quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

ÉTICA E MORAL


Uma distinção indistinta
A pretensa distinção entre a ética e a moral é intrinsecamente confusa e não tem qualquer utilidade. A pretensa distinção seria a seguinte: a ética seria uma reflexão filosófica sobre a moral. A moral seria os costumes, os hábitos, os comportamentos dos seres humanos, as regras de comportamento adoptadas pelas comunidades. Antes de vermos por que razão esta distinção resulta de confusão, perguntemo-nos: que ganhamos com ela?
Em primeiro lugar, não ganhamos uma compreensão clara das três áreas da ética: a ética aplicada, a ética normativa e a metaética. A ética aplicada trata de problemas práticos da ética, como o aborto ou a eutanásia, os direitos dos animais, ou a igualdade. A ética normativa trata de estabelecer, com fundamentação filosófica, regras ou códigos de comportamento ético, isto é, teorias éticas de primeira ordem. A metaética é uma reflexão sobre a natureza da própria ética: Será a ética objectiva, ou subjectiva? Será relativa à cultura ou à história, ou não?
Em segundo lugar, não ganhamos qualquer compreensão da natureza da reflexão filosófica sobre a ética. Não ficamos a saber que tipo de problemas constitui o objecto de estudo da ética. Nem ficamos a saber muito bem o que é a moral.
Em conclusão, nada ganhamos com esta pretensa distinção.
Mas, pior, trata-se de uma distinção indistinta, algo que é indefensável e que resulta de uma confusão. O comportamento dos seres humanos é multifacetado; nós fazemos várias coisas e temos vários costumes e nem todas as coisas que fazemos pertencem ao domínio da ética, porque nem todas têm significado ético. É por isso que é impossível determinar à partida que comportamentos seriam os comportamentos morais, dos quais se ocuparia a reflexão ética, e que comportamentos não constituem tal coisa. Fazer a distinção entre ética e moral supõe que podemos determinar, sem qualquer reflexão ou conceitos éticos prévios, quais dos nossos comportamentos pertencem ao domínio da moral e quais terão de ficar de fora. Mas isso é impossível de fazer, pelo que a distinção é confusa e na prática indistinta.
Vejamos um caso concreto: observamos uma comunidade que tem como regra de comportamento descalçar os sapatos quando vai para o jardim. Isso é um comportamento moral sobre o qual valha a pena reflectir eticamente? Como podemos saber? Não podemos. Só podemos determinar se esse comportamento é moral ou não quando já estamos a pensar em termos morais. A ideia de que primeiro há comportamentos morais e que depois vem o filósofo armado de uma palavra mágica, a "ética", é uma fantasia. As pessoas agem e reflectem sobre os seus comportamentos e consideram que determinados comportamentos são amorais, isto é, estão fora do domínio ético, como pregar pregos, e que outros comportamentos são morais, isto é, são comportamentos com relevância moral, como fazer abortos. E essas práticas e reflexões não estão magicamente separadas da reflexão filosófica. A reflexão filosófica é a continuação dessas reflexões.
Evidentemente, tanto podemos usar as palavras "ética" e "moral" como sinónimas, como podemos usá-las como não sinónimas. É irrelevante. O importante é saber do que estamos a falar se as usarmos como sinónimas e do que estamos a falar quando não as usamos como sinónimas. O problema didáctico, que provoca dificuldades a muitos estudantes, é que geralmente os autores que fazem a distinção entre moral e ética não conseguem, estranhamente, explicar bem qual é a diferença — além de dizer coisas vagas como "a ética é mais filosófica".
Se quisermos usar as palavras "moral" e "ética" como não sinónimas, estaremos a usar o termo "moral" unicamente para falar dos costumes e códigos de conduta culturais, religiosos, etc., que as pessoas têm. Assim, para um católico é imoral tomar a pílula ou fazer um aborto, tal como para um muçulmano é imoral uma mulher mostrar a cara em público, para não falar nas pernas. Deste ponto de vista, a "moral" não tem qualquer conteúdo filosófico; é apenas o que as pessoas efectivamente fazem e pensam. A ética, pelo contrário, deste ponto de vista, é a disciplina que analisa esses comportamentos e crenças, para determinar se eles são ou não aceitáveis filosoficamente. Assim, pode dar-se o caso que mostrar a cara em público seja imoral, apesar de não ser contrário à ética; pode até dar-se o caso de ser anti-ético defender que é imoral mostrar a cara em público e proibir as mulheres de o fazer.
O problema desta terminologia é que quem quer que tenha a experiência de escrever sobre assuntos éticos, percebe que ficamos rapidamente sem vocabulário. Como se viu acima, tive de escrever "anti-ético", porque não podia dizer "imoral". O nosso discurso fica assim mais contorcido e menos directo e claro. Quando se considera que "ética" e "moral" são termos sinónimos (e etimologicamente são sinónimos, porque são a tradução latina e grega uma da outra), resolve-se as coisas de maneira muito mais simples. Continuamos a fazer a distinção entre os comportamentos das pessoas e as suas crenças morais, mas não temos de introduzir o artificialismo de dizer que essas crenças morais, enquanto crenças morais, estão correctas, mas enquanto preferências éticas podem estar erradas. Isto só confunde as coisas. É muito mais fácil dizer que quem pensa que mostrar a cara é imoral está pura e simplesmente enganado, e está a confundir o que é um costume religioso ou cultural com o que é defensável. Peter Singer, James Rachels, Thomas Nagel, e tantos outros filósofos centrais, usam os termos "ética" e "moral" como sinónimos. Para falar dos costumes e códigos religiosos, temos precisamente estas expressões muito mais esclarecedoras: "costumes" e "códigos religiosos".

Desidério Murcho (Texto retirado da Revista de Filosofia - Crítica na Rede)

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