Imagine que um cirurgião decide aproveitar a sua presença no hospital para amputar cada um dos seus membros e lhe retirar todos os órgãos, com o intuito de resolver o enigma dos limites somáticos: o limite da amputação, antes da qual será sempre igual a si mesmo e depois da qual não será mais nada.
Você está adormecido numa mesa de operações, preso por correias de couro. A assistente preparou todos os instrumentos, o cirurgião pode começar a sua obra. A ideia não é realizar esta experiência crucial de qualquer maneira, abruptamente. Nesta primeira experiência, o cirurgião dá-se por satisfeito abrindo-lhe o crânio, arrancando-lhe os dentes, extraindo-lhe um rim, não terá pernas, apesar disso será a mesma pessoa.
Alguns filósofos recusariam este primeiro balanço. Ao primeiro órgão extraído, ao primeiro dedo cortado, ninguém permaneceria igual a si próprio. Estes filósofos são vítimas de uma confusão linguística. Pretender que uma pessoa deixa de ser quem é após uma intervenção cirúrgica, com a ablação das amígdalas ou do apêndice, é confundir a identidade pessoal, isto é, aquilo que somos ao longo de toda a nossa existência, com a imutabilidade ou a invariabilidade, conceito que se opõe por definição a qualquer tipo de mudança. O facto de irmos ao dentista ou ao cabeleireiro não faz com que desapareçamos. Na grande maioria dos casos, é precisamente porque desejamos continuar a ser nós mesmos que deixamos que nos cortem as unhas ou nos operem. É preciso aceitar a mudança para continuarmos a ser os mesmos.
Convencido pelos bons fundamentos desta primeira análise, o cirurgião decide prosseguir a sua investigação. Desta vez, ele decide ir até aos confins de si mesmo: não só lhe extrai os braços, mas também o sexo e a pele do corpo que vai esfolando. Ao abrir a caixa torácica fica com acesso às suas vísceras, que retira pacientemente. Para que não sucumba no curso desta operação, ele tem o cuidado de substituir ou de compensar cada órgão vital por uma prótese apropriada.
Decidido a levar a sua lógica até ao fim, o cirurgião decide agora destapar-lhe o cérebro. O cérebro é o limite somático das criaturas cerebrais.
Mas ninguém poderá imaginar seriamente que a nossa identidade depende da presença ou ausência de um neurónio (ou de uma sinapse, ou de uma conexão neuronal). Tal como um cérebro com um neurónio a menos permanece idêntico a si mesmo, é também um facto que um cérebro sem neurónios deixa de ser um cérebro.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 61-67
4 comentários:
Ainda a propósito de Levinas.
Obrigada- :)
Comento neste post pois receio que não volte ao anterior.
Percebeu o que eu quis dizer ao escrever:"a angústia permanece nos que ficam vivos e são confrontados constantemente com a ideia de que tudo ficou por dizer e viver?" Não pretendo uma resposta.
Queria uma resposta para a seguinte questão: Aqueles que não contribuem para a perpetuação da espécie humana, não vêem a sua angústia perante a morte ser atenuada?
Não sei quase de Levinas, só uns respigos do que leio nos manuais. Prometo que vou ler. Também não conheço praticamente os pensadores/autores dos posts do blog. Gostava de ler Stéphane Ferret. Agora temos a Fnac aqui, já não me posso desculpar...
P.S. Amanhã vou enviar-lhe o jornal da minha escola. Quase todos os artigos são escritos pelos
alunos. É um jornalinho muito simpático com vários prémios no currículo.
Isabel
Isabel, obrigado por de vez em quando deixar um comentário. Até ao momento tem sido a única, mas este blog, apesar de já ter alguns visitantes, ainda é muito novo (ainda não tem um mês).
Eu também não conheço muito Levinas. E do pouco que conheço não aprecio muito quer ao nível do conteúdo do seu discurso, quer principalmente com a forma hermética e enrolada com que apresenta as suas teses.
Quanto à questão que levanta: ela surgiu da interpretação que eu fiz do exerto de Levinas que postei. Levinas responderia à questão recorrendo à transcendência, o radical Outro que refere Levinas, origem da nossa existência e garante da nossa liberdade. Não seria a minha resposta.
Há muitas formas de responder ao problema da angústia da morte, ainda que todas elas desemboquem num ponto único: viver a vida com sentido. Uma dessas formas é a nossa descendência. Mas como bem reparou não pode ser uma resposta universal. Então responderia que o sentido da vida advém de se viver a vida com um enorme sentido ético. Porque a vida com ética é preferível a uma vida sem ética.
Quanto ao livro de Ferret pode comprá-lo na Webboom (loja on line), é onde eu compro. É cómodo e pode encontrar todas as obras, que não estão esgotadas.
É com gosto que lerei o vosso jornal. Já agora é exclusivamente de filosofia ou é o jornal da escola?
Em Oliveira de Frades também temos um jornal PSSST e uma revista (katársis2), esta é de filosofia e feita pelos alunos e professores de filosofsi. Se quiser conhecer a nossa revista (editámos 3 números este ano lectivo) pode ir ao nosso outro blog www.katarsis2.blogspot.com e na etiqueta "revistas" encontrará os três números deste ano lectivo e dois números antigos, em formato de livro (um formato interessante). Na escola distribuímo-las em suporte papel.
António Paulo
Não. Ainda não chegámos a essa perfeição. Não temos nenhum jornal de Filosofia. O que vou enviar é da escola em geral. Nenhum grupo disciplinar elabora um jornal ou revista.
já consultei o outro blog -Katarsis. Gostei. Vou espreitar as revistas.
Vou ler o último post- morte ii. A morte assusta-me. É cruel e injusta. Faz sofrer muito. Só de imaginar que depois da minha morte nunca mais vejo o sol, as flores, os regatos de água, as pessoas que amo, fico triste.
Isabel
Em relação à morte, penso exactamente o mesmo que você. Talvez por isso às vezes leio alguma coisa sobre a morte. Talvez à busca de alguma resposta.
António Paulo
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