quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE v


O argumento de ausência de provas. Uma segunda diferença entre a ciência e a ética parece ser o facto de existirem, na ciência, formas de resolver racionalmente os desacordos. Embora os cientistas possam discordar sobre muitas coisas, estão de acordo quanto à maneira de resolver as suas controvérsias. Fazem observações, realizam experiências e acabam por chegar a um acordo. Isto significa que, na ciência, o desacordo é apenas temporário. Os cientistas procuram resolver os seus desacordos e sabem como fazê-lo. Mas o desacordo ético parece diferente. Na ética, o desacordo é interminável, dado que ninguém pode provar quem tem razão e quem está enganado. Ninguém faz sequer a menor ideia de como se prova seja o que for.
Podemos resumir assim este argumento:
1. Se houvesse verdade objectiva na ética, deveria ser possível provar as opiniões éticas verdadeiras.
2. Mas não é possível provar que uma opinião ética é verdadeira.
3. Logo, não há verdade objectiva na ética.
Será isto correcto? Sem dúvida parece plausível. Quem tenha tentado persuadir outra pessoa numa discussão sobre uma questão ética sabe que frustração, isso implica. Por exemplo, sejam quais forem as razões apresentadas, um pacifista não ficará convencido de que por vezes a violência é necessária. Ou, para olhar para o mesmo exemplo a partir da perspectiva oposta, não convenceremos um defensor da violência a mudar de ideias por muito que lhe recordemos que a violência só produz violência.
Se nos virarmos para questões mais simples, no entanto, as coisas parecem muito diferentes. Suponha-se que a questão é a de saber se uma certa médica é imoral. Eu digo que a Drª Joana se comporta vergonhosamente e outra pessoa fica surpreendida com esta afirmação, já que tem a impressão de que ela é uma boa médica. Por isso, aponto várias coisas:
- A Drª Joana tem acções de uma empresa farmacêutica local que ajudou a criar, e prescreve os medicamentos dessa empresa aos seus pacientes, mesmo que estes tenham uma utilidade questionável para os seus problemas.
- Ela bebe muito e por vezes trata os pacientes sob a influência do álcool.
- Ela ignora os conselhos dos outros médicos e sabe-se que fica zangada quando os seus pacientes querem uma segundo opinião.
- Ela não lê revistas de medicina nem tenta, de outra forma, manter-se a par do conhecimento médico actual.
Suponha-se que tudo isto é verdade. Não serão estes bons indícios de que ela é imoral? Não provará isto que ela é imoral? Suponha-se também que nada se pode dizer de importante a favor da opinião contrária, em sua defesa. Não resolverá isto a questão? Que mais poderia alguém querer como prova?
Ocorrem-nos facilmente outros exemplos. A prova de que o Sr Santos é um mau homem é o facto de ele costumar mentir e ser frequentemente cruel para com as outras pessoas. A prova de que o Sr. Silva é um jogador de poker imoral é o facto de ele fazer batota. A prova de que o professor Lopes não deveria ter dado teste na terça-feira é o facto de ele ter anunciado que o daria na quarta-feira. Obviamente, em cada caso podem existir considerações mitigadoras ou factos adicionais que importa ter em conta; mas o que interessa é que esses juízos não são meramente «subjectivos». É possível aduzir factos a seu favor e esses factos, considerados conjuntamente, podem constituir uma prova decisiva.
As provas éticas podem ser diferentes, em alguns aspectos, das provas científicas, mas isto não significa que as provas éticas sejam de algum modo deficientes. As provas éticas consistem em dar razões que apoiem conclusões morais. Se as razões forem suficientemente poderosas e não existirem considerações opostas que tenham o mesmo peso, a prova estará dada.
Isto pode parecer apressado. Se a ideia de que os juízos éticos admitem provas é tão óbvia, poderemos perguntar: por que razão a ideia contrária começou por ser tão plausível? Por que razão pensar que não há provas éticas é tão atraente intuitivamente? Há pelo menos três razões para isto.
1. Para começar, quando pensamos filosoficamente sobre ética, não pensamos muito sobre as questões simples. O próprio facto de serem tão óbvias torna-as aborrecidas, pelo que temos tendência para as ignorar. Atraem-nos antes as questões mais difíceis, como o pacifismo e o aborto. São mais interessantes. Porém, é isto que nos induz em erro. Se pensarmos apenas nas questões mais difíceis, podemos concluir naturalmente que não há provas em ética, já que ninguém parece ter uma prova demolidora das suas opiniões sobre o pacifismo ou o aborto. Podemos ignorar o facto de, em questões mais monótonas, dispormos facilmente de provas. Do mesmo modo, se nos concentrássemos apenas nas questões sobre as quais os cientistas discordam, poderíamos concluir que não há provas na ciência.

Problemas da Filosofia, James Rachels - Gradiva (Colecção Filosofia Aberta, pp 247-250)

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