domingo, 19 de abril de 2009

Verdade


Onde há a palavra, há a verdade. A palavra é usada para conversar e sem verdade não há conversa. Usa-se a palavra para conversar sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos, memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, a conversa seria uma mera manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem triangulação possível entre si e a realidade. Numa conversa, não é indiferente afirmar que Sócrates era grego, o que é verdade, ou afirmar que era egípcio, o que é falso; não é indiferente afirmar que o racismo é imoral, o que é verdade, ou afirmar que as mulheres devem ser discriminadas, o que é falso.
A noção de verdade não é uma fantasia mitológica, como os deuses da antiguidade clássica, pois pode-se abandonar as noções mitológicas mas não a noção de verdade. Pode-se abandonar sem pena de incoerência a noção de Zeus porque se pode afirmar que é verdade que Zeus não existe. Mas não se pode abandonar sem pena de incoerência a noção de verdade porque não se pode afirmar que é verdade que a verdade não existe.
Sem verdade não há validade. A validade, no sentido lógico definitivamente estabelecido por Aristóteles, é uma relação entre valores de verdade. Um argumento é válido quando é impossível, ou improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. Se não existisse validade, qualquer mau argumento a favor da ideia de que há verdade seria tão bom quanto o melhor argumento contra tal ideia. Isto mostra que a noção de que não há verdade é arbitrária, pois quem a aceita tem de aceitar que há tão boas razões para a aceitar como para a rejeitar.
Sem validade não há argumentação e quando não há argumentação resta a manipulação e a força bruta de quem tem mais força: força física, força económica, força política. Contudo, por mais força política, económica ou física que tenha quem defende que a discriminação das mulheres é uma boa ideia, não poderá apresentar bons argumentos porque a verdade não está do seu lado. A força bruta compra muita coisa, mas não pode comprar a verdade.
A verdade não se submete à força bruta nem à crença forte. Contudo, uma superstição comum é que crer com muita firmeza em algo torna verdadeiro o objecto da crença. Esta superstição baseia-se numa confusão entre as noções de crença e de conhecimento. Quando se sabe realmente algo, o que se sabe é verdade: não é possível saber que Kant morreu em 1803 porque ele não morreu em 1803, apesar de ser possível estar enganado e pensar que se sabe que Kant morreu em 1803. Mas quando se tem uma certa crença, por mais forte que seja, o que se crê pode não ser verdade: é perfeitamente possível crer que Kant morreu em 1803, apesar de na verdade ele ter morrido em 1804. Pensar que a crença forte produz verdades é uma maneira infantil e vã de tentar garantir que os nossos desejos serão realizados se os desejarmos com muita firmeza.
Se a verdade não existisse, não faria sentido exigir responsabilidade pelas nossas crenças, convicções ou opiniões. Exige-se responsabilidade porque podemos estar enganados e podemos estar enganados porque a verdade pode não estar do nosso lado: podemos pensar que sabemos quando não sabemos. O filósofo e matemático britânico W. K. Clifford (1845-1879) defendeu que "é sempre incorrecto, seja onde for e para quem for, acreditar em algo sem provas suficientes" ("A Ética da Crença", 1877). Clifford apresenta o exemplo de um armador que envia o seu velho navio para mais uma longa viagem sem tomar precauções suficientes no que respeita à sua manutenção. Contra todas as evidências, o armador convence-se a si mesmo de que o navio está em condições de fazer uma última viagem, antes de sofrer reparações profundas. E envia o navio para o alto-mar, colocando a sua confiança na Providência. Quando o navio naufraga, morrendo toda a gente a bordo, o armador recolhe o dinheiro do seguro, com toda a paz de espírito. Clifford considera que o armador está em falta: a ética da crença obriga a ter o cuidado de não aceitar uma proposição sem ter suficientes provas a seu favor. O armador continuaria em falta mesmo que o navio não tivesse naufragado — porque ele tinha razões para acreditar que o navio corria um sério risco de naufragar, tendo activamente bloqueado tal crença só porque lhe era incómoda.

Desidério Murcho

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Desejo e sentido da vida iii


Parte III
É bastante deprimente supor que mesmo eros (desejo) é contaminado por thanatos (morte). Mas talvez o vício da abstracção esteja em funcionamento mais uma vez. Se prestarmos atenção a algumas obras de arte, concluímos que o desejo erótico tem a morte no seu centro. Não paramos para reflectir que era o artista que sentia a necessidade do tema dos amantes fatais, suprimindo a referência a quaisquer prazeres e alegrias comuns. O artista tem boas razões para construir Jack e Jill como Romeu e Julieta. Mas provavelmente Jack e Jill são em si bastante mais alegres. A tragédia não é inevitável nem habitualmente desejada.
Do mesmo modo, deslizamos para a abstracção quando perguntamos se a vida em bloco, como se de uma massa informe se tratasse, "tem um sentido", talvez imaginando algum observador externo, o qual até podemos ser nós próprios para além do túmulo, olhando para trás. Preocupa-nos que o observador domine com o seu olhar a totalidade do espaço e do tempo e que a nossa vida encolha até não ser nada, apenas um insignificante e infinitesimal fragmento do todo. "O silêncio desses espaços infinitos aterroriza-me", disse Blaise Pascal (1623-62).
Mas Frank Ramsey (1903-30), o filósofo de Cambridge, respondeu:
Onde eu pareço divergir de alguns dos meus amigos é em conceder pouca importância ao tamanho das coisas. Não me sinto nem um pouco humilhado perante a vastidão dos céus. As estrelas podem ser enormes, mas não podem pensar ou amar; e estas são qualidades que me impressionam bastante mais do que o tamanho. Não me acrescenta qualquer importância o facto de eu pesar 108 quilos.
A minha descrição do mundo é elaborada em perspectiva e não como um modelo em escala. O solo é ocupado por seres humanos e as estrelas são todas tão pequenas como moedas de três dinheiros.
Quando perguntamos se a vida tem sentido, a primeira questão terá de ser: para quem? Para um observador com a totalidade do espaço e do tempo no seu olhar, nada a uma escala humana terá sentido (é difícil imaginar como é que ela pode ser de todo visível — há uma medonha quantidade de espaço lá longe). Mas por que razão a nossa insignificância no interior dessa perspectiva deverá esmagar-nos? Suponha-se em vez disso que temos em mente uma audiência que desceu à nossa medida. Alguém que dedica a sua vida a algum objectivo, como a cura do cancro, pode perguntar se a sua vida tem sentido, e a sua preocupação será se tem sentido para aqueles para quem trabalha. Se o seu trabalho for bem sucedido, ou se a geração seguinte o tiver em conta, a sua vida terá tido sentido. Para algumas pessoas, é dolorosa a ideia de que o seu trabalho possa falhar e não deixar memória. Outros arranjam-se muito bem com isso: afinal, muito, muito poucos mesmo, deixam atrás de si realizações que suscitam a admiração contínua da próxima geração, para não falar das gerações que vierem a seguir. Isto é tristemente verdade mesmo em departamentos de filosofia.
Talvez nos vejamos a nós próprios na posição de juiz: cada um de nós pergunta se a vida tem sentido para si, aqui e agora. E nesse caso a resposta depende. A vida é uma corrente de acontecimentos vividos no interior da qual há frequentemente bastante sentido — para nós próprios e os que nos rodeiam. O arquitecto Mies van der Rohe disse que Deus está nos pormenores e o mesmo é verdade acerca do sentido da vida para nós, aqui e agora. O sorriso do filho significa tudo para a mãe, a carícia significa beatitude para o amante, a mudança de frase significa felicidade para o escritor. O sentido vem da entrega e do prazer, da corrente de pormenores que são importantes para nós. O problema que há com a vida é então o de ela ter demasiado sentido. Todavia, se o estado de espírito é outro, tudo é penoso. Como Hamlet, estamos determinados a esquivar-nos do carnaval humano, não vendo senão a caveira debaixo da pele. É triste quando nos tornamos seres humanos assim e mais uma vez precisamos de um tónico de preferência a um argumento. Ou talvez neste caso, o único bom argumento, numa famosa frase de Hume, é que não há nenhuma maneira de fazer de ti uma pessoa útil ou agradável para ti próprio ou para os outros.
Simon Blackburn

sábado, 11 de abril de 2009

Desejo e sentido da vida ii


Parte II
Vaidade das vaidades, diz o pregador, vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que benefício retira o homem de todo o seu labor na terra?
Acima de tudo, os mortos têm de ser invejados. A morte é preciosa. Melhor seria não ter nascido, mas uma vez nascido, o melhor será morrer depressa.
O perigo aqui consiste naquilo a que o filósofo George Berkeley (1685-1753) chamou o vício da abstracção, "a rede subtil e elegante de ideias abstractas que deixam os espíritos dos homens tão miseravelmente perplexos e enredados". É mais fácil lamentar a natureza irrisória do desejo e as suas inconsistências se não nos centrarmos em nada, mantendo a discussão em termos abstractos. Desse modo, parece desolador se a satisfação do desejo é efémera e o próprio desejo é instável e susceptível de dar origem apenas a mais insatisfação. Mas será que isto é de lamentar? Pensando em termos concretos, supõe que nos apetece um bom jantar e que ele nos deu prazer. Deverá envenenar o prazer que tivemos a reflexão de que o prazer é efémero (o prazer deste jantar não subsistirá para sempre), de que o desejo de um bom jantar não perdura (mais tarde não sentiremos fome) ou é apenas temporariamente satisfeito (iremos querer jantar amanhã outra vez)? A verdade é que a vida não se tornaria melhor se quiséssemos sempre um jantar, ou se, tendo jantado, não quiséssemos mais nenhum jantar, ou se aquele jantar bastasse para toda a vida. Nenhuma destas coisas parece remotamente desejável; logo, porquê lamentarmo-nos se as coisas não são assim?
Se a disposição pessimista abandonar a abstracção de certas ideias, tenderá a concentrar-se em desejos problemáticos, tais como o desejo de riqueza, ou o desejo erótico. É fácil argumentar que estes desejos são intrinsecamente insaciáveis, pelo menos para algumas pessoas durante algum tempo. Da aquisição de riqueza resulta frequentemente ou a exigência de mais riqueza, ou a incapacidade de gozar o que se tem. O nosso bem-estar pode ser destruído pela pobreza, mas a mais breve consideração das vidas dos ricos não sugere que o bem-estar aumenta indefinidamente com mais riqueza. Muitas pessoas são hoje mais ricas do que qualquer pessoa alguma vez foi, mas serão mais felizes? Estatísticas sociais relevantes, como taxas de suicídio, não o sugerem. Os fechados e vigiados guetos dos ricos, como o American Governor's Club, dificilmente permitem testemunhar vidas felizes e invejáveis. E, seguindo Veblen, podemos esperar que o aumento de riqueza simplesmente fará subir a fronteira a partir da qual a vaidade exigirá que os ricos se distingam. Esta é uma das coisas desencorajadoras acerca da desencorajadora ciência económica.
O desejo erótico, outra carta de trunfo dos pessimistas, é notoriamente insatisfeito e incerto, além de que oferece apenas realização parcial. Provavelmente nunca chegaremos a possuir tanto outra pessoa quanto realmente desejaríamos. A arte não tem tido dificuldade em ligar o desejo erótico ao desejo de morte e aniquilação. O próprio amor é uma espécie de morte — o amante é penetrado ou atacado. Nesta tradição, os delírios do amor, especialmente o orgasmo (em francês une petite mort, "uma pequena morte"), são símbolos da morte real. Argumenta-se que as mortes em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta indicam o desejo oculto dos amantes de extinção conjunta. Na arte é extraordinariamente perigoso ser uma mulher apaixonada, como nos lembra a interminável procissão de Ofélias, Violetas, Toscas e Mimis.

Simon Blackburn

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Desejo e sentido da vida


Alguns moralistas recomendam que a vida "autêntica" não significa simplesmente lembrarmo-nos de que um dia morreremos, mas de alguma maneira viver permanentemente com a consciência desse facto, "viver-para-a-morte". O poeta John Donne tinha mesmo o seu próprio retrato em que aparecia pintado de mortalha, antecipando cheio de esperança a maneira como iria encarar o Juízo Final. Todavia, a maioria das pessoas não acha a preocupação de Donne particularmente saudável. De facto, tal estado de espírito prevalece apenas em condições de instabilidade social e impotência política, correspondendo a uma tendência para o pessimismo e o suicídio entre a intelligentsia. Ora, não é fácil argumentar com um estado de espírito. Se o poeta se sente atraído pela serenidade da morte, ou nauseado pela desordem humana, talvez precise de uma mudança de governo, ou de um tónico, ou de umas férias, de preferência a um argumento.
A obsessão pela morte pode correr o perigo de inconsistência. É inconsistente a veemência de que a morte é uma coisa boa, e até um luxo em si, e que ao mesmo tempo o que torna a vida absurda e ilusória é que ela tem um fim. Mas por que razão é isto um problema se a morte é estimável?
Apesar de argumentarem que a morte não é para ser temida, os estóicos não promoveram qualquer preocupação mórbida com a morte. Em vez disso, tal como o uso moderno do seu nome sugere, a sua mensagem era de força de espírito e resignação perante a morte, ou de fatalismo em face do inevitável desenrolar dos acontecimentos. A atitude estóica está enraizada numa das conotações populares do próprio termo "filosofia", como se pode ver no comentário de uma pessoa sobre a desgraça de outra: "encara as coisas filosoficamente — simplesmente não penses nisso." P. G. Wodehouse provavelmente tem a última palavra sobre este aspecto dos Estóicos. Jeeves consola Bertie:
"Não sei se posso chamar a sua atenção para uma observação do imperador Marco Aurélio. Disse ele: "Acontece-te o que quer que seja? Isso é bom. Faz parte do destino de Universo determinado para ti desde o início. Tudo o que te acontece faz parte da grande rede".
Respirei com um estertor.
"Ele disse realmente isso?"
"Sim, Sir."
"Bem, podes dizer-lhe da minha parte que ele é um idiota. As minhas malas estão prontas?
Como Bertie observou judiciosamente mais tarde: "Duvido, como questão de facto, se o que Marco Aurélio afirmou poderá alguma vez dar moral às tropas quando elas se deparam com um destino terrível: terás de querer esperar que a agonia se abata sobre ti."
Os filósofos e poetas que tentam reconciliar-nos com a morte não o fazem habitualmente com argumentos tão incisivos como os Estóicos, nem com o fatalismo Estóico, mas lamentando-se da própria vida. Já todos ouvimos o funesto refrão: o mundo não é senão discórdia, instabilidade e desordem. A vida é tédio e fardo. As suas esperanças ilusórias, os seus prazeres insignificantes. O desejo é infinito e insaciável; a satisfação não traz apaziguamento. Carpe Diem (aproveita o dia) — mas não podes aproveitar o dia porque o dia se desvanece enquanto tentas fazê-lo. Tudo mergulha no abismo, nada é estável; palácios e impérios desfazem-se em pó; friamente, o universo move-se e tudo será no fim esquecido.

Simon Blackburn

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Direitos dos animais e erros dos humanos viii


Parte VIII
Conclusão
Compreendo que a afirmação de que há limites morais significativos para o modo como podemos legitimamente tratar os animais opõe-se bastante à atitude para com eles que nos foi legada, pois, enquanto a maior parte das pessoas pensa que é errado ou pelo menos de mau gosto torturar animais, a maioria geralmente assume que os animais estão aqui para nossa utilização. Nesse ponto, a minha perspectiva é um afastamento radical da nossa herança cultural. Mas, à luz dos argumentos apresentados, é um afastamento com mérito.
Não sei exactamente até onde leva esta perspectiva. Não sei se toda a experimentação animal é injustificada, não sei exactamente como lidar com algumas pragas, o que fazer com o gado actualmente existente, etc.. Mas o facto de que nem todos os pormenores estão pensados não pode ser considerado contra a afirmação de que a nossa perspectiva presente é moralmente inaceitável. Quando as mulheres começaram a exercer pressão a favor do direito de voto ou da igualdade de direitos em geral, não sabiam exactamente onde é que as suas reivindicações nos levariam. E ainda não sabem; nem eu. Mas estou bastante confiante de que é uma mudança para melhor, muito embora os pormenores específicos das mudanças só se venham a revelar com o tempo. E o mesmo é verdade sobre o tratamento que destinamos aos animais. Talvez um dia as nossas crianças olharão para a geração presente e questionar-se-ão sobre como é que nós alguma vez acreditámos que era tolerável tratar os animais da maneira que os tratamos. Eu espero sinceramente que sim.

Hugo LaFollette

terça-feira, 7 de abril de 2009

Direitos dos animais e erros dos humanos vii


Parte VII
E se criássemos os animais humanamente?
Alguém poderia opor-se à minha perspectiva da seguinte maneira: eu tenho defendido que nós devemos não infligir dor nos animais. Mas, e se nós os criássemos humanamente e os matássemos rapidamente (e, assim, de forma relativamente indolor)? Daria o meu argumento alguma razão para supor que comer animais nestas condições seria errado? Se não, com que base poderia alguém opor-se plausivelmente a comer carne nestas condições?
Esta é uma questão teórica interessante. Mas antes de tentar responder-lhe, devo deixar claro que a resposta não tem qualquer influência sobre como devemos actuar na situação presente. Como fiz notar antes, há fortes questões económicas que tornam a criação humana de animais altamente improvável. Consequentemente, é provável que nós nunca tenhamos que decidir se devemos comer animais criados humanamente. Assim, mesmo que fosse moralmente permissível comer carne nestas circunstâncias imaginárias, continuaria a ser inaceitável comermos carne nas circunstâncias actuais (embora, é claro, nada disto invalide o trabalho para conseguir métodos mais humanos de criar os animais na pecuária).
Em segundo lugar, se, ao contrário de todas as expectativas razoáveis, começássemos a criar humanamente animais na pecuária, a carne resultante seria tão cara que o consumo ficaria fortemente limitado. Assim, uma vez mais, é provável que poucos de nós se deparassem com um verdadeiro dilema sobre comer animais criados humanamente.
Mas suponhamos, contrariamente à realidade, que poderíamos obter carne de animais que sofressem apenas ligeiramente (porque a carne teria um preço razoável). Seria, então, moralmente permissível comê-los? Aqui a resposta, parece, é mais complicada. Tenho estado primeiramente preocupado em mostrar que o tratamento presente que dedicamos aos animais é moralmente indefensável, uma vez que a prática da pecuária intensiva lhes causa uma dor significativa e desnecessária. Assim, a relevância do meu argumento para este caso hipotético não é óbvia.
Escolhi usar o argumento que usei porque era simples, embora convincente. Isto é, parece virtualmente inquestionável que é errado infligir dor desnecessária em seres sencientes, e que as nossas práticas presentes causam, de facto, esse tipo de dor aos animais. Mais ainda, uma vez que a nossa única opção genuína é entre comer animais criados de forma não humana ou tornar-nos vegetarianos, então este argumento é mais do que suficiente para os fins em causa. Todavia, parece realmente apropriado no fim deste artigo entrar em ousadas conjecturas especulativas.
A minha perspectiva, de algum modo tentadora, é a seguinte: o argumento da dor necessária ajuda-nos a aperceber-nos de que há limites morais sobre como devemos usar legitimamente os animais. Mais ainda, estes limites surgem devido aos interesses dos animais em si mesmos, e não devido a nenhum interesse parasitário que os humanos tenham neles.
Mas isso significa dizer que os animais são, em pelo menos algum sentido significativo, fins em si mesmos, coisas que não podem ser legitimamente usadas meramente como meios para fins humanos. Se, contudo, o facto de serem fins em si mesmos faz com que seja ilegítimo infligir neles dor para satisfazer o nosso palato, parece que também talvez não seja razoável matar animais para estimular o nosso palato - mesmo que eles tenham sido criados humanamente.
Reconheço que esta resposta não será inteiramente convincente. Isso não é surpreendente. Eu não estou sequer inteiramente convencido da sua força. Em todo o caso, parece uma extensão plausível do argumento anterior. E, mesmo que não seja totalmente adequado, estou inclinado a adoptar um princípio de precaução aqui: é melhor abstermo-nos de cometer acções que podem ser seriamente imorais (mesmo que não estejamos certos de que o são) se os ganhos potenciais da acção questionável são mínimos; termos o palato estimulado de determinada forma parece ser claramente um ganho mínimo. Mais ainda, uma vez que a escolha moral que realmente enfrentamos não é como agiríamos neste caso hipotético, mas como devemos agir no mundo real, então esta admissão não é minimamente prejudicial para o argumento apresentado aqui.

Hugo LaFollette

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Direitos dos animais e erros dos humanos vi


Parte VI
A senciência não é suficiente
Alguns comentadores, e mais destacadamente R. G. Frey (1980), argumentaram que, embora os animais sejam sencientes, não são sapientes, isto é, não podem raciocinar. Assim, afirma ele (para recuperar o argumento anterior), nós podemos usá-los para os nossos próprios fins.
Anteriormente, tentei defender que os animais não precisam de ser sapientes para merecerem o nosso respeito. O simples facto de que eles podem sentir dor sustenta a afirmação de que é errado infligir-lhes dor desnecessária. Agora quero contrariar o argumento de Frey, segundo o qual os animais não são racionais. Ele argumenta que os animais não podem raciocinar. Qualquer comportamento animal que parece racional, afirma ele, é meramente instintivo. Para ser racional, um ser precisa de ter crenças e nós não temos razões para supor que os animais têm crenças. Porquê? Porque eles não têm o uso genuíno da linguagem. Nem são capazes de mentir ou de afirmar deliberadamente algo de falso.
A afirmação de que estes animais não têm linguagem ou pensamento parece altamente questionável. Uma série de estudos com chimpanzés e macacos mostrou que eles têm a capacidade de aprender linguagem gestual (Gardner and Gardner, 1969). Uma vez que tenham dominado a linguagem, eles comunicam com os outros humanos; soube-se que alguns ensinaram a linguagem gestual aos outros primatas.
Frey, contudo, afirma que este comportamento é apenas mimetismo ou uma resposta a estímulos. Isso parece errado, pois vários animais mostraram combinar palavras de maneiras que nunca tinham aprendido, em suma, criando novas palavras. Mais ainda, há pelo menos um caso registado de um babuíno que mentiu. E alguns investigadores afirmaram que os golfinhos são capazes de aprender a sintaxe (regras de gramática), bem como o significado de certas palavras (Griffin, 1976). Dado que tais experiências são razoavelmente novas e são promissoras, devemos concluir com Griffin que os animais, mesmo os que estão consideravelmente mais abaixo na cadeia evolutiva, podem ser capazes de pelo menos terem um pensamento rudimentar.

Hugo LaFollette