segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE iv


Ética e ciência
Há várias coisas que podem tornar-nos cépticos quanto à ética. Reflectir sobre as diferenças entre culturas é uma delas. Outra é a ética parecer tão diferente da ciência. A ciência oferece o nosso paradigma de objectividade e a ética parece estar aquém da ciência de várias maneiras. Sendo assim, como poderá a ética ser objectiva? Seguem-se três argumentos contra a objectividade da ética que incidem em diferenças aparentes entre a ciência e a ética.
O argumento do desacordo. É preocupante que os desacordos éticos pareçam tão amplos e persistentes. Se a ética fosse uma questão de verdade objectiva, não deveríamos esperar um maior acordo a seu respeito? Porém, parece que em questões de ética as pessoas discordam sobre tudo. Têm opiniões opostas sobre o aborto, a pena de morte, o controle de armas, a eutanásia, o ambiente e o estatuto moral dos animais. Discordam quanto ao sexo, ao uso de drogas e à nossa obrigação de ajudar crianças necessitadas que vivem noutros países. A lista poderia continuar indefinidamente. No entanto, na ciência parece existir um amplo acordo no que respeita a todas as questões essenciais. A conclusão natural é que a ética, contrariamente à ciência, não passa de uma questão de opinião. Podemos resumir assim este argumento:
1. Na ética há um desacordo amplo e persistente.
2. A melhor explicação desta situação é não existir verdade objectiva na ética.
Logo, podemos concluir, pelo menos conjecturalmente, que não existe verdade objectiva na ética.
Será isto correcto? Podemos começar por observar que a ética é mais parecida com a ciência do que podemos pensar. Há um grande nível de consenso na ética. Todas as pessoas razoáveis concordam que o assassínio, a violação e o roubo são errados. Todas concordam que devemos dizer a verdade e cumprir as nossas promessas. Todas reconhecem que o rapto e a extorsão são ultrajantes e que o racismo é terrível. Também esta lista poderia continuar indefinidamente. Se alguém disser que algumas pessoas não concordam com estes juízos - por exemplo, poderemos responder que algumas pessoas discordam das descobertas da ciência - por exemplo, os médiuns e os que defendem que a Terra é plana. A situação é igual no que toca à ciência: a grande maioria das pessoas concorda, mas há alguns dissidentes, que são ignorados por boas razões. Na verdade, podem existir mais dissidentes na ciência do que na ética, se contarmos com os fundamentalistas religiosos que rejeitam o darwismo.
Na ética, então, há um acordo maciço sobre questões fundamentais. Mas também há desacordo quanto ao aborto, à pena de morte e às outras questões acima mencionadas. O que poderemos concluir daqui? Para começar, podemos observar que, de um ponto de vista social, as questões que geram o desacordo são, em sua maioria, menos importantes do que aquelas em que estamos de acordo. Por muito fortes que sejam as paixões suscitadas pelo debate sobre o aborto, esta questão é menos importante do que o assassínio, a veracidade ou o cumprimento de promessas. É menos importante porque as sociedades podem funcionar muito bem com diversas políticas para o aborto. Porém, a vida social seria impossível sem a proibição do assassínio. Do mesmo modo, a sociedade seria impossível se as pessoas não tivessem a obrigação de dizer a verdade e de cumprir as suas promessas. Para ver isto, basta tentar imaginar como seria viver numa sociedade em que estas regras não fossem aceites. O que aconteceria se as pessoas pudessem matar os outros à vontade? E se não existisse a presunção de que as pessoas dizem a verdade? E se não pudéssemos confiar nos outros quanto ao cumprimento das suas promessas? Nessas circunstâncias, a sociedade desintegrar-se-ia.
Podemos também observar que muitas das questões controversas são mais difíceis do que as questões em que concordamos. Para resolver a questão do aborto, teríamos de compreender racionalmente a razão pela qual a vida humana é valiosa. Em virtude de que propriedades das pessoas é errado matá-las? Por que razão é pior matar um ser humano do que matar um animal (se é que é pior)? Depois teríamos de descobrir quando, no curso do desenvolvimento humano, adquirimos as propriedades que tornam valiosas as nossas vidas. Além disso, teríamos de determinar a importância moral da potencialidade. Que relevância terá o facto de que um indivíduo se irá desenvolver até se tornar plenamente uma pessoa humana? Tudo isto é suficientemente difícil, mas, para tornar as coisas piores, nem é completamente óbvio que estas sejam as questões correctas. Não é surpreendente que as pessoas discordem. Nestes casos, a dificuldade das questões, e não a ausência de «verdade», pode ser a melhor explicação para o facto de as pessoas não conseguirem chegar a um acordo.
Na ciência podemos encontrar um padrão semelhante de acordo e desacordo. Todos os cientistas estão de acordo no que respeita a um grande núcleo de verdades aceites, mas há também muitas questões controversas. Como sabem todos os que lêem a secção de ciência das terças-feiras do New York Times, os cientistas discordam quanto à relação entre a teoria quântica e a relatividade clássica, às perspectivas da teoria das cordas, àquilo que as célebres experiências sobre a cognição infantil mostram realmente e ao percurso que a evolução seguiu. Também esta lista poderia continuar indefinidamente. Assim, contrariamente às opiniões superficiais, não parece haver qualquer diferença fundamental entre a ética e a ciência no que respeita à dimensão do desacordo existente. Ambas se caracterizam por um acordo maciço sobre muitas coisas; um acordo que existe a par de muitos desacordos sobre outras coisas.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção Filosofia Aberta -pp 244-7)

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