrever de maneira bastante exacta o mundo em que efectivamente vivemos.
Repara na semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um dos problemas do utilitarismo das regras. "O que aconteceria se todos realizassem a acção?" é uma questão que o utilitarismo das regras pensa ser importante na avaliação das propriedades morais de uma acção. A questão de Kant é diferente; ele pergunta "Podem todos realizar a acção?" ou "Posso desejar que todos realizem a acção?" Embora as questões sejam diferentes, problemas semelhantes derivam do facto de haver múltiplas maneiras de descrever qualquer acção.
O critério de universalizabilidade parece plausível se considerarmos seriamente a analogia entre as leis morais e as leis científicas. Ambas têm de ser universais e impessoais. Mas outra comparação entre estas duas ideias diminui a plausibilidade de pensar que o critério de universalizabilidade tem condições para resultar.
As leis científicas têm de ser universais mas a explicação verdadeira de um fenómeno específico não pode ser derivada a priori. Por si só, a razão não pode dizer-me por que descreve a Terra uma órbita elíptica em torno do Sol, ainda que eu tenha o pressuposto de que a explicação deste facto tenha de ser verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado, Kant defendeu que numa situação específica o que está certo fazer é ditado pela exigência racional de universalizabilidade.
Evidentemente que um facto importante acerca da moralidade é que, se uma acção particular está certa para mim, então está certa para qualquer pessoa numa situação semelhante. Esta é a ideia de que as leis morais — os princípios gerais que ditam o que está certo fazer — são universais e impessoais. O problema é que esta exigência não é suficiente para mostrar que generalizações morais são verdadeiras. Se assim é, a analogia entre leis científicas e leis morais tem implicações diferentes daquelas que Kant tentou desenvolver.
Kant: as pessoas são fins em si
Kant pensava que uma importante consequência do teste de universalizabilidade é que devemos tratar as pessoas como fins em si e não como meios. Kant queria dizer com isto que não devemos tratar as pessoas como meios para fins que elas racionalmente não poderiam consentir. Pensava que este princípio proíbe a escravatura. E diria o mesmo acerca da punição de alguém por um crime que não cometeu, ainda que isso aplacasse uma perigosa multidão. A teoria kantiana parece fornecer bases mais sólidas do que o utilitarismo para a ideia de que as pessoas têm direitos que não podem ser ultrapassados por considerações de utilidade. Não é a maximização da felicidade que está em jogo na teoria de Kant. É de esperar que a razão por si só dite princípios de equidade, imparcialidade e justiça.
Embora Kant preceda os utilitaristas, a sua teoria parece ter sido concebida para corrigir os defeitos do utilitarismo. A ideia de que as pessoas têm direitos é uma correcção plausível da ideia de que qualquer aspecto da vida de uma pessoa tem de passar o teste da maximização da felicidade global. Todavia, a teoria de Kant enfrenta sérias dificuldades lógicas. E o carácter absoluto das suas declarações parece ser bastante questionável para as convicções morais fortemente defendidas pelo senso comum. Será de todo plausível pensar que as promessas devem ser sempre cumpridas — que nunca devemos dizer uma mentira — sejam quais forem as consequências? Para além de sublinhar os defeitos nos argumentos que justificam estas ordens, devemos também sublinhar que estas exigências morais não devem receber em princípio uma justificação incondicional.
Se o critério da universalizabilidade falha a tentativa de estabelecer um procedimento para decidir que acções estão certas, e se os juízos morais de Kant acerca do cumprimento de promessas, suicídio e outras acções são implausíveis, que méritos tem a sua teoria ética? Muitos filósofos vêem na descrição do ponto de vista moral uma das contribuições notáveis e duradouras de Kant. Os desejos e as preferências podem impelir-nos a agir e estas acções podem produzir diferentes combinações de prazer e dor. Todavia, esta sequência de acontecimentos ocorre em criaturas — provavelmente vacas e cães — às quais nenhum golpe de imaginação atribui moralidade. O que distingue então a acção motivada pela moralidade da acção guiada pela inclinação, seja benevolente ou malevolente?
A esta pergunta Kant respondeu que a acção moral é guiada por princípios que têm um tipo especial de justificação racional. A linguagem comum talvez seja um pouco enganadora, uma vez que podemos falar do desejo de agir moralmente e do desejo de ter prazer ou vantagens como se ambos tivessem a mesma base. Mas Kant não pensava na determinação de agir por dever como uma inclinação entre outras. Ele via a moralidade e a inclinação como esferas inteiramente diferentes. Para identificar a coisa moralmente certa a fazer, a pessoa terá de pôr de lado as suas inclinações. Fixando a nossa atenção em leis universais e impessoais, podemos ter a esperança de diminuir o grau em que o interesse próprio distorce o nosso juízo a respeito do que devemos fazer.
Elliott Sober