Os valores orientam a nossa vida,
influenciam o nosso pensar e proceder, acabam por determinar se as nossas ações
são boas ou não, corretas ou incorretas. Usualmente ouvimos dizer que as
pessoas não têm valores, a sociedade já não vive de acordo com os valores, ou
que o mundo já não é o que era. Difunde-se a ideia de uma sociedade em crise,
de uma crise de valores. Na antiguidade clássica havia uma preocupação muito
grande pela virtude[1]
(verdade, bem, ordem, finalidade), sendo esta uma característica fundamental do
labor filosófico.
Agimos de determinada forma de
acordo com as nossas crenças, de acordo com os nossos desejos, ou agimos de
acordo com as nossas preferências, de acordo com aquilo que valorizamos ser
mais ou menos importante em determinada circunstância ou para o futuro? Afinal,
o que é agir de acordo com valores? Qual o seu fundamento do valor?
Na sua relação com o mundo, a
experiência humana é valorativa, isto quer dizer que atribuímos valor a
determinadas coisas e, ao mesmo tempo, reconhecemos pessoas, objetos, situações
e acontecimentos como tendo valor, ou seja, como sendo valiosas.
Analisemos os seguintes casos.
Primeiro caso: se determinada pessoa ou instituição faz alguma coisa de bem,
facilmente identificamos essa ação como boa, de alguém que agiu de acordo com
valores, como a justiça, a honestidade, a solidariedade. Por outro lado, se
alguém agiu mal (sem considerar aqui o que é certo ou errado) já não dizemos
que agiu de acordo com valores. Segundo caso: dizemos que a sociedade
(entendida no seu sentido mais abrangente) já não tem valores, porquê? Porque
não tem nem segue os mesmos que os nossos? Ou porque os nossos são mais
importantes e por isso deveriam ser os preferíveis?
Desidério Murcho ao procurar
responder à pergunta pelo fundamento do valor introduz-nos a noção de
preferências[2],
sendo que nestas está incluído o nosso raciocínio, o nosso “raciocínio prudencial,
que diz respeito precisamente à capacidade de pensar cuidadosamente as nossas
diversas preferências”[3].
Contudo, alerta-nos o autor ao afirmar que “as preferências não nos oferecem
razões simples e automáticas para as [escolhas] satisfazeremos; exigem raciocínio
cuidadoso”[4] para que
não nos enganemos acerca das nossas preferências. Conclui o autor, “ter uma
preferência é valorizar, e ambas são atividades humanas inevitáveis (…) Ao
valorizar e preferir, podemos fazê-lo melhor ou pior, tendo mais ou menos
consciência do que fazemos, e podemos certamente errar muitas vezes,
valorizando e preferindo o que depois descobrimos serem ilusões. Mas não
podemos evitar e valorizar e preferir, porque valorizar e preferir são
constitutivas da ação e do pensamento”[5].
Esta noção de preferência, pela
qual preferimos umas coisas em detrimento de outras, ajuda-nos a perceber o
alcance do conceito de valor e do ato de valorizar. Ajuda-nos a compreender que
o valor não é apenas tudo aquilo que pode ser desejado, apreciado e louvado.
Contudo, o valor “impõe-se ao pensamento e à consideração de todos porque antes
de ser uma preferência, ele é uma prevalência”[6], ou
seja, não é apenas algo que nos leva a preferir alguma coisa, é aquilo que no
meio das possíveis escolhas preferenciais prevalece. Por esta linha de
pensamento se começa a desenhar a difícil tarefa de definir o que são os
valores, porque podemos sempre definir de acordo com uma ideia que eu tenho ou
como sendo características presentes nas coisas[7]. A
definição fica, assim, comprometida com a opção que tomamos.
Num sentido mais subjetivo diríamos
que o valor é uma qualidade que torna os objetos ou atos valiosos dignos de
serem apreciados e louvados, será aquilo que comunica importância e relevo
axiológico, ou seja, o critério com que estimamos e apreciamos todas as coisas.
Por outro lado, a prova da sua objetividade e o desejo da sua universalidade
reside nos esforços que a sua realização exige, se os valores são preferidos de
facto ou, pelo menos, de direito como um bem necessário e imprescindível à
realização de cada um, de cada sociedade.
Significa que todos reconhecemos
que o amor, a verdade, a justiça, a liberdade são valores superiores e mais
respeitáveis em relação ao ódio, à violência, à opressão, à injustiça. Por aqui
vemos que os valores apresentam uma bipolaridade,
não os podemos apenas pensar do lado bom, do lado do positivo, mas com dois
polos o positivo e o negativo: bem e mal; verdade e erro; belo e feio; correto
e incorreto. Quer isto dizer que quando dizemos que uma pessoa agiu mal, que
por fraqueza ou engano, propositada ou despropositadamente fez o mal, não
queremos dizer que agiu sem valores, queremos dizer que não aprovamos esses
valores. O mesmo acontece para a consideração de uma sociedade sem valores, de
uma denominada crise de valores, o mesmo não significa que a sociedade não se
rega por valores, mas que os mesmos possam não coincidir com os meus. Pois,
“quem declara que não há valores, quer na verdade dizer que a maior parte das
pessoas valorizam o que ele não valoriza e não valorizam o que ele valoriza”[8].
Esta bipolaridade permite-nos afirmar uma outra ideia, de que valorizar
não é uma atitude neutra perante as coisas, valorizar é preferir, é apreciar
determinadas ‘coisas’ em função de outras, é optar por um dos lados.
Se podemos, por um lado afirmar a bipolaridade dos valores, por outro,
podemos aferir que existem valores muito diferentes dos nossos, sendo que a
Filosofia dos Valores ou Axiologia os classifica fundamentalmente em três
domínios: da ética (como devemos agir e relacionarmos com os outros); da
estética (o domínio do belo e da arte) e da religião (a relação com o divino).
No âmbito dos valores éticos destacam-se a generosidade, a liberdade e a
justiça. No âmbito dos valores estéticos destacam-se a beleza, a harmonia, a
elegância, a originalidade. No âmbito dos valores religiosos destacam-se a fé e
o sagrado[9].
A par desta classificação podemos
fazer uma outra distinção que nos ajude a perceber o alcance da problemática
dos valores, é o que se refere à distinção entre valor intrínseco (algo que
vale por si mesmo) e valor instrumental (algo que vale enquanto meio para
alcançar um determinado fim que também tem valor). Desidério Murcho ao
introduzir esta noção[10] através
do exemplo do valor fundamental que é a vida, não a resolve, naturalmente
porque a mesma tem outras implicações sobretudo no que se refere ao tema do
multiculturalismo e da influência que a cultura exerce em determinados valores.
Assunto que será posteriormente analisado.
Acerca desta problemática dos
valores, impõe-se, ainda, uma outra distinção que nem sempre é óbvia ou sequer
aceite indiscutivelmente pela comunidade filosófica: juízos de facto e juízos
de valor[11].
Daniel Kolak e Raymond Martin dão-nos alguns exemplos simples pelos quais
reconhecemos esta distinção: “em vez de dizer (ou pensar) que é bom ser-se sincero quando se fala com
outras pessoas (um juízo de valor), poderia dizer que ser sincero promove
normalmente a compreensão mútua e a confiança (juízo factual) ”[12]. Quando
nos referimos a um juízo de facto não queremos dizer, por si só, que o juízo
seja correto, apenas que é um juízo sobre factos, podendo por esta razão serem
verdadeiros ou falsos. Por outro lado, o essencial para um juízo de valor é que
este expresse uma atitude favorável ou desfavorável[13].
Ao contrário dos juízos de facto
que nos fornecem informações acerca do mundo, os juízos de valor não se limitam
a descrever as coisas, não se limitam apenas a dar informações, mas expressam avaliações que procuram determinar
determinados comportamentos. Quer isto dizer, quando digo que alguém é honesto
ou, pelo contrário, desonesto, estou a querer circunscrever determinado
comportamento em detrimento de outro, sugere uma ‘espécie’ de atitude
normativa-descritiva. Mas o que faz com que considere superior a honestidade em
relação à desonestidade?
A resposta a esta distinção passará
pela opção das perspetivas, do subjetivismo de que os valores não podem ser
universalmente verdadeiros, ou do objetivismo, de que mesmo sendo
universalmente verdadeiros, desconhecemos a verdade acerca deles. Assunto que
será posteriormente abordado.
Centrando-nos ainda na distinção
que há pouco fazíamos entre juízo de facto e juízo de valor, referindo que a
mesma distinção não seria indiscutível pela comunidade filosófica, o Manual
adotado[14] explora
esta dificuldade pela questão da exclusividade, quer isto dizer que podem haver
duas posições acerca da distinção entre juízos de facto e juízos de valor, a
saber: nenhum juízo pode ser dos dois tipos; ou se todos os juízos são juízos
de facto, sendo que os juízos de valor são uma parte constituinte destes. A
opção do Manual passa pela aceitação da primeira posição alertando para
existência de dois problemas: primeiro, a classificação de um juízo de facto é
independente da consideração de saber ou vir a saber se esse juízo é verdadeiro
ou falso ou se depende das intenções de quem o exprime; segundo, alguns juízos
de facto exprimem preferências e valorações, quando estes juízos exprimem
preferências emitidos pelo próprio autor do juízo. Neste segundo caso, quer
dizer que alguns juízos de facto implicam
certos juízos de valores que podem, igualmente, ser tomados como verdadeiros ou
como falsos.
Júlio Maria
[1]
Cf. Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo,
1987, p. 1464. [2]
Cf. MURCHO, Desidério, Filosofia em
Directo, Fundação Francismo Manuel dos Santos, Coleção Ensaios da Fundação,
Ed. Relógio D’Água, Lisboa, 2011, p. 43. [3]
Idem, Ibidem, p. 43. [4]
Idem, Ibidem, p. 44. [5]
Idem, Ibidem, p. 45. [6]
Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, tomo 5, Ed, Verbo, 1987, p.
1469. [7]
KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria
sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, Ed. Temas e Debates,
Lisboa, 2004, pp. 150-151. [8]
MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo,
p. 46. [9] Cf. António Padrão, Valor, juízos de valor e teorias, http://criticanarede.com/valor.html (consultado a 22 de novembro
de 2016); Cf. Pedro Galvão, Valores e
valoração: a questão dos critérios valorativos, http://criticanarede.com/valores.html (consultado a 22 de novembro
de 2016) [10]
MURCHO, Desidério, Filosofia em Directo,
p. 48. [11]
KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria
sem respostas, Uma breve introdução à Filosofia, pp. 146-158. [12]
Idem, Ibidem, p. 146. [13]
Cf. Idem, Ibidem, p. 146. [14] LOPES, António; GALVÃO, Pedro; MATEUS, Paula, Razões de Ser, Filosofia 10º ano, Ed.
Porto Editora, Porto, 2016. Manual, pp. 80-83.