terça-feira, 26 de janeiro de 2010

POR QUE RAZÃO HAVEMOS DE SER MORAIS?


"Por que razão devo agir moralmente?" é uma questão de tipo diferente das que tratámos até agora. Perguntas como "Por que razão devo tratar pessoas de grupos étnicos diferentes com base na igualdade?" ou "Por que razão é o aborto justificável?" procuram razões éticas para agir de uma certa forma. São perguntas feitas do interior da ética. Pressupõem uma perspectiva ética. "Por que razão devo agir moralmente?" situa-se a outro nível. Não se trata de uma pergunta que se faz no interior da ética mas de uma questão acerca da ética.
"Por que razão devo agir moralmente?" é, pois, uma pergunta a respeito de algo que normalmente é admitido como ponto de partida. Essas perguntas são incómodas. Alguns filósofos acharam esta pergunta tão desconcertante que a rejeitaram por ser logicamente imprópria, por ser uma tentativa de perguntar algo a que não se pode dar uma resposta apropriada.
Uma razão para esta rejeição reside na afirmação de que os nossos princípios éticos são, por definição, os princípios que consideramos imperiosos. Significa isto que quaisquer princípios imperiosos para uma determinada pessoa, são necessariamente os princípios éticos dessa pessoa; e uma pessoa que aceita como princípio ético dever dar a sua riqueza para ajudar os pobres tem, por definição, de ter decidido dar a sua riqueza. Nesta definição da ética, a partir do momento em que uma pessoa toma uma decisão ética, nenhuma questão ética adicional pode surgir. Daí que seja impossível dar sentido à pergunta "Por que razão devo agir moralmente?".
Poder-se-ia pensar que uma boa razão para aceitar esta definição da ética baseada no que é imperioso é que nos permite rejeitar, como desprovida de sentido, uma questão que de outro modo seria incómoda. Contudo, a adopção desta definição não pode resolver problemas reais porque leva a dificuldades proporcionalmente maiores em estabelecer uma conclusão ética. Tomemos, por exemplo, a conclusão de que os ricos devem ajudar os pobres. Só pudemos argumentar nesse sentido, no capítulo 8, porque partimos do princípio de que, como sugerimos nos primeiros dois capítulos, a universalizabilidade dos juízos éticos exige que não pensemos apenas nos nossos próprios interesses, levando-nos a adoptar um ponto de vista no qual temos de considerar igualmente os interesses de todos os que são afectados pelas nossas acções. Não podemos defender que um juízo ético tem de ser universalizável e ao mesmo tempo definir os princípios éticos de uma pessoa como os princípios, quaisquer que eles sejam, que essa pessoa considera imperiosos — pois o que aconteceria se eu considerasse imperioso um princípio não universal como "Devo fazer o que me beneficia"? Se definirmos os princípios éticos como quaisquer princípios que tomemos por imperiosos, nesse caso qualquer coisa pode contar como princípio ético, porque podemos considerar imperioso qualquer princípio. Assim, o que ganhamos por podermos rejeitar a pergunta "Por que razão devo agir moralmente?" perdemos ao sermos incapazes de usar a universalizabilidade dos juízos éticos — ou qualquer outra característica da ética — para argumentar em favor de certas conclusões sobre o que é moralmente correcto. Considerar que a ética implica necessariamente, em certo sentido, um ponto de vista universal é uma forma mais natural e menos confusa de abordar estas questões.
Outros filósofos rejeitaram a questão "Por que razão devo agir moralmente?" por outros motivos. Pensam que deve ser rejeitada pela mesma razão que nos leva a rejeitar uma outra questão ("Por que razão devo ser racional?") que, como "Por que razão devo agir moralmente?", também questiona algo — neste caso, a racionalidade — que normalmente se pressupõe. A pergunta "Por que razão devo ser racional?" é de facto logicamente imprópria porque, ao responder-lhe, estaríamos a dar razões para sermos racionais. Estaríamos a pressupor a racionalidade na nossa tentativa de justificar a racionalidade. A justificação resultante da racionalidade seria circular — o que prova não que a racionalidade careça de uma necessária justificação, mas que não precisa de justificação, porque não pode inteligivelmente ser questionada, a não ser que já esteja pressuposta.
Será que "Por que razão devo agir moralmente?" está na mesma categoria de "Por que razão devo ser racional?" no sentido em que pressupõe o próprio ponto de vista que questiona? Estaria, se interpretássemos o "devo" como um "devo" moral, o que seria absurdo. A partir do momento em que chegamos à conclusão de que uma acção é moralmente obrigatória, não existem mais questões morais a que responder. É redundante perguntar por que razão devo moralmente fazer a acção que moralmente devo fazer.
Não há, porém, a necessidade de interpretar a pergunta como um pedido de justificação ética da ética. "Devo" não significa forçosamente "devo, moralmente". Poderia ser simplesmente uma forma de inquirir das razões para a acção, sem qualquer especificação quanto à natureza das razões pretendidas. Queremos por vezes fazer uma pergunta genérica prática, sem qualquer ponto de vista em particular. Confrontados com uma escolha difícil, pedimos conselho a um amigo íntimo. Moralmente, diz ele, devias fazer A; mas B era melhor para os teus interesses, enquanto a etiqueta exige C e apenas D demonstra um verdadeiro sentido de estilo. Esta resposta pode não nos satisfazer. Pretendemos um conselho sobre qual destes pontos de vista devemos adoptar. Se fazemos tal pergunta, temos de a fazer de uma posição de neutralidade relativamente a todos os pontos de vista e não de um compromisso com qualquer deles.
"Por que razão devo agir moralmente?" é uma pergunta deste tipo. Se não for possível fazer perguntas práticas sem pressupor um ponto de vista, somos incapazes de dizer algo de inteligível acerca das escolhas práticas mais fundamentais. Agir ou não de acordo com considerações de ética, interesse pessoal, etiqueta ou estética seria uma escolha "para lá da razão" — em certo sentido, uma escolha arbitrária. Antes de nos resignarmos a esta conclusão devemos pelo menos tentar interpretar a questão de tal modo que fazer simplesmente a pergunta não nos comprometa com qualquer ponto de vista particular.
Podemos agora formular a pergunta com maior precisão. Trata-se de uma questão acerca do ponto de vista ético, feita de uma posição exterior a esse ponto de vista. Mas o que é "o ponto de vista ético"? Afirmei que uma característica distintiva da ética é que os juízos éticos são universalizáveis. A ética exige que superemos o nosso ponto de vista pessoal e que adoptemos uma posição semelhante à do espectador imparcial que adopta um ponto de vista universal.
Dado este conceito da ética, "Por que razão devo agir moralmente?" é uma pergunta a que pode responder adequadamente qualquer pessoa que inquira se deve agir apenas em bases que seriam aceitáveis do ponto de vista universal. Afinal de contas, é possível agir — e algumas pessoas fazem-no — sem pensar senão nos nossos interesses pessoais. A pergunta pede razões para ir além do interesse pessoal na acção e para agir apenas com base em juízos que estamos dispostos a prescrever universalmente.

Peter Singer (Lisboa: Gradiva, 2000), Cap. 12
Retirado de Textos de Apoio ao Manual A Arte de Pensar de Didáctica Editora

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