segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Argumentos dedutivos e indutivos

Desidério Murcho
É comum falar em argumentos dedutivos, opondo-os aos indutivos. Este artigo procura mostrar que há um conjunto de aspectos subtis que devem ser tidos em linha de conta, caso contrário será tudo muito confuso.
Antes de mais: a expressão "argumento indutivo" ou "indução" dá origem a confusões porque se pode ter dois tipos muito diferentes de argumentos: as generalizações e as previsões. Uma generalização é um argumento como

Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, todos os corvos são pretos.

Numa generalização parte-se de algumas verdades acerca de alguns membros de um dado domínio e generaliza-se essas verdades para todos os membros desse domínio, ou pelo menos para mais.
Uma previsão é um argumento como

Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, o próximo corvo que observarmos será preto.

Uma pessoa imaginativa e com vontade de reduzir coisas — uma síndrome comum em filosofia — pode querer afirmar que podemos reduzir as previsões às generalizações via dedução: a conclusão da previsão acima segue-se dedutivamente da conclusão da generalização anterior. Não acho que isto capta de modo algum a natureza lógica ou conceptual da previsão, mas isso não é relevante neste artigo. O que conta é que, mesmo que a previsão seja redutível à generalização mais dedução, continua a ser um modo comum de falar e uma parte importante do nosso pensamento.
Numa veia ainda reducionista, algumas pessoas poderão querer dizer que todos os outros tipos de argumentos não dedutivos se reduzem à generalização e à previsão. Assim, não valeria a pena falar de argumentos de autoridade, por exemplo, que são argumentos como o seguinte:

Einstein afirmou que não se pode viajar mais depressa do que a luz.
Logo, não se pode viajar mais depressa do que a luz.

Uma vez mais: pode ser que este tipo de argumentos seja redutível à generalização e à previsão. Mas é útil compreender que este tipo de argumentos tem exigências próprias e portanto é útil falar deles explicitamente, ainda que se trate de um tipo de inferência redutível a qualquer outro tipo ou tipos.
Dados estes esclarecimentos, importa agora esclarecer o seguinte: O que é um argumento dedutivo? E como se distingue tal coisa de um argumento indutivo?
Vou começar por dizer o modo como não se deve entender estas noções. A primeira coisa a não fazer é pensar que um argumento dedutivo se caracteriza por ser impossível a sua conclusão ser falsa se as suas premissas forem verdadeiras. Pensar isto provoca confusão porque significaria que não há argumentos dedutivos inválidos. Porquê? Porque só nos argumentos dedutivos válidos é impossível a conclusão ser falsa se as suas premissas forem verdadeiras; nos argumentos dedutivos inválidos, nas falácias (como a afirmação da antecedente, por exemplo) é perfeitamente possível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa.
Em termos rigorosos, não há problema algum com esta opção; significa apenas que estamos a dar ao termo "dedução" força factiva, como damos ao termo "demonstração". Do mesmo modo que não há demonstrações inválidas, também não há, de acordo com esta opção, deduções inválidas. Se é uma dedução, é válida; se é uma demostração, é válida. Uma "demonstração" inválida nada demonstra; uma "dedução" inválida nada deduz.
O primeiro problema desta opção é exigir a reforma do modo como geralmente se fala e escreve sobre argumentos dedutivos — pois é comum falar de argumentos dedutivos inválidos, como as falácias formais (por oposição às informais). Este problema não é decisivo, caso não se levantasse outro problema: o segundo.
O segundo problema é o seguinte: Dado que todos os argumentos são dedutivos ou não dedutivos (ou indutivos, se quisermos reduzir todo o campo da não dedução à indução), e dado que não faz muito sentido usar o termo "dedução" factivamente e o termo "indução" não factivamente, o resultado bizarro é que deixa de haver argumentos inválidos. O termo "argumento" torna-se factivo tal como os termos "dedução" e "indução". E isto já é demasiado rebuscado; as pessoas não usam mesmo o termo deste modo, nunca; passamos a vida a falar de argumentos inválidos. E faz todo o sentido que o façamos, pois se adoptarmos o entendimento factivo do termo um "argumento" inválido não é de todo em todo um argumento: é apenas um conjunto de proposições.
É sem dúvida possível aceitar o resultado bizarro, e passar a usar o termo "argumento" factivamente. Mas se tivermos a possibilidade de o evitar, de forma fundamentada e reflectida, estaremos a facilitar as coisas — sobretudo ao nível do ensino.
E temos possibilidade de evitar este resultado bizarro, e manter o uso de "argumento" de tal modo que faça sentido falar de argumentos inválidos, de deduções inválidas e de induções inválidas. Para o fazer temos de distinguir cuidadosamente a noção de argumento (dedutivo ou não) da noção de validade (dedutiva ou não). Podemos, claro, usar um termo diferente para a validade não dedutiva, e reservar o termo "validade" para a validade dedutiva, mas esta é uma mera opção terminológica: tanto faz. O que é crucial é poder dizer que um argumento é dedutivo, apesar de inválido, ou indutivo, apesar de inválido. E como se faz isso?
Apresentando os argumentos dedutivos como argumentos cuja validade ou invalidade depende exclusivamente da sua forma lógica; e os argumentos não dedutivos como argumentos cuja validade ou invalidade não depende exclusivamente da sua forma lógica. Evidentemente, isto não se aplica a todos os argumentos dedutivos, mas esta é uma complicação que esclareceremos dentro de momentos. Para já, vejamos alguns exemplos:
Se Sócrates era ateniense, era grego.
Sócrates era grego.
Logo, era ateniense.
Se Sócrates era ateniense, era grego.
Sócrates era ateniense.
Logo, era grego.

O primeiro argumento é inválido. Mas qualquer argumento indutivo, ainda que válido, sofre deste tipo de invalidade dedutiva. Devemos então dizer que os argumentos dedutivamente inválidos não se distinguem dos argumentos indutivos válidos? Claro que não, dado que eles se distinguem muito claramente uns dos outros.
O primeiro argumento é dedutivamente inválido porque a sua invalidade pode ser explicada recorrendo unicamente à sua forma lógica. Mas seria uma enorme falta de sensibilidade lógica abandonar uma indução boa com base no facto de a sua forma lógica e a verdade das suas premissas não garantir a verdade da sua conclusão.
Assim, um argumento é dedutivo ou indutivo em função da explicação mais adequada que tivermos para a sua validade ou invalidade. Um argumento dedutivo inválido explica-se adequadamente recorrendo unicamente à sua forma lógica, no sentido em que a sua forma lógica é suficiente para distinguir os argumentos dedutivos inválidos dos válidos; o mesmo não acontece com os argumentos indutivos, pois a sua validade ou invalidade não depende exclusivamente da sua forma lógica.
Deste modo, podemos manter a tradição de falar de argumentos dedutivos e indutivos; e podemos dizer que há argumentos dedutivos inválidos; e não somos forçados a aceitar que todo o argumento indutivo, por melhor que seja, é sempre um argumento dedutivo inválido. Isto não acontece porque os argumentos dedutivos nunca são indutivos, ainda que sejam inválidos. Porque o que conta é o tipo de explicação adequada para a sua validade ou invalidade.
Em termos primitivos, pois, o que conta é a validade e invalidade; há diferentes tipos de validade e invalidade: a dedutiva e a indutiva. E os argumentos são dedutivos ou indutivos consoante a sua validade ou invalidade for dedutiva ou indutiva.
É agora tempo de esclarecer que nem todos os argumentos dedutivos dependem exclusivamente da sua forma lógica; há argumentos dedutivos de carácter conceptual, como "O João é casado; logo, não é solteiro". Não é difícil acomodar estas variedades de dedução não formal no esquema aqui proposto: tudo depende da melhor explicação disponível para a validade ou invalidade em causa.
Podemos assim continuar a falar de argumentos dedutivos e indutivos, validos ou inválidos. E os argumentos dedutivos inválidos nunca são uma subclasse dos argumentos indutivos.

Nota: Agradeço a Ricardo Santos, que levantou dúvidas relacionadas com este tema em conexão com o modo como no manual A Arte de Pensar as noções de argumento dedutivo e indutivo são apresentadas. Também Álvaro Nunes fez alguns comentários relacionados que me levaram a tentar esclarecer este tema. 

O que é o modelo crença-desejo?

Pedro Madeira
Resumo
Na primeira secção, explica-se de que teses é composto o modelo crença-desejo. Na segunda secção, procura-se desfazer um erro muito fácil de cometer: o de pensar que racionalizar uma acção é a mesma coisa que mostrar que essa acção é racional. Na parte final da secção, dão-se mais alguns esclarecimentos rápidos acerca de a). Na terceira secção, explica-se em que consiste o carácter intensional das descrições de acções. Avisa-se que é preciso não confundir "intenção" com "intensão". Na quarta secção, reformula-se a tese b) face a algumas conclusões a que chegámos anteriomente. Na quinta secção, questiona-se se b) devia mesmo fazer parte da definição canónica do modelo crença-desejo. Na sexta secção, procura-se fazer sentido de uma ideia geral que costuma estar associada ao modelo crença-desejo: a de que o desejo e a crença não têm igual estatuto; o desejo é o parceiro dominante da relação, por assim dizer. Uma maneira de expressar esta ideia é dizer que a crença e o desejo têm diferentes direcções de correspondência. Na última secção, recorda-se que o ojectivo do ensaio não foi o de criticar o modelo crença-desejo, mas sim procurar formulá-lo do modo mais preciso possível.

domingo, 30 de outubro de 2016

ARGUMENTOS NÃO-DEDUTIVOS

Como vimos há argumentos cuja validade não depende exclusivamente da sua forma lógica, nem da sua forma lógica juntamente com os conceitos envolvidos. Podemos chamar “não-dedutivos” a esses argumentos. Afirma-se por vezes que nos argumentos dedutivos se “parte do geral para o particular” e que nos argumentos não dedutivos se “parte do particular para o geral”. Isto é falso como se vê nos seguintes exemplos:
1)    Alguns filósofos são gregos.
Logo, alguns gregos são filósofos.
2)    Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, o corvo do João é preto.
1 é um argumento dedutivo, e no entanto não parte do geral para o particular. Tanto a premissa como a conclusão são particulares. E 2 é um argumento não-dedutivo. No entanto, não parte do particular para vo geral. A premissa é geral[1] e a conclusão particular.
Há quatro características que distinguem os argumentos dedutivos dos não-dedutivos:
1.    A validade de um argumento não dedutivo nunca depende unicamente da sua forma, ao passo que a validade de alguns argumentos dedutivos depende unicamente da sua forma. Por exemplo, qualquer argumento que tenha a forma de um modus ponens é válido. Mas os argumentos não-dedutivos válidos têm a mesma forma lógica do que os argumentos não-dedutivos inválidos.
Considere-se os seguintes exemplos:
1)    Todos os corvos que vi até hoje eram pretos.
Logo, todos os corvos  são pretos.
2)    Todos os corvos que vi até hoje nasceram antes de 2010.
Logo, todos os corvos nascem antes do ano 2010.
O argumento 1 tem uma certa força indutiva. Mas o 2 é muito mau. Todavia, têm ambos a mesma forma lógica:
x (se Fx e Gx, então Hx).
Logo, (se Fx, então Hx)
2.    Nos argumentos não-dedutivos válidos é logicamente possível, mas improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; mas nos argumentos dedutivos válidos é logicamente impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Como vimos, esta impossibilidade resulta unicamente da forma dos argumentos, ou da forma do argumento juntamente com os conceitos usados. Mas isto nunca acontece nos argumentos não-dedutivos. Por muito forte que seja um argumento, será sempre logicamente possível, que a sua conclusão seja falsa, apesar de as suas premissas serem verdadeiras.
Considere-se o seguinte exemplo:
Todos os corvos observados até hoje pesam menos de 5 quilos.
Logo, o corvo do João pesa menos de 5 quilos.
Este argumento indutivo é muito forte. Contudo, não é logicamente impossível que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. Há várias circunstâncias em que a premissa é verdadeira e a conclusão falsa: o João pode ter descoberto uma forma de fazer os corvos crescer desmesuradamente, o corvo do João pode ter uma doença rara, pode ter sido sujeito a radiações especiais, etc. Contudo, todas estas circunstâncias, apesar de logicamente possíveis, são muito improváveis. Mas num argumento dedutivamente válido é impossível, e não apenas improvável, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa.
3.    Os argumentos dedutivos são válidos ou inválidos, sem admitir graus de validade; mas a validade dos argumentos não-dedutivos admite graus. Por exemplo, o argumento 1 acima é mais forte do que o 2. Mas há muitos argumentos indutivos mais fortes do que 1, nomeadamente os argumentos que justificam as leis da biologia, por exemplo, que resultam de um estudo muito mais sistemático da natureza do que a mera observação assistemática dos corvos.
4.    Os argumentos não-dedutivos são “abertos”. Na linguagem especializada diz-se que os argumentos não-dedutivas não são “monotónicos”. Vejamos um exemplo:
Todos os corvos que vi até hoje viveram depois de 1965.
Logo, todos os corvos viveram depois de 1965.
Este argumento é muito fraco porque a sua conclusão é “derrotada” pelo conhecimento que temos de que já havia corvos antes de eu ter nascido. Todavia, isto acontece sem que a sua premissa seja falsa. Acontece apenas que há conhecimento relevante, exterior ao argumento, que derrota a conclusão e torna o argumento fraco. Isto não acontece com os argumentos dedutivos estudados na lógica clássica. Neste sentido, os argumentos não-dedutivos são “abertos”, pois um argumento não-dedutivo considerado forte pode vir a ser considerado fraco ao descobrir-se informação que derrota a sua conclusão, sem todavia falsificar qualquer uma das premissas.
MURCHO, Desidério, O Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 102-104



[1] Ainda que se considere que a premissa é particular (porque declara que só alguns corvos – os observados – são pretos), estamos perante um argumento não-dedutivo que não “parte” do particular para o geral, dado que a conclusão é particular.

Agência

Aristóteles definiu o homem como sendo o animal racional. Prima facie, um animal é racional se, e somente se, de uma forma geral, age racionalmente. Mas o que é agir racionalmente?
            A resposta aristotélica a esta pergunta encontra-se na Ética Nicomaqueia. Aí Aristóteles delineia os contornos da sua teoria da acção racional. Esta pode ser resumida através da seguinte tese. Uma acção é racional se, e somente se, pode ser representada como constituindo o resultado da exemplificação por um dado agente A do seguinte silogismo prático:

a tem um desejo d o conteúdo do qual é e;
a tem uma crença g o conteúdo da qual é que fazer q é a melhor maneira de alcançar e;
\ a faz q.

            Um indivíduo cujas acções admitem ser derivadas de acordo com este algoritmo é então um indivíduo que age racionalmente ou um agente racional. Por outro lado, um indivíduo acerca do qual as premissas do silogismo prático são, em cada circunstância, verdadeiras, mas que, nas circunstâncias nas quais elas são verdadeiras, não se comporta de acordo com a conclusão do mesmo é um indivíduo que age irracionalmente; não é, portanto, um agente racional.
            A avaliação desta teoria coloca-nos perante uma encruzilhada fundamental: será que, dada a natureza das nossas atribuições de crenças e desejos, é possível determinar em cada caso o valor de verdade das premissas de forma independente da determinação do valor de verdade da conclusão? Ou será que a teoria tem uma validade a priori e que é apenas por intermédio da sua pressuposição que atribuímos crenças e desejos aos agentes?
            A opção por uma resposta afirmativa à primeira pergunta coloca-nos dois novos e difíceis problemas: primeiro, quais são então as condições de verdade das frases que ocorrem nas premissas? segundo, se não somos obrigados pelo nosso próprio quadro conceptual a associar a verdade das premissas à verdade da conclusão, então, e uma vez que a conexão entre elas não é uma conexão lógica, a verdade das premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático deveriam encontrar-se entre si numa relação apenas contingente.
            Comecemos por considerar este segundo problema. Se a relação entre as premissas e a conclusão do silogismo prático é apenas contingente, então deveria ser possível, pelo menos, colocar a hipótese de que a teoria poderia ser falsa a nosso respeito. Mas a consideração desta última possibilidade parece, por seu turno, conduzir-nos à seguinte alternativa indesejável: ou se pode dar o caso de que seres racionais sejam os protagonistas de acções irracionais ou se pode dar o caso de que o homem não seja racional. Ora, o primeiro termo desta alternativa tem um toque de paradoxo e o seu segundo termo parece pôr em causa os fundamentos da nossa concepção do humano. O primeiro problema, por seu lado, tem alimentado todo um ramo de investigação filosófica sem que se tenha chegado a qualquer acordo substancial sobre a questão.
            A opção por uma resposta afirmativa à segunda pergunta da encruzilhada mencionada acima leva-nos também para caminhos difíceis. Com efeito, a selecção deste termo da alternativa parece levar a que se tenha que pôr em causa o valor psicológico da teoria. Na realidade, se a teoria é válida a priori e se é apenas por ela constituir o quadro conceptual por intermédio do qual nós percepcionamos os comportamentos humanos como acções de sujeitos racionais que nós podemos, em cada caso, transformar as frases abertas das premissas em frases propriamente ditas, então a teoria torna-se psicologicamente vazia. Isto é, se este é o caminho correcto para sair da encruzilhada, então quando dizemos que o fulano A fez T porque A tinha um desejo D o conteúdo do qual era E e A tinha uma crença C o conteúdo da qual era que fazer T seria a melhor maneira de agir para alcançar E, não estaremos a dizer outra coisa senão que A é uma pessoa, o comportamento da qual nós somos, ipso facto, levados a interpretar como sendo o de um sujeito racional. A causa eficiente das movimentações observáveis de A fica, porém, totalmente por esclarecer e, portanto, a teoria não tem valor empírico.
            A despeito desta dificuldade, Platão parece ter favorecido a opção por algo como este caminho. Com efeito, ele considera no Protágoras que não é possível imaginar-se que alguém dotado de desejos e crenças possa agir contra a sua própria crença acerca de qual é a melhor forma de agir numa dada ocasião para satisfazer o seu desejo. Isto é, que alguém acerca de quem algo como as premissas do silogismo prático possam ser consideradas como verdadeiras possa não agir de acordo com o que Aristóteles veio a considerar ser a conclusão do mesmo é uma hipótese considerada por Platão como sendo destituída de sentido. A satisfação da condição da racionalidade parece, portanto, ser vista por este como necessária para que um dado comportamento seja considerado como uma acção; um comportamento que, por qualquer razão, não seja enquadrável na teoria que Aristóteles veio a codificar no algoritmo do silogismo prático não seria, pura e simplesmente, uma acção e, portanto, não contaria como contra-exemplo à validade da teoria, a qual deveria ser entendida como uma teoria da acção e não como uma teoria geral do comportamento.
            A despeito das dificuldades mencionadas acima, Aristóteles parece inclinar-se mais para o primeiro caminho definido na encruzilhada mencionada acima do que para o segundo. Com efeito, ele aceita como plausível a ideia de que indivíduos racionais possam por vezes agir em desarmonia com a doutrina codificada no silogismo prático. Ele considera, em particular, duas situações nas quais isso é possível: a situação da fraqueza da vontade, na qual o indivíduo racional tem um mau momento e se deixa dominar por impulsos sensíveis que determinam que ele desempenhe uma acção que ele próprio não considera como sendo a melhor para atingir os seus fins; e a situação na qual o agente aplica incorrectamente o princípio geral a um caso particular, isto é, aquela situação na qual o agente pretende, de facto, agir de acordo com o conteúdo da sua crença, mas na qual a acção que ele de facto leva a cabo não constitui realmente uma instância do género de acção que ele pretendia ter levado a cabo. Ora, se casos como estes são imagináveis, isto tem que significar que as frases constantes nas premissas do silogismo prático têm um valor de verdade intrínseco, o qual deverá ser acessível independentemente do nosso uso interpretativo da teoria.
            O toque de paradoxo associado à ideia de que seres racionais poderiam agir irracionalmente é combatido por Aristóteles com a introdução daquilo a que se poderia chamar uma concepção disposicionalista da acção. Isto é, para Aristóteles, comportamentos irracionais poderiam também ser considerados como acções, desde que fossem comportamentos de indivíduos que, em geral, agem, ou tenham a disposição para agir, racionalmente. Em todo o caso, convém salientar que, a menos que um agente racional seja vítima momentânea de alguma das insuficiências cognitivas tipificadas acima, Aristóteles, tal como Platão, tão-pouco parece conceber a possibilidade de que um agente racional possa realmente agir contra a sua crença acerca de qual é a melhor forma de agir. Isto é, os casos de irracionalidade considerados por Aristóteles são, na realidade, ou casos de desvios pulsionais ou casos de uso inadequado de termos gerais e não genuínos contra-exemplos, mesmo que apenas imaginários, à validade necessária do silogismo prático para seres como nós.
            Isto é insatisfatório porque, das duas, uma: ou a conexão entre a verdade das premissas e a verdade da conclusão do silogismo prático é realmente uma conexão necessária ou essa conexão não é necessária. No primeiro caso, dado que essa conexão não é uma conexão lógica, isso implica que ela é conceptualmente determinada por uma teoria interpretativa implícita, como defende o ponto de vista platonista. Mas nessas circunstâncias torna-se difícil conceber como seria então possível determinar de forma independente o valor de verdade das premissas.
            No segundo caso, teria de ser possível imaginar, mesmo que isso fosse empiricamente falso, que seres como nós poderiam agir contra a sua própria crença acerca da melhor maneira de agir numa dada ocasião, hipótese essa que Aristóteles parece não aceitar. Saliente-se, ainda, que Aristóteles não esclarece de todo como determinar quais possam ser as condições de verdade debaixo das quais as premissas de um silogismo prático poderiam ser verificadas, respectivamente, falsificadas, de forma independente.
            As posições expostas no Protágoras e na Ética Nicomaqueia cristalizam o essencial dos pontos de vista posteriormente exemplificados pelos diferentes intervenientes no debate da tradição filosófica ocidental em torno do problema da acção racional (nomeadamente, Tomás de Aquino, Kant, Dray, Hempel ou von Wright, apenas para citar alguns). Mais recentemente, todavia, no artigo «How is weakness of the will possible?», Davidson defendeu, tanto contra Platão como contra Aristóteles, que é não apenas possível como factual que um indivíduo racional (nomeadamente, um ser humano) aja contra a sua crença acerca de qual é a melhor forma de agir sem estar a ser vítima ou de um assalto incontrolável das suas pulsões instintivas ou de um erro de identificação ou de qualquer outro fenómeno psicológico que o diminua enquanto agente. Neste caso, o agente racional estará, pura e simplesmente, a agir irracionalmente.
            A posição de Davidson sobre esta questão pode, todavia, ser vista como uma extensão da posição disposicionalista de Aristóteles. Com efeito, aquele considera, tal como este, que um comportamento dirigido de um ser que é, prima facie, racional é uma acção, mesmo que seja irracional. Por outro lado, desde que as acções irracionais constituam a excepção e não a regra, um agente não deixa de ser racional por, de quando em vez, agir irracionalmente. De um modo um pouco paradoxal, porém, Davidson combina esta sua tese com a adesão à perspectiva platonista de acordo com a qual uma dada teoria adequada da acção racional (que, no caso de Davidson, é não a teoria do silogismo prático mas uma versão particular da teoria bayesiana da decisão) tem uma validade a priori para a explicação da acção humana, constituindo, por conseguinte, a rede interpretativa no interior da qual é possível, e fora da qual não é possível, desenvolver um trabalho fecundo de explicação psicológica.

António Zilhão

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

TIPOS DE ARGUMENTOS NÃO-DEDUTIVOS

Pode-se distinguir os seguintes tipos de argumentos não-dedutivos:
1.    Generalizações ou argumentos com base em exemplos;
2.    Previsões indutivas;
3.    Argumentos por analogia;
4.    Argumentos causais;
5.    Argumentos de autoridade.
Geralmente usa-se o termo “indução” para falar de dois tipos diferentes de argumentos: as generalizações e as previsões. Uma generalização é um argumento quantificacional não-dedutivo cujas premissas são menos gerais do que a conclusão. Este tipo de argumentos apresenta a seguinte forma lógica, ou outras formas lógicas análogas:

Alguns F são G.
Logo, todos os F são G.

Um exemplo deste tipo de argumentos é o seguinte:

Alguns corvos são pretos.
Logo, todos os corvos são pretos.

Para que uma generalização seja válida tem de obedecer a algumas regras. Por exemplo, os casos em que se baseia têm de ser representativos e não pode haver contra-exemplos. Defender que todos os portugueses vão regularmente ao cinema porque os seus amigos vão regularmente ao cinema viola estas duas regras: os meus amigos não são representativos dos portugueses em geral e há portugueses que não vão ao cinema. As regras e procedimentos da generalização correcta são cruciais na ciência e na elaboração de sondagens representativas, previsões de resultados eleitorais, etc. Contudo, os argumentos filosóficos raramente são generalizações.
Uma previsão é um argumento quantificável não-dedutivo cujas premissas se baseiam no passado e cuja conclusão é um caso particular. Por exemplo:

Todos os corvos observados até hoje são pretos.
Logo, o corvo do João é preto.

As previsões são igualmente pouco usadas em filosofia; contudo, este tipo de argumento é crucial nas ciências empíricas. E apesar de em filosofia não ser habitual usar previsões, o seu estudo faz parte integrante da filosofia da ciência, dada a importância que as previsões têm na ciência.
Num argumento por analogia, pretende-se concluir que algo é de certo modo porque esse algo é análogo a outra coisa que é desse modo. Os argumentos por analogia exibem a seguinte forma lógica, ou formas lógicas análogas:

n é como m.
m é F.
Logo, n é F.

Por exemplo:

Os filósofos são como cientistas.
Os cientistas procuram compreender melhor o mundo.
Logo, os filósofos procuram compreender melhor o mundo.

Não se deve confundir os argumentos por analogia com as analogias propriamente ditas. Uma analogia é apenas uma semelhança entre coisas; os argumentos por analogia baseiam-se nesta desejada semelhança, mas não são, elas mesmas analogias. Como se pode ver, nos argumentos por analogia uma das premissas é uma analogia.
Não há regras claras para avaliar argumentos por analogia, excepto que a analogia tem de ser relevante. No exemplo dado, os filósofos estudam, discutem ideias e teorias, procuram resolver problemas, trabalham em universidades e escrevem ensaios – tal como os cientistas. Por isso, pode considerar-se que a analogia é boa. Quem discordar da analogia terá de explicar porquê, apresentando uma característica relevante dos filósofos que os cientistas não têm ou vice-versa. Na argumentação filosófica abundam os argumentos por analogia.
Um argumento causal é um argumento no qual se procura estabelecer uma causa com base em vários indícios ou informações. Não há uma forma lógica determinada para este tipo de argumentos, pois são muito diferentes entre si – só têm em comum o facto de a sua conclusão ser a atribuição de uma causa de algo. Por exemplo:

Sempre que há guerras, há soldados.
Logo, a causa da guerra, são os soldados.

Este argumento é inválido dado que a única razão que aponta a favor da ideia de que a causa da guerra são os soldados é o facto de a existência de soldados ser uma condição necessária para a guerra. Mas ser uma condição necessária de algo não é suficiente para ser causa de algo; uma condição necessária para ser solteiro é não ser casado; mas não ser casado não causou o estado de ser solteiro.
MURCHO, Desidério, O Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 104-106

O que é uma acção?

A teoria causal da ação
Um bom modo para começar a nossa investigação acerca da natureza da acção é a partir da questão levantada por Wittgenstein: "O que sobra se eu subtrair o facto de o meu braço se ter erguido ao facto de eu ter erguido o meu braço?" (1953: §621). Evidentemente, o teu braço pode ter-se erguido sem que o tenhas feito intencionalmente subir; talvez o teu cotovelo se tenha mexido, alguém puxe por fios amarrados ao teu pulso ou alguém esteja a dar choques eléctricos aos músculos do teu braço. Nem todas as ocasiões em que o teu braço se ergue são ocasiões em que tu agiste: por isso o que marca a diferença entre o erguer do braço que corresponde a acções genuínas das que não o são?
Como resposta inicial, podemos dizer algo deste tipo: "De modo a que o meu braço se erga sem que eu activamente o erga, tem de haver uma causa exterior para esse movimento — uma rajada de vento que arraste o guarda-chuva que eu seguro, alguém que mexa no meu cotovelo, ou outras situações do género. Se eu próprio erguer o braço, contudo, não há necessidade de uma causa exterior que mova o meu braço: a causa será interna. O movimento dever-se-á à contracção dos meus músculos, que por sua vez se deverá a impulsos nervosos, e por aí fora. Em resumo, a diferença entre um mero movimento corporal e uma acção genuína é a diferença entre causalidade interna e externa." Mas, certamente, esta perspectiva não é suficiente; contracções musculares, espasmos, tiques nervosos e movimentos reflexos têm causas internas mas ainda não são o tipo de coisas a que queremos designar por acções. De facto, se não houvesse mais qualquer coisa numa acção do que causalidade interna, não haveria nenhuma razão pela qual o movimento das plantas causado internamente ou mesmo os movimentos de um relógio, não contassem como verdadeiras acções. Ainda assim, parece fácil emendar a nossa definição de acção de modo a evitar tais abstrusidades: as acções intencionais são, num certo sentido, coisas em que a nossa mente está envolvida — portanto seguramente aquilo que necessitamos de dizer é que, num sentido último, as acções têm de ter causas mentais internas. Um espasmo muscular reflexo, como o movimento de uma planta ou de um relógio, tem (num sentido amplo) uma causa interna: mas uma acção genuína tem antecedentes mentais — a tua mente tem um papel a desempenhar na execução da acção.
Note-se que, enquanto podemos dizer que todas as acções têm causas mentais, não podemos reverter esta afirmação e dizer que todos os movimentos com causas mentais são acções. Como tal, a ansiedade pode fazer a tua mão tremer ou o embaraço pode provocar-te contracções musculares, mas estas tremuras e contracções não são acções, apesar dos seus antecedentes mentais. Portanto a presença de causas mentais é apenas uma condição necessária da acção genuína, mas não é uma condição suficiente.
Quais são os antecedentes mentais da acção? Que tipo de acontecimentos ou estados mentais são as causas iniciadoras de uma acção intencional?
O nosso primeiro pensamento pode ser que a acção resulta sempre do desejo. Por outras palavras, as acções são coisas que fazes ou porque queres fazê-las ou porque acreditas que elas são o meio para chegares a outras coisas que desejas. Quando activamente ergueste o braço, o teu braço ergue-se porque simplesmente queres que ele se erga (talvez porque estejas a experimentar se ele ainda se move depois de teres tido um acidente), ou porque o subir do braço seja necessário para outra coisa qualquer que desejas (talvez porque queiras votar e penses que necessitas de levantar o braço para votar, ou queres dar início a uma corrida e penses que levantar a mão é o modo de o fazer, ou queres apontar para a estrela polar, …). Por contraste, as não-acções, como espasmos ou contracções musculares, acontecem independentemente dos teus desejos, isto é, quer queiras quer não que elas ocorram.
Mas existe uma aparente dificuldade com este primeiro pensamento plausível que pode ser explicitado pelo seguinte argumento:
(D) Os nossos desejos — ou pelo menos os mais básicos — não são estados sobre os quais tenhamos muito controlo; não depende usualmente de nós sentirmos sede e querermos beber, ou desejarmos estar mais quentes, ou termos desejos sexuais. As nossas crenças, de igual modo, não estão sobre o nosso controlo voluntário; muitas são adquiridas perceptivamente e a percepção envolve um processo causal que não depende de nós. Portanto, se caracterizarmos as acções como fazeres causados por desejos (em conjunto com as crenças apropriadas), isto sugere que há estados que não dependem de nós automaticamente que produzem acções sem a nossa intervenção; e isto implicaria que as nossas acções também não dependem de nós. Esta conclusão põe em causa todo o conceito de acção tal como o definimos até agora.
Segundo Anscombe, a nossa sugestão fundamental é que uma acção é intencional apenas se é feita com razões à luz das quais o comportamento de um agente pode ser compreensível. Especificar as razões que fazem um comportamento ser compreensível é especificar o desejo ou pró-atitude relevantes e uma crença de que o efeito da acção conduza ao desejo esperado. Necessitamos, contudo, de destacar um aspecto que até agora foi deixado implícito. De modo a explicar a acção de alguém, não é suficiente especificar um desejo e uma crença que o agente tenha que torna a acção compreensível; se queremos ter uma explicação correcta, a acção tem que ter sido feita por causa desse desejo e dessa crença. Suponhamos, por exemplo, que Jack abriu a janela porque desejava ter ar fresco e acreditava que teria ar fresco se abrisse a janela. Essa crença e esse desejo evidentemente fazem o abrir da janela algo que se faz numa situação dessas — mas essa crença e desejo podem não ter funcionado como as razões para abrir a janela nesta ocasião. Ele pode ter aberto a janela porque queria falar com a Jill que está no exterior e porque acreditava que isso facilitaria a conversa. Em termos mais gerais, podemos ter, numa dada situação, um conjunto de diferentes crenças e desejos de tal modo que cada conjunto tornaria razoável o mesmo curso de acção: ao explicar uma acção temos de escolher um (ou mais) dos conjuntos como efectivamente decisivo na produção da acção. Repetindo: para explicar uma acção temos de fazer mais do que simplesmente especificar crenças e desejos que tornariam a acção compreensível; temos de dizer que o agente agiu por causa dessas crenças e desejos.
O pensamento essencial em D, era que se tentarmos definir acções como fazeres que explicamos recorrendo a desejos, dado que os desejos não "dependem de nós" o mesmo se aplicará supostamente às nossas acções intencionais. Bom, aceitemos que as nossas necessidades mais básicas não estão sob o nosso controlo — não podemos fazer nada quando temos sede, por exemplo. Mas muitos dos desejos ou pró-atitudes envolvidos na explicação da acção humana, ou talvez mesmo a maior parte, dependem de algum modo de nós (pelo menos no sentido vulgar dessa expressão).
Juntando os fios da nossa discussão, podemos concluir dizendo que um fazer é uma acção apenas se envolve algo feito intencionalmente, isto é, algo realizado por causa de uma pró-atitude apropriada e de uma crença respectiva. Parece, portanto, que chegamos finalmente […] à formulação correcta do núcleo de uma teoria causal da acção — as causas mentais desses episódios comportamentais que contam como acções intencionais são simplesmente crenças e desejos. De modo a responder à questão de Wittgenstein: a diferença entre o teu braço se erguer e tu ergueres o teu braço é uma questão de causalidade através de crenças e desejos.

Peter Smith e O.R. Jones

in Crítica na Rede

terça-feira, 11 de outubro de 2016

ARGUMENTOS SÓLIDOS

Um argumento válido pode ter uma conclusão falsa desde que pelo menos uma das suas premissas seja falsa. Dado que o que interessa na argumentação é chegar a conclusões verdadeiras, os argumentos meramente válidos não têm interesse. É por isso importante compreender a noção de argumento sólido.
Um argumento sólido obedece a duas condições: é válido e as suas premissas são verdadeiras. É impossível que um argumento dedutivo sólido tenha uma conclusão falsa. Vejamos o seguinte exemplo:

Todos os animais ladram.
Os pardais são animais.
Logo, os pardais ladram.

Este argumento é válido, mas não é sólido – a primeira premissa é falsa porque nem todos os animais ladram. Na argumentação é muito importante usar premissas verdadeiras e argumentos válidos, pois só estas duas condições garantem conclusões verdadeiras. E se um dado argumento for válido mas a sua conclusão é falsa, pelo menos uma das suas premissas é falsa.
Os argumentos sólidos estão mais próximos do que interessa na argumentação. Mas ainda não chega, pois há argumentos sólidos sem qualquer interesse para a argumentação. Vejamos o seguinte exemplo:

A neve é branca.
Logo, a neve é branca.

Este argumento é válido: é impossível a premissa ser verdadeira e a conclusão falsa. E é sólido: a premissa é verdadeira. Mas é óbvio que o argumento não é bom. Isto acontece porque num argumento bom as premissas têm de ser menos discutíveis do que a conclusão.[1] Muitos argumentos não são bons porque partem de premissas que não são menos discutíveis do que a conclusão; por exemplo:

Se Deus existe, a vida faz sentido.
Deus existe.
Logo, a vida faz sentido.

Este argumento é mau porque as suas premissas não são menos discutíveis do que a sua conclusão. Este argumento pode ser o resumo de uma argumentação mais vasta em que se defenda cuidadosamente cada uma das premissas. Mas, nesse caso, mais uma vez, esses argumentos terão de partir de premissas menos discutíveis do que as conclusões.
A noção do que é mais ou menos discutível é sem dúvida relativamente vaga e contextual; mas exibe uma condição necessária para que um argumento seja bom. E é importante ter consciência dela para que não se crie a crença falsa de que a validade é inútil para a argumentação e para a filosofia.
Exercícios
1.    Poderá um argumento sólido ter uma conclusão falsa? Porquê?
2.    Poderá um argumento sólido não ser válido? Porquê?
3.    Considere os seguintes argumentos:
a)    “O aborto não é permissível porque a vida é sagrada.”
b)    “As touradas são permissíveis porque os animais não têm qualquer relevância moral.”
Serão estes argumentos bons? Porquê?
4.    Poderá um argumento bom não ser sólido? Porquê?
5.    Poderá um argumento bom não ser válido? Porquê?
MURCHO, Desidério, O Lugar da Lógica na Filosofia, 2003. Lisboa: Plátano Editora, pp. 18-20



[1] Esta regra é muitas vezes violada no curso normal da argumentação; é comum ouvir argumentos contra o aborto, por exemplo, com base em premissas religiosas que estão longe de ser menos discutíveis do que a conclusão desejada. É necessário ter em mente que a força de um argumento válido é precisamente igual à plausibilidade da sua premissa menos plausível.

Lógica informal

Os filósofos procuram resolver problemas. É por isso que apresentam teorias, ideias ou teses. Estas três coisas não são exactamente o mesmo, mas para simplificar iremos falar apenas de teorias. A diferença é a seguinte: ao passo que uma teoria é uma forma completamente articulada de resolver um problema, uma ideia ou uma tese é algo mais vago. Mas o que há de comum entre as ideias, as teorias e as teses é que todas elas procuram resolver problemas.
Ora, sempre houve boas e más teorias, seja qual for o problema que procuram resolver. As teorias dos filósofos não podem constituir excepção. Assim, também há boas e más teorias filosóficas. Mas, como é óbvio, apenas estamos interessados nas boas teorias filosóficas. Por isso se torna crucial saber distinguir as boas das más teorias. Há duas maneiras de avaliarmos teorias, para procurarmos saber se são boas ou más: 1) podemos procurar saber se a teoria resolve o problema que pretendia resolver, e se essa solução é aceitável; 2) podemos procurar saber quais são os argumentos em que essas teorias se apoiam e verificar se tais argumentos constituem boas razões a favor daquilo que nelas se defende. Assim, 2 obriga-nos a pensar deste modo: «Que razões me dá o autor para aceitar a teoria dele?». E 1 obriga-nos a pensar assim: «Se eu aceitar a teoria dele, consigo explicar melhor o que a teoria procurava explicar, ou consigo resolver o problema que a teoria queria resolver? Será que há alternativas melhores a esta teoria?». Ora, tanto no primeiro como no segundo caso, temos de saber avaliar argumentos. Temos de saber se os argumentos que apoiam a teoria são bons ou não, e temos de saber se são bons ou não os argumentos que mostram que a teoria explica o que queria explicar e resolve o problema que queria resolver.
No caso dos filósofos, conhecer os argumentos que sustentam as suas teorias é ainda mais importante do que noutros casos. Isso é assim porque os problemas da filosofia são problemas de carácter conceptual e não empírico. Dificilmente acontece, com base em factos empíricos, mostrar que uma teoria filosófica é verdadeira ou falsa, ao contrário do que se verifica com muitas teorias científicas. Não há factos empíricos que mostrem que Deus existe ou não existe; mas a teoria segundo a qual existe vida em Marte pode ser refutada ou confirmada pelos factos. Daí que o valor de uma teoria filosófica, mais do que qualquer outro tipo de teoria, dependa essencialmente dos argumentos que a sustentam.
Não podemos, pois, saber se uma teoria é boa se não soubermos avaliar a qualidade dos seus argumentos. Esse é, precisamente, o nosso objectivo ao estudar lógica. Eis, então, a nossa primeira pergunta: