sábado, 31 de maio de 2008

ACÇÃO BEM-SUCEDIDA E ACÇÃO FALHADA

Uma acção não é um acontecimento como um tremor de terra ou a queda de uma folha morta. A acção, tal como o acontecimento, gera uma modificação no mundo, mas esta modificação, por muito pequena que seja, jamais será anónima ou cega. Trata-se sempre da acção de alguém. Dizer que uma acção é intencional é também sublinhar que uma acção tem sempre uma finalidade. O agente não age por agir. Ele age por ou em vista de qualquer coisa, porque visa um resultado, porque o seu gesto tem um sentido, e o termo “sentido” deve ser entendido em todas as suas acepções, seja como percepção (órgão dos sentidos), como direcção (o fim visado) ou ainda como significação (aquilo que esse fim significa para o actor). Esse fim ou objectivo está incluído na nossa noção de acção.
Aos olhos da maioria dos homens, parece não restarem dúvidas de que também os símios, os burros ou as girafas são criaturas agentes. Outras entidades, como os extraterrestres, no caso de existirem, podem igualmente ser consideradas possíveis candidatos.
Há inúmeras situações que nos permitem ir mais longe na reflexão. Se o bom do Sérgio dá uma bofetada no Alberto quando visava a cara do Raul, esta bofetada é uma verdadeira acção, ainda que o objectivo do Sérgio não fosse esbofetear o Alberto, mas o Raul. Neste caso não se trata de uma não-acção ou de um acontecimento, mas de uma acção falhada, em resultado da ocorrência de um erro. Uma acção é bem-sucedida se o resultado obtido pelo gesto corresponde ao resultado esperado. Uma acção é falhada se o resultado obtido não lhe corresponde. Sublinhe-se, de seguida, que uma acção pode ter inúmeros efeitos colaterais. Com a ajuda de um martelo, o Paulo espeta um prego para pendurar um quadro na parede da sua sala. A martelada dada pelo Paulo espeta o prego efectivamente. Porém, a história não acaba aí. Esta martelada também provoca um barulho ensurdecedor, trespassa a parede, acorda e fura a orelha do vizinho do Paulo, esmaga o polegar do Paulo, faz jorrar gesso e sangue sobre o tapete da sala do Paulo e sobre o tapete do quarto do seu vizinho. Não há dúvida de que o Paulo alcançou o seu objectivo, mas as razões da sua martelada não coincidem com os efeitos provocados. Enfim, registe-se ainda, que há casos nos quais o objectivo visado é alcançado pelo actor sem que a causa da acção pelo qual o objectivo se cumpre coincida com o objectivo. Imaginemos que o Pedro queria matar a sua madrasta e que, atormentado pela ideia, se enfurece e inadvertidamente esmaga um peão disfarçado de palhaço que, por acaso, é a sua madrasta. O Pedro esmagou a sua madrasta e atingiu, portanto, o seu objectivo. Todavia, a causa dessa acção não coincide com o objectivo perseguido pelo Pedro. Pedro, ainda que quisesse liquidar a sua madrasta e efectivamente a tenha liquidado, não realizou a acção de liquidar a sua madrasta. “Ter feito” não significa “ter realizado uma acção”. Uma primeira conclusão parece ser a seguinte: o mesmo gesto fenomenológico pode ser ou não ser uma acção, a mesma acção numérica pode ser bem-sucedida ou falhada, uma acção pode provocar inúmeros efeitos colaterais, o objectivo perseguido pode ser atingido sem que a razão da acção que permite atingi-lo corresponda ao seu objectivo.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 85-89

COMO ESTUDAR A RELIGIÃO?

É praticamente impossível ser-se neutro na abordagem da religião, porque muitas pessoas consideram a própria neutralidade hostil. Quem não é por nós, é contra nós. E assim, como muito claramente a religião é importante para muitas pessoas, os investigadores quase nunca tentam sequer ser neutros; tendem a errar para o lado da deferência, pondo luvas de veludo. É isso ou hostilidade aberta. Por esta razão, tem-se registado um padrão lamentável no trabalho realizado. Usualmente, as pessoas que querem estudar a religião têm uma causa a defender. Pretendem defender a sua religião favorita dos críticos, ou querem demonstrar a irracionalidade e futilidade da religião, o que tende a infectar os seus métodos com tendenciosismos.
DENNET, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, p. 42

sexta-feira, 30 de maio de 2008

ACÇÃO E RESPONSABILIDADE

As acções “complexas” é que constituem um problema. Entendemos por acções complexas as que produzem efeitos sobre coisas (deslocação, manipulação, transformação, etc.). É o sentido ordinário de agir; actua-se sobre algo: diz-se então que agir é causar uma mudança. Na medida em que uma acção é idêntica às suas consequências, diz-se que o agente é o autor não só dos seus gestos imediatos, mas dos seus efeitos mais longínquos. A atribuição constitui então um problema porque o autor não está nas consequências longínquas como está no seu gesto imediato. De algum modo a acção separa-se do seu autor como a escrita separa o discurso da palavra e dá-lhe um destino distinto do seu autor.
Dizemos que alguém é responsável pelas consequências dos seus actos: dizemo-lo de todas as acções que têm um grau de complexidade suficiente para que se possam distinguir fases (a, b, c, …, n) ou partes e considera a fase inicial como causa da fase terminal (no sentido da atribuição da causalidade) pode então descrever-se a acção de duas maneiras: pode descrever-se como um todo e nomeá-la como tal – diz-se então “A fez X” (matar); mas pode também descrever-se a acção nomeando a parte inicial da acção (“a” = disparar um tiro) e chamar efeito à parte terminal (“n” = fazer morrer); diz-se então “a” causou “n” (causou a morte); assim a estrutura complexa da acção permite adscrever a responsabilidade em termos de causalidade.

RICOEUR, Paul, O Discurso da Acção, 1ª edição, 1988. Lisboa: Edições 70, pp.62-70

A RELAÇÃO ESPÍRITO – CORPO

O problema da relação entre a matéria e o pensamento entre o corpo e o espírito, entre o cérebro e a consciência, é uma fonte de perplexidade e um tema de controvérsia tipicamente filosófico. Várias respostas foram propostas, ainda que nenhuma provoque necessariamente maior adesão.
Entre os seres, uns parecem providos de espírito, outros não. Os cinzeiros, as bolas de neve, os ramos de salsa pertencem, inegavelmente, à segunda categoria. Os seres humanos, os símios, as chinchilas pertencem, inegavelmente, à primeira categoria. Esta distinção permite esclarecer a noção de espírito, que apenas remete para alguns tipos de actividade mental. Todo o ser que experimente algo do “interior” e a quem podemos razoavelmente atribuir propriedades mentais é dotado de espírito.
O ponto de partida do problema poderá ser o seguinte. Por um lado, o corpo e o espírito estão em estreita relação – um, exerce uma influência considerável sobre o outro. Por outro lado, parece possível imaginá-los funcionando autonomamente, independentemente um do outro.
A primeira afirmação, que sublinha a existência de interacções entre o corpo e o espírito, parece incontestável. Basta decidir esticar o braço esquerdo para que o meu braço esquerdo se estique. O mesmo acontece se eu decidir pôr a língua de fora ou voltar a cabeça. Reciprocamente, o meu corpo também influencia o meu espírito. Basta que bata com o dedo do pé numa porta para que sinta uma dor.
Tudo se passa como se o espírito condicionasse certos movimentos do corpo, e como se aquilo que acontece ao corpo pudesse condicionar certos estados ou acontecimentos mentais.
A segunda afirmação, que sublinha que o espírito e o corpo poderão funcionar um sem o outro, como duas realidades bem distintas, baseia-se em vários indícios. A crença numa existência autónoma do espírito funda-se no facto de que não é difícil imaginar que existimos no corpo de outro qualquer, ou sem corpo. Quanto à crença numa existência autónoma do corpo, ela baseia-se na hipótese do homem-zombie: um autómato humano sem a mais pequena das consciências não é inconcebível. Uma criatura desse género não experimentaria nada de “interior”, tal qual acontece como uma torradeira ou um qualquer brinquedo.
No entanto, se não é difícil imaginar com que se parecerá num corpo sem espírito – um elevador, um legume, um calhau -, o mesmo já não podemos dizer a propósito de um espírito sem corpo. Afinal, poder imaginar uma situação não é suficiente para que possamos afirmar que essa situação é possível.
Mas se parece natural aceitar que existem estas correspondências entre o espírito e o corpo via cérebro, já o mesmo não acontece se postularmos uma identidade estrita entre o cérebro e o espírito. Se a=b, então tudo o que é verdadeiro para a é verdadeiro para b. Dito de outro modo, se meu espírito=meu cérebro, então tudo o que pode ser dito do meu espírito poderá ser igualmente dito do meu cérebro. E isto não é o que se passa neste caso. O meu cérebro é, por natureza, objectivo, é um órgão, ou seja, um corpo localizado no espaço e no tempo. O meu espírito é, por natureza, subjectivo, não é um órgão, mas um ponto de vista. Se o meu cérebro fosse idêntico ao meu espírito, o que é objectivo seria subjectivo, o que constitui uma contradição nos termos. Defender que o cérebro é idêntico ao espírito significa acreditar que um livro é idêntico ao facto de lê-lo, o que parece absurdo.
Em conclusão, podemos afirmar, que o espírito, se é que posso dizê-lo, é entregue ao corpo e só dele depende. Todavia, não se reduz a isso.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 70-75

quinta-feira, 29 de maio de 2008



Iniciámos este blog a 6 de Maio, com a crença de que iríamos dar-lhe maior projecção para o próximo ano lectivo. E é o que tencionamos fazer. Mas é com alegria que constatamos que pouco tempo depois atingimos as mil visitas. Obrigado às pessoas que de vez em quando por cá passam. Deixem os vossos comentários acerca dos posts e algumas sugestões.

ACÇÕES DE BASE

É possível agora definir a acção de base. O conceito é introduzido por um argumento puramente lógico, e não por uma descrição fenomenológica. Nenhuma acção se identifica como pertencente intrinsecamente à base. O argumento é da forma: se algo se faz através de outra coisa distinta, então deve haver uma acção que se faz pura e simplesmente. De outro modo, nada se faria. Este argumento que requer uma análise acabada, funda-se na impossibilidade da regressão até ao infinito; “de base” significa apenas: que não se faz através de outra coisa. Do ponto de vista fenomenológico, a mesma acção poderá ser de base num caso (deslocar uma pedra empurrando), mas não noutro caso (fazer que o braço seja puxado por alguém). Além disso pode chegar-se à noção de acção de base a partir de outros tipos de acções distintos das acções mediatas, por exemplo, as acções “compósitas” (a dança) e as acções interpretadas” (é o caso do gesto de bênção antes evocado, que não é uma acção mediata, mas um “gesto”, isto é, uma acção feita em conformidade com uma regra: redescrever o mesmo gesto em descrições diferentes não é referi-lo a uma acção mediata). Mas nos três casos (acção “mediata”, acção “compósita” e “gesto”), o mesmo argumento regressivo isola a acção de base.
O carácter lógico e não fenomenológico do argumento explica-se pelo paralelismo com o conhecimento: todo o conhecimento mediato remete para um conhecimento imediato ou directo. Aí está o primeiro lugar do argumento regressivo: m crê que e porque percebe o que torna verdadeiro e. Creio que existe aqui um pedaço de papel porque o vejo. A transferência do conhecimento para a acção apoia-se no paralelismo entre o objecto e o evento, entre ser verdadeiro e tornar verdadeiro.
O estatuto da acção de base é paralelo ao das cognições de base; a cognição de base é o que transpõe o abismo lógico entre a asserção e o sentido: creio-o porque vejo, da mesma forma: isto acontece porque o faço. O recobrimento de um evento por um fazer é semelhante ao recobrimento de um ver por um crer.
Pode conceber-se, pelo menos teoricamente, que a mesma expressão “m ri-se” pertence a quatro configurações de sentido de que só uma, a quarta, é uma acção de base. Primeiro caso: m faz-se rir, por exemplo, ao fazer algo de ridículo, ou ao aspirar deliberadamente um gás hilariante; rir é a acção do agente, mas ele fê-la acontecer ao fazer outra coisa. Segundo caso: alguém faz rir m; outrem diferente do agente faz que m se ria. Terceiro caso: o dos tiques: o riso é um sintoma como o soluço. Não é de modo algum uma acção. Quarto caso: em contrapartida, rir é uma acção de base se m se ri quando tem vontade; diz-se então que tem o poder para isso.

RICOEUR, Paul, O Discurso da Acção, 1ª edição, 1988. Lisboa: Edições 70, pp. 37-39

CONHECIMENTO E ACÇÃO

Um primeiro trabalho preparatório consiste em isolar acções como se isolam proposições; assim, o mesmo gesto de levantar o braço, na série de quadros de Giotto na capela Arena de Pádua, significa alternadamente o baptismo de Jordão, o milagre de Caná, a expulsão dos vendilhões do Templo, a saudação à cidade de Jerusalém, etc. A acção “levantar o braço” interpreta-se de cada vez em contextos diferentes.
Mas a distinção principal é a que permite isolar as acções de “base” das acções “mediatas” que sobre elas se edificam. Assim como se conhece algo através de alguma coisa que se conhece directamente, assim também se faz acontecer alguma coisa (mover uma pedra) por meio de uma outra coisa que se faz simplesmente e que desempenha em relação à primeira acção o mesmo papel que a evidência.
Ora, a arquitectura do mediato e do imediato é muito mais fácil de discernir na ordem do conhecer do que na do agir: um homem (m) conhece que s se se satisfazerem três condições: m crê que s (condição representativa), s é verdadeiro (condição semântica), m tem uma prova material (condição explicativa). Esta terceira condição contém a diferença entre conhecimento mediato e imediato: conhecer algo (s) porque se conhece (e) (evidência).
As condições paralelas às do modelo cognitivo são então: m tem a intenção de que a suceda (condição representativa); a acontece (condição semântica); ao fazer b, b é adequado para a (condição explicativa). O paralelismo exprime-se no vocabulário: “através de”, “porque”…, que, por ambos os lados, exclui a relação fortuita e requer a concatenação da explicação. A única diferença entre crença racional e acção racional consiste na inversão do paralelismo: por um lado, explica-se a crença pela evidência; por outro, explica-se o acontecimento pela intenção. Num caso, ligamos as nossas representações às coisas; no outro, as coisas às nossas representações.
RICOEUR, Paul, O Discurso da Acção, 1ª edição, 1988. Lisboa: Edições 70, pp.35-36

quarta-feira, 28 de maio de 2008

QUEBRE O FEITIÇO!

Está num concerto, enfeitiçado e sustendo a respiração, a escutar os seus músicos favoritos na digressão de despedida e a doce música transporta-o, levando-o para um outro lugar…e então um telemóvel começa a tocar! Quebra-se o feitiço. Odioso, horrível, indesculpável. Este bronco sem consideração pelos outros estragou-lhe o concerto, roubou-lhe um momento precioso que jamais poderá ser recuperado. Que maldade que é quebrar o feitiço de alguém! Eu não quero ser aquela pessoa do telemóvel e tenho consciência de que, para muitas pessoas, parecerei estar a pôr-me nessa posição ao embarcar neste livro.
O problema é que existem bons feitiços e maus feitiços. Se ao menos um telefonema providencial pudesse ter interrompido em Jonestown, na Guiana, em 1978, quando o louco Jim Jones estava a ordenar às centenas de seguidores enfeitiçados que cometessem suicídio! Se ao menos pudéssemos ter quebrado o feitiço que levou o culto japonês Aum Shinrikyo a lançar gás sarin numa estação de metro de Tóquio, matando doze pessoas e ferindo milhares de outras! Se ao menos descobríssemos uma forma de quebrar o feitiço que atrai milhares de pobres jovens muçulmanos a madrassas fanáticas, onde são preparados a uma vida de martírio assassino, em vez de os familiarizarem com o mundo moderno, a democracia, a história e a ciência! Se ao menos pudéssemos quebrar o feitiço que convence alguns dos nossos cidadãos que Deus lhes ordena que ataquem à bomba clínicas de aborto!
Os cultos religiosos e os fanáticos políticos não são os únicos a lançar maus feitiços actualmente. Pense-se nas pessoas viciadas em drogas, no jogo, no álcool, na pornografia infantil. Necessitam de toda a ajuda que lhes possamos dar e duvido que alguém esteja disposto a lançar um manto protector sobre essas pessoas enfeitiçadas e dizer: - Chiu! Não quebre o feitiço!

DENNET, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ª edição, 2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 27-28

terça-feira, 27 de maio de 2008

O QUE É UMA ACÇÃO?


Na linguagem ordinária, a acção não é um acontecimento, isto é, algo que acontece; entre fazer e acontecer, há uma diferença de dois jogos de linguagem; o que acontece é um movimento enquanto observável (físico ou fisiológico). Consideremos, efectivamente, as três proposições seguintes: os músculos do braço contraem-se; ele levanta o braço; ao levantar o braço, fez sinal que vai virar. Só no primeiro enunciado se refere a um acontecimento que ocorre na realidade; os outros dois designam uma acção, um nomeando-a, o outro explicando-a pela sua intenção: o hiato é entre o enunciado nº 1 e o enunciado nº 2: “a forma lógica de uma acção não pode derivar-se de nenhum conjunto de constatações que incidam em acontecimentos e nas suas propriedades”.
Aprende-se a abrir uma fechadura e pode perguntar-se: como se faz para abrir uma fechadura? Mas não se pode perguntar: como se faz para levantar o braço? O exercício de uma capacidade não pode resultar de um saber; não “sei” o meu corpo quando actuo, “posso”; e isto é assim porque os acontecimentos corporais que eu sei não são o que eu faço.
Ao examinar a pergunta – como sabemos que…-, Miss Anscombe imagina o caso de um arquitecto que dirigisse um projecto sem jamais ver a sua execução e o conhecesse apenas dando ordens; ou ainda o caso de alguém que escrevesse no quadro sem ver, sem olhar as letras traçadas. Em ambos os casos, temos o saber do gesto no gesto: “este conhecimento do que se faz é o conhecimento prático”; “um homem que sabe como fazer coisas tem um conhecimento prático”. É saber, já que se pode ensinar dando um exemplo do seu saber-fazer.
RICOEUR, Paul, O Discurso da Acção, 1988. Lisboa: Edições 70, pp. 30-34

segunda-feira, 26 de maio de 2008

ACÇÃO E MOVIMENTO

Efectivamente descobre-se que a segunda grande obra de Ludwig Wittgenstein, As Investigações Filosóficas, em particular nos parágrafos 611 e 660, deu origem a toda uma literatura consagrada à linguagem da acção e à semântica de tal linguagem. O tema geral desses escritos é o seguinte: a linguagem em que descrevemos os movimentos e os eventos da natureza. Dizer: "estico o braço para mostar que dou uma volta" é produzir um enunciado que não pode situar-se na mesma categoria que o enunciado "o braço levanta-se": este descreve um movimento que é observado por um espectador, o segundo descreve uma acção do ponto de vista do agente que a fez. Segundo Miss Anscombe, é um "conhecimento sem observação", um "conhecimento prático".
Estudaremos a fundo, e em todos os seus matizes esta linguagem específica, sobretudo a sua organização em rede. Conservamos nesta introdução a tendência geral para distinguir o universo do discurso, em que se fala da acção, do universo do discurso em que se fala do movimento. É ao primeiro que incumbe a noção de motivo, ao segundo a noção de causa.
RICOEUR, Paul, O Discurso da Acção, 1988. Lisboa: Edições 70, p. 13.

A MORTE ii

A morte interpreta-se em toda a tradição filosófica e religiosa quer como passagem ao nada, quer como passagem a uma existência que é outra, que se prolonga num novo contexto. É pensada como a alternativa do ser e do nada, que abona a morte dos nossos próximos, que efectivamente deixam de existir no mundo empírico, o que significa, para esse mundo, desaparecimento ou partida. Abordamo-la como nada de uma maneira mais profunda e de algum modo a priori, na paixão do assassínio. A intencionalidade espontânea desta visão visa o aniquilamento. Caim, quando matava Abel, devia ter da morte esse saber. A identificação da morte com o nada convém à morte do Outro no assassínio. Mas o nada apresenta-se nela ao mesmo tempo como uma espécie de impossibilidade. Com efeito, fora da minha consciência moral, Outrem não pode encontrar-se com Outrem e o seu rosto exprime a minha impossibilidade moral de reduzir ao nada.
A minha morte não se deduz, por analogia, da morte dos outros; inscreve-se, isso sim, no medo que posso ter para o meu ser. O “conhecimento” do ameaçador antecede toda a experiência racionalizada sobre a morte de outrem – o que, em linguagem naturalista, se exprime como conhecimento instintivo da morte. Não é o saber da morte que define a ameaça, é a iminência da morte, no seu irredutível movimento de aproximação, que originalmente consiste a ameaça, que se profere e se articula, se assim podemos exprimir-nos, o “saber da morte”. O carácter imprevisível da morte vem do facto de ela não se conter em nenhum horizonte. Ela não se oferece a nenhuma espécie de domínio. Apanha-me sem me deixar a hipótese que a luta dá, porque, na luta recíproca, apodero-me daquilo que me agarra. Na morte, estou exposto à violência absoluta, ao assassínio na noite.
Não posso em absoluto captar o instante da morte – “que supera o nosso alcance”, como diria Montaigne. Contrariamente a todos os instantes da minha vida, que se estendem entre o meu nascimento e a minha morte, e que podem ser evocados ou antecipados. A minha morte vem num instante sobre o qual, sob nenhuma forma, posso exercer o meu poder. Não embato num obstáculo que nesse choque pelo menos eu toco e que, ao superá-lo ou ao suportá-lo, integro na minha vida e cuja alteridade suspendo. A morte é uma ameaça que se aproxima de mim como um mistério; o seu segredo determina-a – ela aproxima-se sem poder ser assumida, de maneira que o tempo que me separa da minha morte, ao mesmo tempo diminui e não deixa de diminuir, comporta como que um último intervalo que a minha consciência não pode transpor e em que de algum modo se dará um salto da morte até mim.

LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, 1988, Lisboa, Edições 70, pp 211-213

domingo, 25 de maio de 2008

QUAIS SÃO OS LIMITES DA NOSSA IDENTIDADE PESSOAL?

Imagine que um cirurgião decide aproveitar a sua presença no hospital para amputar cada um dos seus membros e lhe retirar todos os órgãos, com o intuito de resolver o enigma dos limites somáticos: o limite da amputação, antes da qual será sempre igual a si mesmo e depois da qual não será mais nada.
Você está adormecido numa mesa de operações, preso por correias de couro. A assistente preparou todos os instrumentos, o cirurgião pode começar a sua obra. A ideia não é realizar esta experiência crucial de qualquer maneira, abruptamente. Nesta primeira experiência, o cirurgião dá-se por satisfeito abrindo-lhe o crânio, arrancando-lhe os dentes, extraindo-lhe um rim, não terá pernas, apesar disso será a mesma pessoa.
Alguns filósofos recusariam este primeiro balanço. Ao primeiro órgão extraído, ao primeiro dedo cortado, ninguém permaneceria igual a si próprio. Estes filósofos são vítimas de uma confusão linguística. Pretender que uma pessoa deixa de ser quem é após uma intervenção cirúrgica, com a ablação das amígdalas ou do apêndice, é confundir a identidade pessoal, isto é, aquilo que somos ao longo de toda a nossa existência, com a imutabilidade ou a invariabilidade, conceito que se opõe por definição a qualquer tipo de mudança. O facto de irmos ao dentista ou ao cabeleireiro não faz com que desapareçamos. Na grande maioria dos casos, é precisamente porque desejamos continuar a ser nós mesmos que deixamos que nos cortem as unhas ou nos operem. É preciso aceitar a mudança para continuarmos a ser os mesmos.
Convencido pelos bons fundamentos desta primeira análise, o cirurgião decide prosseguir a sua investigação. Desta vez, ele decide ir até aos confins de si mesmo: não só lhe extrai os braços, mas também o sexo e a pele do corpo que vai esfolando. Ao abrir a caixa torácica fica com acesso às suas vísceras, que retira pacientemente. Para que não sucumba no curso desta operação, ele tem o cuidado de substituir ou de compensar cada órgão vital por uma prótese apropriada.
Decidido a levar a sua lógica até ao fim, o cirurgião decide agora destapar-lhe o cérebro. O cérebro é o limite somático das criaturas cerebrais.
Mas ninguém poderá imaginar seriamente que a nossa identidade depende da presença ou ausência de um neurónio (ou de uma sinapse, ou de uma conexão neuronal). Tal como um cérebro com um neurónio a menos permanece idêntico a si mesmo, é também um facto que um cérebro sem neurónios deixa de ser um cérebro.

FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 61-67

UM TRIUNFO SOBRE A MORTE

A angústia da morte está precisamente na impossibilidade de cessar, na ambiguidade de um tempo que falta e de um tempo misterioso que resta ainda. Morte que, por conseguinte, não se reduz ao fim de um ser. O que “ainda resta” é inteiramente diferente do futuro que se acolhe, que se projecta e que, numa certa medida, se tira de si próprio. A morte é, para um ser a quem tudo acontece de acordo com projectos, um acontecimento absoluto, absolutamente a posteriori, que não se oferece a nenhum poder, nem mesmo à negação. O morrer é angústia, porque o ser ao morrer não acaba ao terminar. Não tem mais tempo, ou seja, já não pode conduzir a sítio nenhum os seus passos, mas vai assim onde não se pode ir, sufoca; mas até quando? A não-referência ao tempo comum da história significa que a existência mortal se desenrola numa dimensão que não corre paralelamente ao tempo da história e que não se situa em relação a esse tempo, como em relação a um absoluto. É por isso que a vida entre o nascimento e a morte não é uma loucura nem absurdo, nem fuga, nem fraqueza. Flui numa dimensão que lhe é própria e onde pode ter sentido um triunfo sobre a morte. Esse triunfo não é uma nova possibilidade que se oferece depois do fim de toda a possibilidade – mas ressurreição no filho em que se engloba a ruptura da morte – abafamento na impossibilidade do possível – abre uma passagem para descendência.

LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, 1988. Lisboa: Edições 70, p. 44

sábado, 24 de maio de 2008

A MORTE

O desesperado, que desejaria o nada ou a vida eterna, pronuncia em relação ao “cá na terra” uma rejeição total; mas a morte continua a ser dramática para o candidato ao suicídio e para o crente. Deus chama-nos sempre demasiado cedo para Ele. Queremos o cá em baixo. No horror do desconhecido radical a que a morte conduz, atesta-se o limite da negatividade. Esta maneira de negar, ao mesmo tempo que se refugia no que se nega, desenha os contornos do Mesmo ou do Eu. A alteridade de um mundo rejeitado não é a do Estrangeiro, mas da pátria que acolhe e protege. A metafísica não coincide com a negatividade.
LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, 1988. Lisboa: Edições 70, pp.28-29

UM OBJECTO NÃO É INTRINSECAMENTE UMA OBRA DE ARTE, TORNA-SE OBRA DE ARTE

Imagine que lhe perguntam se um cofre maciço, fechado a sete chaves, contém uma obra de arte, sem que possa abrir esse cofre e sem que alguém lhe tenha dito o que ele contém, se é que contém alguma coisa. Nestas condições, tudo parece indicar que não poderá pronunciar-se sobre a questão de saber se este cofre esconde, ou não, uma obra de arte. Por muito estranho que possa parecer, esta questão é todavia análoga a situação em que lhe perguntassem se um objecto anónimo qualquer é mesmo uma obra de arte. Entenda-se por objecto anónimo um objecto não identificado, acerca do qual não detém informação alguma. Não se trata de supor numa situação em que teria a oportunidade de reconhecer esta ou aquela obra, mais ou menos célebre, que já conhecia, nem de perceber que determinado objecto, em relação ao qual só sabe o que vier a descobrir, é uma obra de arte. Contrariamente ao que possa imaginar, o facto de abrir o cofre e de poder livremente examinar e manipular o seu conteúdo não lhe permitiria responder à questão colocada. Tanto dá que o cofre esteja aberto ou fechado, isso não altera em nada o problema. Seja qual for a situação, não poderá dizer, a não ser que o faça ao acaso, se esse objecto é, ou não, uma obra de arte.
Esta afirmação parece paradoxal, ou então absurda. Mas isso não é verdade, ele apenas visa mostrar como é ilusório pensar que as obras de arte são objectos que se definem por aquilo que nos dão a ver, a compreender, a saborear, a sentir, etc., ou seja, a sua aparência, ou ainda as suas propriedades estéticas.
As obras de arte não são compostas de moléculas de obras de arte do mesmo modo que a água é composta de moléculas de água. As obras de arte não têm um número atómico, não existe um código genético das obras de arte. Numa palavra, não há nada na aparência ou na estrutura íntima das obras de arte que seja característico do facto de se tratar de uma obra de arte.
Em conclusão: as obras de arte não são entidades que nos sejam impostas enquanto tais. Em particular, elas não são dotadas de nenhuma característica interna que permita distingui-las dos simples objectos. Mesmo que o cofre maciço seja aberto, nada muda: ninguém, do simples amador esclarecido até ao maior dos especialistas em arte, poderá dizer se um objecto anónimo qualquer é, ou não, uma obra de arte. O estatuto de obra de arte é um estatuto imaginário.

FERRET, Stéphane, Aprender com as coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 47-54

sexta-feira, 23 de maio de 2008

E SE FÔSSEMOS UM CÉREBRO NUMA CUBA?

Imagine uma situação em que as coisas que vê não correspondem a objectos tridimensionais, onde não existe, não obstante a sua crença irresistível, nenhum mundo físico mobilado de coisas tangíveis, como o Sol, como as rãs verdes ou as escovas de dentes. Imagine, por exemplo, que é um cérebro flutuando numa cuba. Não um cérebro morto num frasco de formol, mas um cérebro mantido em estado de funcionamento, graças a uma solução química. Um cientista louco extraiu-lhe o cérebro da caixa craniana sem o seu conhecimento, e o resto do corpo foi incinerado. Para lhe criar a ilusão de que nada mudou, o cientista louco ligou o seu cérebro a um computador que lhe envia impulsos eléctricos via eléctrodos ligados às suas terminações nervosas, que o seu cérebro, como se nada se passasse, se apressa a traduzir em imagens, sons, odores, impressões tácteis e gustativas. O processo é interactivo, você tem, a impressão de poder continuar a agir sobre o mundo. Do seu ponto de vista, continua a ter a mesma vida, as suas actividades e percepções são as mesmas, sem que nada destas actividades e percepções corresponda à realidade, no sentido que habitualmente damos a esta palavra. Poderá ir dar uma volta, se assim o desejar, regar as plantas, dar de comer ao gato, aproveitar as férias para se banhar na água azul, de bronzear-se enquanto lê, bem instalado num transatlântico, um chapéu de palha na cabeça e o corpo besuntado de creme, uma obra filosófica contemporânea que descreve a hipótese de um cérebro numa cuba. O supercomputador-prótese funciona às mil maravilhas: você é mais um homem entre os homens, pelo menos um ser vivo, uma coisa do mundo entre as coisas do mundo.
Os filósofos intrigaram-se muitas vezes com este género de hipóteses, mas só um número reduzido, salvo a categoria singular dos cépticos, o levou muito a sério. Semelhantes ficções derivariam de uma patologia ou de uma nevrose tipicamente filosófica, com um remédio muito simples: bastaria formular um raciocínio convincente que permitisse fazer calar o insensato que as exprime e levar os homens de boa vontade a encontrar, espírito apaziguado, o bom velho realismo tradicional, próximo do senso comum.

FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 17-18

LIVRE ARBÍTRIO E BEM-ESTAR PESSOAL

Observe-se uma formiga num prado, trepando laboriosamente a uma folha de erva, cada vez mais alto, até cair; volta a trepar e, mais uma vez, qual Sísifo a rolar a sua pedra, tenta chegar ao cimo. Por que é que uma formiga age desta forma? Que benefício busca para si própria com esta actividade árdua e improvável? Trata-se da pergunta errada, afinal. Não resulta daí nenhum benefício biológico para a formiga. Ela não está a tentar obter uma melhor visão do território, à procura de alimento ou a pavonear-se perante um par potencial, por exemplo. O seu cérebro foi ocupado por um minúsculo parasita, um verme (Dicrocelium dendriticum) que necessita de ter acesso ao interior do estômago de um carneiro ou de uma vaca para completar o seu ciclo reprodutivo. Este pequeno verme cerebral está a tentar posicionar a formiga para beneficiar a sua descendência, não a da formiga. Não se trata de um fenómeno isolado. Existem parasitas similarmente manipuladores que infectam peixes e ratos, entre outras espécies. Estes parasitas levam os seus hospedeiros a comportar-se de formas improváveis – até mesmo suicidas – para benefício do hóspede, não do hospedeiro.
Será que algo semelhante acontece com os seres humanos? Na verdade, sim. Encontramos frequentemente seres humanos que põem de lado interesses pessoais, a sua saúde ou as hipóteses de terem filhos para dedicarem toda a sua vida a fazer vingar uma ideia que se lhes alojou no cérebro. Em árabe, a palavra islão significa “submissão” e todo o bom muçulmano presta testemunho, reza cinco vezes por dia, dá esmola, jejua durante o Ramadão e tenta fazer a peregrinação, ou hadj, a Meca, tudo em nome da ideia de Alá e de Maomé, o mensageiro de Alá. Os Cristãos e os Judeus procedem de modo similar, evidentemente dedicando a sua vida a espalhar a Palavra, fazendo enormes sacrifícios, sofrendo corajosamente e arriscando as suas vidas por uma ideia. Não devemos também esquecer os muitos milhares de humanistas seculares que têm sacrificado a sua vida pela Democracia, Justiça, ou somente pela Verdade. Existem muitas ideias pelas quais se pode morrer.
A capacidade de dedicarmos a nossa vida a algo que consideramos mais importante do que o bem-estar pessoal – ou o imperativo biológico de ter descendência – é um dos traços que nos distinguem do resto do mundo animal.
DENNET, Daniel, Quebrar o Feitiço – a religião como fenómeno natural, 1ªedição,2008. Lisboa: Esfera do Caos Editores Lda, pp. 21-22

AULA DE FILOSOFIA PARA CRIANÇAS



Encontrei esta preciosidade no blog JoanaRSSousa.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A INACESSIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA DOS OUTROS

Que sabe do seu vizinho do lado? Provavelmente muitas coisas. O seu nome, sexo, talvez a idade, profissão, a sua altura, tom de pele, cor de cabelo e olhos, sabe os seus horários, etc.
Seja qual for o alcance dos seus conhecimentos e dos seus meios de investigação para os obter, há uma coisa, no entanto, que jamais poderá saber do seu vizinho. E essa coisa é a sensação de ser ele. Para saber qual será a sensação de ser o seu vizinho, seria necessário que ocupasse o seu lugar no mundo, no sentido do seu ponto de vista. Para experimentar o que ele experimenta, seria necessário que se metesse dentro dele, que a boca dele fosse a sua boca, as feridas dele, as suas feridas, a dor dele a sua dor. Seria necessário, numa palavra, que a consciência dele lhe fosse acessível. E é isso, precisamente, que não é possível: toda a consciência é irrevogavelmente inacessível às outras consciências.
A subjectividade não está no corpo do mesmo modo que o leite está no frigorífico. Ela é, antes de mais, uma forma singular de estar no mundo. E essa é a razão pela qual aceder ao cérebro do vizinho em nada contribui para aceder ao seu espírito. Mesmo que lhe abra o crânio, tudo a que terá acesso não passa de uma massa cinzenta e mole com inflorescências de couve-flor. Uma observação minuciosa das circunvoluções dos seus dois hemisférios não lhe traria nada de novo. Mesmo que venha a estabelecer uma relação muito precisa entre o que ele afirma representar – o medo, um sabor de ovos recheados, um desejo sexual – e uma configuração cerebral específica, mesmo assim permanecerá no seu exterior.
Não só nunca saberá o que é ser o seu vizinho, como também parece impossível que alguma vez venha a saber se sente as mesmas coisas que o seu vizinho. Nada garante que você e o seu vizinho estejam a experimentar as mesmas coisas quando adoptam comportamentos análogos.
Evidentemente que não é porque a consciência dos outros nos é inacessível que devemos concluir que as sujas sensações internas não têm nada em comum com as nossas, ou que não existe consciência. Mesmo que não possamos provar que os outros têm consciência, ninguém duvida disso. Ainda assim, não deixa de ser perturbador verificar até que ponto aquilo que geralmente damos por adquirido está, na realidade, longe de o ser. Mais do que qualquer outra consideração filosófica, estas hipóteses metafísicas, por muito inauditas e fantasistas que possam parecer, confrontam-nos com os fundamentos das nossas crenças e remetem-nos inexoravelmente para a nossa solidão.

Stéphane Ferret

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Stéphane Ferret

Pretender que a filosofia não se reduza ao seu próprio museu não implica necessariamente negar o génio dos grandes autores do passado e muito menos que a leitura dos textos ilustres seja vã ou ultrapassada. Ao contrário do que uma tradição de embalsamadores tenta impor, trata-se simplesmente de não reduzir a actividade filosófica à história da filosofia, ou seja, à apresentação e aos comentários incansáveis dos mesmos textos.

O que é um problema filosófico?

Contrariamente às interrogações meteorológicas sobre os fenómenos atmosféricos ou às interrogações anatómicas sobre a forma e a estrutura dos organismos, as interrogações filosóficas não dizem respeito a um domínio específico, a um santuário, mas a todas as coisas, mesmo àquelas que em linguagem comum não chamaríamos coisas: as pastilhas elásticas, o infinito, a alegria, as relações, as torradeiras, as dores violentas, a lei da gravitação universal, os bebés, que são suficientemente velhos para morrer desde que nascem, as rosas, que têm espinhos, e a palavra “rosa”, que, enquanto tal, não os tem.
Um problema filosófico, à partida, não é uma interrogação técnica ou esotérica, reservada apenas a especialistas. Mas uma perplexidade de ordem geral que, qual for o tema abordado, não admite uma resposta evidente.
Um problema filosófico é por natureza intrigante: julgamos possuir a resposta; todavia, logo que tentamos formular as razões que justificam aquilo de que estamos persuadidos, apercebemo-nos com espanto, ao mesmo tempo que nos vamos apercebendo dos nossos preconceitos, que somos incapazes de articular uma resposta firme, susceptível de esgotar a questão, e depressa caímos num abismo de perplexidade.
Se a filosofia é mesmo uma actividade que procura compreender as coisas que nos intrigam e que nos dizem respeito, a única maneira de apresentar a filosofia consiste em praticá-la simplesmente.
Uma boa maneira de filosofar consiste em recorrer a “experiências de pensamento”, um método clássico que faz parte do equipamento básico do filósofo; em suma, o seu tubo de ensaio ou uma das chaves da sua caixa de ferramentas. Uma experiência de pensamento é uma situação imaginária extrema que permite ilustrar ou comprovar uma crença metafísica e que, por não sofrer qualquer condicionamento, força o pensamento a ir até ao fundo de si mesmo, até ao extremo dos seus limites. É preciso, no entanto, ter atenção: as experiências de pensamento não são “provas”, e acontece que nem sempre constituem argumentos. Mas o interesse das experiências de pensamento é, ainda assim, bem real: denunciar as nossas ilusões, escapar à caverna das nossas crenças familiares.
FERRET Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 8-10

terça-feira, 20 de maio de 2008

ACTOS ILOCUTÓRIOS

Há cinco categorias básicas de actos ilocutórios: assertivos, em que dizemos aos nossos ouvintes (verdadeiramente ou falsamente) como as coisas são; directivos, em que tentamos fazer com que eles façam coisas; comissivos, em que nos comprometemos a fazer coisas; declarações, em que ocasionamos mudanças no mundo com as nossas elocuções; e expressivos, em que exprimimos os nossos sentimentos e atitudes.

INTENÇÃO EM ACTO E INTENÇÃO PRÉVIA

A minha acção de erguer o braço consiste em duas componentes, a intenção em acto e o movimento do braço. Tire-se o primeiro e não se terá uma acção, mas somente um movimento; tire-se o segundo e não se terá sucesso, apenas esforço falhado. Não há acções, nem sequer acções não intencionais, sem intenções.
Podem existir acções sem intenções prévias correspondentes, quando retiro o meu carro do estacionamento e atinjo alguém sem qualquer intenção prévia de o atingir. Mas não pode haver quaisquer acções, nem mesmo acções não intencionais, sem intenções em acto. As acções, portanto, contêm necessariamente intenções em acto, mas não são necessariamente causadas por intenções prévias. Contudo, o conteúdo Intencional da intenção em acto não é que ele deva causar a acção, mas antes, que deva causar o movimento (ou estado) do agente, o qual é a sua condição de satisfação; e os dois em conjunto, intenção em acto e movimento, constituem a acção.
Uma acção é qualquer evento ou estado composto que contenha a ocorrência de uma intenção em acto. Se essa intenção em acto causar o resto das suas condições de satisfação, o evento ou estado é uma acção intencional realizada com sucesso; de contrário, é mal sucedida. Uma acção não intencional é uma acção intencional, seja ou não bem sucedida, que contém aspectos que não foram pretendidos, ou seja, que não foram apresentados como condições de satisfação de intenção em acto.
John Searle

domingo, 18 de maio de 2008

ARTE E TEORIAS DA ARTE

Andy Warhol, o artista pop, expõe fac-símiles de caixas de cera Brillo, em pilhas muito bem arrumadas, como se estivessem no armazém de um supermercado. Por acaso são de madeira, pintadas para parecerem de cartão. Acontece que o preço destas caixas é 2x103 o das suas contrapartes domésticas da vida real, uma diferença dificilmente atribuível à sua maior durabilidade. De facto, os fabricantes de cera Brillo podiam perfeitamente, com um pequeno acréscimo de custo, fazer as caixas de cera em contraplacado, sem que estas se tornassem obras de arte, e Warhol podia fazer as suas em cartão, sem que deixassem de ser arte.
Então, por que motivo os fabricantes de cera Brillo não podem produzir arte, e por que motivo Warhol não pode deixar de fazer obras de arte. Bem, as dele são feitas à mão, não há dúvida. Mas a diferença não pode consistir na maneira de produzir: um homem que esculpisse seixos a partir de pedras e montasse cuidadosamente uma obra chamada Pilha de Cascalho poderia invocar a teoria do valor-trabalho para explicar o preço que pede, mas a questão é: o que a torna arte?
Pouco importa que a caixa de cera Brillo possa não ser arte de boa qualidade, e muito menos uma grande obra de arte. O que impressiona é o facto de ser arte. Mas, se é arte, o que impede as indiscerníveis caixas de cera Brillo que estão no armazém de o serem igualmente?
Em última análise, aquilo que distingue uma caixa de cera Brillo de uma obra de arte que consiste numa Caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a eleva ao mundo da arte e a impede de se reduzir ao objecto real que é. É claro que, sem a teoria, é improvável que a vejamos como arte e, a fim de a vermos como parte do mundo da arte, temos de dominar uma série de teorias da arte, além de uma parte considerável da história da pintura. O mundo tem de estar preparado para certas coisas, e isto tanto se aplica ao mundo real, como ao mundo da arte. O papel das teorias artísticas, hoje como sempre, é tornar possível o mundo da arte e a arte. Presumo que nunca tenha ocorrido aos pintores de Lascaux que estavam a produzir arte naquelas paredes. A não ser que no neolítico houvesse teóricos de estética.
Arthur Danto

A ATITUDE ESTÉTICA

A percepção estética será explicada em termos da atitude estética.
É a atitude que tomamos que determina a forma como percepcionamos o mundo. Uma atitude é uma maneira de dirigir e controlar a nossa percepção. Nunca vemos nem ouvimos, indiscriminadamente, tudo aquilo que constitui o nosso ambiente. Pelo contrário, “prestamos atenção” a algumas coisas, ao passo que apreendemos outras apenas de maneira vaga ou quase nula. Portanto, a atenção é selectiva – concentra-se em alguns aspectos do que nos rodeia e ignora outros. Além disso as nossas acções são geralmente dirigidas a um objectivo. Obviamente, quando os indivíduos têm fins diferentes, percepcionam o mundo de maneira diferente: uma pessoa dará ênfase a determindas coisas que outro ignorará.
A atitude estética não é aquela que adoptamos usualmente. A atitude que tomamos habitualmente pode ser chamada atitude de percepção “prática”.
Habitualmente, vemos as coisas do nosso mundo em termos da sua utilidade para a promoção ou o prejuízo dos nossos fins. Vejo uma caneta como algo com que posso escrever, vejo um automóvel que se aproxima como algo a evitar. Não concentro a minha atenção no objecto propriamente dito. Pelo contrário, ele só me interessa na medida em que pode ajudar-me a atingir um objectivo futuro. O trabalhador que não olha para além das suas ferramentas não faz o seu trabalho. Assim, quando a nossa atitude é “prática”, percepcionamos as coisas apenas como meios para um fim que está para lá da experiência de as percepcionarmos.
Pelo contrário, a atitude estética é a atenção e contemplação desinteressadas e complacentes de qualquer objecto da consciência apenas em função de si mesmo.
A palavra desinteressadas é de importância crucial. Significa que não olhamos para o objecto preocupados com qualquer fim ulterior para que possa servir. O nosso interesse repousa tão-só no objecto, de modo que ele não é considerado um sinal de um acontecimento futuro, como a campainha para o jantar.
A palavra complacentes, refere-se ao modo como nos preparamos para reagir ao objecto. Quando apreendemos um objecto esteticamente, fazemo-lo para apreciar a sua qualidade individual, quer ele seja encantador, comovente, vívido ou todas estas coisas simultaneamente. Para o apreciarmos, temos de aceitá-lo “tal como é”. Temos de nos tornar receptivos e de nos “dispor” a aceitar o que quer que ele possa oferecer à percepção. Ser “complacente”, no que à experiência estética diz respeito, significa dar ao objecto a “oportunidade” de mostrar que pode ser interessante percepcioná-lo.
Jerome Stolnitz

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Qual é a relação entre intenção e acção?

Assim como a minha crença é satisfeita se e somente se o estado de coisas representado no conteúdo da crença de facto é obtido, e o meu desejo é satisfeito se e somente se o estado de coisas representado pelo conteúdo do desejo vem a acontecer, também a minha intenção será satisfeita se e somente se a acção representada pelo conteúdo da intenção for realmente realizada. Mas se tudo indicia uma relação estreita entre acção e intenção, deveremos ter em atenção algumas situações paradigmáticas.
Mesmo onde há uma acção não intencional, tal como Édipo casar-se com a sua mãe, isso acontece apenas porque há um evento idêntico que é uma acção realizada intencionalmente, nomeadamente, casar com Jocasta. Este exemplo leva-nos a concluir que não há acções sem intenções correspondentes.
Mas, embora um evento representado no conteúdo da minha intenção ocorra, ele não é necessariamente a satisfação da minha intenção. Para explicar este ponto de vista podemos estabelecer uma analogia com as crenças e os desejos. Assim, se acredito que está a chover e está a chover, a minha crença é verdadeira, seja qual for a maneira como aconteceu estar a chover. E se o meu desejo é ser rico e eu fico rico, esse desejo é satisfeito, seja qual for a maneira como fiquei rico. Mas esta condição não é válida para as acções. Suponha-se que João quer matar o seu tio; pode acontecer que ele mate o seu tio, e, todavia, as condições de satisfação da sua intenção não resultem. Elas podem não resultar mesmo em alguns casos em que a sua intenção de matar o tio seja a causa efectiva de ele matar o tio. Suponha-se que ele está a guiar pensando como vai matar o tio, e suponha-se que a sua intenção de matar o tio põe-no de tal forma nervosos e excitado que acidentalmente atropela e mata um pedestre que acontece ser o seu tio. Ora, neste caso, é correcto dizer que ele matou o seu tio e correcto dizer que a sua intenção de matar o tio foi (parte de) a causa de ele ter matado o tio; mas não é correcto dizer que ele concretizou a sua intenção de matar o tio ou que a sua intenção foi satisfeita, uma vez que ele não matou o seu tio intencionalmente.
Podemos encontrar ainda um outro exemplo que ilustra esta mesma situação. Um homem pode tentar matar alguém disparando sobre ele. Suponha-se que ele não acerta, mas que o tiro faz debandar uma manada de porcos selvagens que pisam a pretendida vítima até à morte. Neste caso, a intenção do homem tem a morte da vítima como parte das condições de satisfação e a vítima morre como resultado, mas, assim mesmo, somos, relutantes em dizer que foi uma morte intencional.
Os exemplos referidos foram retirados de J. Searle, Intencionalidade – um ensaio de filosofia da mente, 1999, Lisboa.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

FORMA SIGNIFICANTE

O que é a Forma Significante? Em cada quadro, uma particular combinação de cores, certas formas e relações entre formas, despertam as nossas emoções estéticas. A estas relações e combinações de linhas e cores, a estas formas esteticamente estimulantes, chama Clive Bell "Forma Significante"; e a "Forma Significante" é a única qualidade comum a todas as obras de arte visual.


Rolando Almeida teve a amabilidade de publicitar o "Em Busca de Sophia" no seu blog A Filosofia no Ensino Secundário. Rolando Almeida muito tem feito pela Filosofia em Portugal, daí o nosso regozijo pela sua referência ao nosso blog.

terça-feira, 13 de maio de 2008

INTENCIONALIDADE

O famoso problema de Wittgenstein acerca da intenção - quando ergo o meu braço, que é que sobra se eu subtrair o facto de o meu braço subir? - resiste a uma solução apenas enquanto insistirmos numa resposta ontológica. Dada a abordagem não ontológica da Intencionalidade a resposta é bastante clara. O que sobra é um conteúdo Intencional - que o meu braço sobe como resultado da intenção em acto -, num certo modo psicológico -o modo intencional.
John Searle

FORMALIZAÇÃO DE ESTADOS INTENCIONAIS

Através dos instrumentos lógicos podemos formalizar argumentos e proposições que contenham estados intencionais.
Medo
Um homem que teme que p, deve acreditar que é possível que p, e deve querer que seja o caso de não-p.
Medo (p)→Cren (◊p)∧Des(¬p)
Expectativa
As expectativas são crenças acerca do futuro.
Expectativa (p)↔Cren (Fut p)
Desapontamento
Se estou desapontado porque p, devo ter anteriormente esperado que não-p e querido que não-p, e agora, acredito que p.
Desapontamento (p)→pre Cren (p)∧pass Cren (fut¬p)∧Des (¬p)
Lamento
Lamento que p se tenho uma crença que p e desejo de não-p.
Lamentar (p)→Cren (p)∧Des(¬p)
Pesar
O pesar coloca uma restrição ao acto de lamentar, uma vez que o conteúdo proposicional deve dizer respeito a coisas que tenham a ver com a pessoa que sente esse pesar.
Sinto pesar (p)→Cren (p)∧Cren(p está relacionado comigo)∧Des (¬p)
Remorso
O remorso acrescenta o elemento de responsabilidade.
Remorso (p)→Cren (p)∧Des (¬p)∧Cren (sou responsável por p)
Culpa
A culpa é como o remorso só que dirigida a outrem.
Culpar X por (p) →Cren (p)∧Des (¬p)∧Cren (X é responsável por p)
Esperança
A esperança requer incerteza quanto à possibilidade do estado esperado se verificar efectivamente.
Esperar (p)→¬Cren(p) ∧¬Cren(¬p) ∧Cren(◊p) ∧Des(p)
Orgulho e vergonha
O orgulho e a vergonha requerem alguma conexão com o agente, embora não precise de ser tão forte quanto a responsabilidade. A vergonha envolve um desejo de ocultar, e o orgulho, um desejo de tornar conhecido.
Orgulho (p) →Cren(p) ∧Des(p)∧Cren(p está relacionado comigo)∧Des (outros sabem que p)
Vergonha (p) →Cren(p)∧Des(¬p)∧Cren(p está relacionado comigo)∧Des (p será ocultado dos outros)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

John Searle

Dado que o ajustamento é uma relação simétrica, poderá parecer confuso que possam haver diferentes direcções de ajustamento. Se a se ajusta a b, b ajusta-se a a. Talvez alivie esta peocupação o considerarmos um caso não linguístico incontroverso: se a Cinderela vai a uma sapataria comprar um novo par de sapatos, ela tem o número que calça como já dado e procura sapatos que se ajustem (direcção de ajustamento sapato-pé). Mas, quando o príncipe procura a dona do sapato, ele tem o sapato como dado e procura um pé que se ajuste ao sapato (direcção de ajustamento pé-sapato).

O AJUSTAMENTO AO MUNDO

A distinção entre diferentes direcções de ajustamento, igualmente oriunda da teoria dos actos de fala, será transposta para os actos Intencionais. Supõe-se que os membros da classe assertiva de actos de fala - enunciados, descrições, asserções, etc. - se adequam, de alguma maneira, a um mundo de existência independente; e é na medida em que o fazem ou não, que dizemos que são verdadeiros ou falsos. Mas os membros da classe directiva de actos de fala - ordens, comandos, solicitações, etc. - e os membros da classe comissiva - promessas, juramentos, votos, etc. - não são supostos ajustarem-se a uma realidade de existência independente. Supõe-se sim que produzam mudanças no mundo para que o mundo se ajuste ao conteúdo proposicional do acto de fala; e na medida em que o fazem ou não, não dizemos que são verdadeiros ou falsos, mas sim, que são obedecidos ou desobedecidos, cumpridos, acedidos, mantidos ou quebrados. Assinalo esta distinção dizendo que a classe assertiva tem a direcção de ajustamento palavra-mundo e que as classes comissiva e directiva têm a direcção de ajustamento mundo-palavra. Se o enunciado não é verdadeiro, é ele que falha, não o mundo; se a ordem é desobedecida ou a promessa quebrada, não é a ordem ou a promessa que falham, mas o mundo, na pessoa daquele que desobedece ou que quebra a promessa. Intuitivamente, podemos dizer que a ideia de direcção de ajustamento é a da responsabilidade pelo ajustamento. Se o enunciado é falso, é o enunciado que está em falta (direcção de ajustamento palavra-mundo). Se a promessa é quebrada, é falha daquele que prometeu (direcção de ajustamento mundo-palavra). Existem também casos nulos, em que não há qualquer direcção de ajustamento. Se eu pedir desculpas por ter insultado alguém ou felicitar alguém por ter ganho o prémio, então, embora eu de facto pressuponha a verdade da proposição expressa, que insultei esse alguém, que esse alguém ganhou o prémio, o intuito do acto de fala não é asseverar esssas proposições nem ordenar que se cumpram os actos por elas nomeados, mas antes expressar a minha tristeza ou o meu prazer em relação ao estado de coisas especificado no conteúdo proposicional, cuja verdade pressuponho.
SEARLE, John, Intencionalidade - um ensaio de filosofia da mente, 1999. Lisboa: Relógio D'Água Publicações, pp. 28-29.

PARADOXO DA OMNIPOTÊNCIA

O paradoxo da omnipotência é o problema trivial de determinar se Deus, que pode fazer tudo, pode criar uma pedra tão pesada que não a consiga levantar. Se não a pode criar, não é omnipotente (porque até criaturas tão fracas como nós podem criar coisas que não podem levantar), mas, se a pode criar, também não é omnipotente, já que ao criá-la estaria a dar origem a algo que não poderia fazer (levantar o que tinha criado). Na solução habitual deste paradoxo admite-se que a omnipotência de Deus não se estende à realização do que é logicamente impossível, e faz-se notar que para ele (mas não para nós) é logicamente impossível que exista tal pedra.

in BLACKBURN, Simon, Dicionário de Filosofia, 1997. Lisboa: Gradiva.

PARADOXO DE MOORE


Um paradoxo é um argumento aparentemente sólido que conduz a uma afirmação aparentemente falsa ou contraditória. Porque a afirmação é falsa ou contraditória, somos levados a recusá-la; mas, por outro lado, não é fácil ver como se pode fazê-lo, dado que há um argumento aparentemente sólido a seu favor.
Nem sempre é fácil ver que argumento é colocado em causa por um paradoxo. Resolve-se um paradoxo mostrando que o argumento em que se baseia não é sólido: porque é inválido ou porque depende de premissas falsas. Mais raramente, resolve-se um paradoxo afirmando que a conclusão que parecia falsa ou contraditória não o é.
O paradoxo de Moore consiste em afirmar que não há contradição entre acreditar que p e afirmar que não-p. "Está chovendo mas eu não acredito que está". Esta afirmação é aparentemente falsa porque quando declaro que p, expresso uma crença que p. Se afirmo conhecer x, creio que x; se prometo fazer y, expresso uma intenção de fazer y. Por isso não se pode dizer que “está a chover mas eu não acredito que está”. Esta afirmação é estranha em termos lógicos mas não é auto-contraditória, e é dessa forma que se resolve o paradoxo. Eu posso realizar um acto de fala e negar a presença do seu estado intencional correspondente. Assim eu posso afirmar “é meu dever informar que p, mas realmente não acredito que p”, pois posso emitir um acto de fala em nome de outro. Ou então, pode estar a chover e posso afirmar que acredito que não está a chover porque posso ter a crença de que aquilo não é chuva.

sábado, 10 de maio de 2008

O QUE É A INTENCIONALIDADE?

A Intencionalidade é a propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual eles são dirigidos para ou acerca de objectos e estados de coisas no mundo. Se, por exemplo, tenho uma crença, deve ser uma crença de que tal ou qual coisa é o caso; se tenho um medo, deve ser um medo de algo ou de que algo vai acontecer; se tenho um desejo, deve ser um desejo de fazer algo ou de que algo aconteça ou seja o caso; se tenho uma intenção, deve ser uma intenção de fazer algo. (...) Mas, em muitos aspectos, o termo é equívoco(...). Por isso quero já de início clarificar o modo como tenciono usá-lo.
Em primeiro lugar, na minha concepção, só alguns e não todos estados e eventos mentais têm Intencionalidade. Crenças, medos, esperanças e desejos são Intencionais; mas há formas de nervosismo, exaltação e ansiedade não direccionada que não são Intencionais. (...) As minhas crenças e desejos têm sempre que ser acerca de alguma coisa. Mas o meu nervosismo e ansiedade não dirigida não precisam de ser acerca de algo. Tais estados são caracteristicamente acompanhados por crenças e desejos, mas estados não dirigidos não são idênticos a crenças ou desejos. (...)
Em segundo lugar, Intencionalidade não é o mesmo que consciência. Muitos estados conscientes não são Intencionais, como uma sensação súbita de exaltação, e muitos estados Intencionais não são conscientes, como eu ter muitas crenças sobre as quais não estou a pensar no presente e nas quais posso nunca ter pensado (...), são apenas crenças que se têm e nas quais, normalmente, não se pensa.
Em terceiro lugar, tencionar e intenções são apenas uma forma entre outras de Intencionalidade; não têm qualquer estatuto especial. O trocadilho óbvio entre "Intencionalidade" e "intenção" sugere que, no sentido comum do termo, as intenções têm algum papel especial na teoria da Intencionalidade; mas, na minha abordagem, tencionar fazer algo é apenas uma forma de Intencionalidade, juntamente com crença, esperança, medo, desejo, e muitas outras; e não quero com isto sugerir que, por as crenças, por exemplo, serem Intencionais, contenham de alguma maneira a noção de intenção ou tencionem algo, ou que alguém que tenha uma crença deva por meio dela tencionar fazer algo acerca dela. A fim de manter esta distinção totalmente clara, usarei maiúsculas para o sentido técnico de "Intencional" e "Intencionalidade". Intencionalidade é direccionalidade; tencionar fazer algo é apenas um tipo de Intencionalidade entre outros.

SEARLE, John, Intencionalidade - um ensaio de filosofia da mente, 1999. Lisboa: Relógio D'Água Editores, pp.21-23

John Searle


Do meu ponto de vista, os fenómenos mentais têm base biológica: eles são causados por operações do cérebro e realizados na estrutura do cérebro. Nesta perspectiva, a consciência e a Intencionalidade são tanto uma parte da biologia humana como o são a digestão e a circulação do sangue.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O PROBLEMA DO MAL NATURAL

O principal argumento contra a existência de Deus é a existência do mal. O argumento resume-se assim: se Deus é omnipotente poderia ter criado um mundo onde não existisse o mal. Se Deus é bom deveria querer criar um mundo onde não existisse o mal. Mas o mal existe. Logo, ou Deus quis criar um mundo sem o mal mas não pôde - e neste caso não é omnipotente -, ou pôde mas não quis - e neste caso não é sumamente bom. Logo, o tal Deus teísta não existe.
Os teístas acabaram por conseguir responder à existência do mal moral. Deus criou um mundo com livre arbítrio. Um mundo com livre arbítrio é um mundo preferível a um mundo sem livre arbítrio. Logo, o mal moral não é da responsabilidade de Deus, mas do livre arbítrio.
Mas e o mal natural, que não depende do livre arbítrio do ser humano? Encontraremos uma resposta a este problema sem pôr em causa a existência de Deus?
Por exemplo, Deus nunca teria tencionado que uma pessoa morresse esmagada por um pedregulho. Mas se as erupções vulcânicas acontecerem de acordo com as leis da geofísica, que Deus quer que existam (caso contrário o mundo seria diferente do que é, e nós seríamos igualmente diferentes, o que seria um mal), algumas pessoas podem ser esmagadas por pedregulhos. Deus não pode suster as leis e preservar todas as pessoas do mal, excepto através de uma série de contínuos milagres, e isto prejudicaria a estrutura da lei. O que é benéfico para o todo será, por vezes, prejudicial para as partes. Perceberemos melhor esta objecção a partir de um exemplo mundano. Se quisermos um jardim muito bonito, por oposição a um caos de ervas daninhas, muitas plantas terão de ser arrancadas e outras fortemente podadas. Poderíamos dizer que o benefício de um todo requer o sacrifício de algumas das partes.

Podemos encontar esta objecção ao mal natural em Keith Ward, Deus, Fé e o Novo Milénio.

FALÁCIA GENÉTICA

Falácia genética. Erro de pensamento em que mostrar como algo que se desenvolveu é mostrar o que é. Assim, uma falácia genética é um argumento mau que parece bom pois pressupõe que uma vez que a origem de uma crença ou prática esteja errada, sem considerar o seu desenvolvimento, ela ainda estaria errada hoje. Podemos esquematizar a falácia genética da seguinte forma: recusamos x, porque x teve uma dada origem que consideramos errado, mas não tivemos em conta a evolução de x. Por exemplo, as Testemunhas de Jeová que recusam festejar aniversários natalícios ou outras festividades por terem origem pagã, sem terem em conta a evolução destas práticas, incorrem na falácia genética.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Keith Ward


Assim como é errado pensar que a vasta dimensão do Universo reduz os humanos à insignificância, também é errado pensar que o facto de que toda a vida sensível chegará ao fim retira por completo a importância a essa vida. Uma vida não tem de durar eternamente para adquirir significado e valor. Tem significado enquanto durar, e a ideia de vir acabar pode até conferir-lhe maior significado.

THE BEGINNING


Em Busca de Sophia, vai ser o blog de Filosofia da Escola EB2,3/S de Oliveira de Frades.
O principal objectivo do presente blog é ser um precioso auxiliar nas aulas de Filosofia e um lugar de interactividade aluno-professor-saber. Com o blog é igualmente nossa pretensão diminuir o gasto da escola em papel, pois todos os documentos de apoio aos manuais adoptados irão estar sempre disponíveis on-line. Por essa razão o blog irá iniciar a sua actividade, de uma forma mais pujante, apenas no próximo ano lectivo, o que não impede que não se inicie já a postagem de algumas mensagens.
Mas não pretendemos que o blog se enclausure dentro da sala de aula de Filosofia. Queremos que ele seja uma janela aberta para a discussão de ideias em toda a comunidade escolar. Por essa razão, no próximo ano lectivo iremos periodicamente lançar temas para debate, principalmente na área da Ética Aplicada, esperando que as pessoas não se sintam constrangidas a manifestar a sua opinião fundamentada, publicando os seus comentários neste blog, que pretendemos ser de toda a escola.