domingo, 10 de janeiro de 2010

ÉTICA E OBJECTIVIDADE viii


A importância dos interesses humanos
A discussão precedente deve ter afastado a maior parte das nossas dúvidas sobre a objectividade da ética, mas não todas elas. Podem subsistir algumas dúvidas obstinadas, e por uma boa razão. Ainda não fomos ao fundo da questão. Precisamos de aprofundar um pouco a natureza do raciocínio ético.
Toda a investigação, seja ela científica, matemática ou ética, implica raciocinar: reunimos dados, elaboramos argumentos e retiramos conclusões. Mas o raciocínio não pode prosseguir para sempre. Se eu disser a uma pessoa que A é verdade e ela quiser saber porquê, posso indicar B como razão. Se ela colocar B em questão, posso justificar B apelando a C, e assim por diante. Porém, chegamos ao fim da linha em algum ponto. Isto significa que toda a cadeia de raciocínio acaba por apelar a uma consideração que não está ela própria justificada, sendo simplesmente assumida como verdadeira.
O raciocínio científico termina quando chegamos a factos simples sobre o mundo físico. Sabemos, por exemplo, que as galáxias se estão a afastar. Como sabemos isto? Sabemo-lo devido aos factos sobre a luz que atinge a Terra, mais precisamente aos factos sobre o desvio para o vermelho no espectro. Como sabemos o que significa o que significa o desvio para o vermelho? Sabemo-lo devido a muitas observações e experiências já realizadas. Este exemplo está muito simplificado, mas, quando chegamos aos factos observados, mais simples, chegámos à bases em que assenta tudo o resto. O raciocínio matemático é um pouco diferente, já que não apela aos factos sobre o mundo físico. Baseia-se antes em axiomas, que podem ser considerados auto-evidentes ou simplesmente assumidos como verdadeiros para os efeitos do argumento.
Onde terminam os argumentos éticos? A que apelam em última análise? Olhemos com mais atenção para um dos nossos exemplos anteriores. O Sr. Santos é um mau homem porque, entre outras coisas, costuma mentir. Esta é uma boa razão para considerá-lo moralmente deficiente, dissemos, pelo que este facto constitui parte da «prova» de que ele se comporta imoralmente. Mas por que razão isso o desfavorece? Por que razão é mau mentir? É fácil explicar.
Mentir é mau por diversas razões. Em primeiro lugar, prejudica as pessoas. Se eu mentir a uma pessoa e ela acredita em mim, terá formado uma crença falsa. Isso pode fazer as coisas correrem-lhe mal de várias maneiras. Suponha-se que ela me pergunta quando começa o concerto e que eu lhe digo que começa às 9:00, embora saiba que começa às 8:00. Ela chega às 9:00 apenas para descobrir que perdeu o concerto. Se multiplicarmos isto muitas vezes, veremos por que razão é importante que as pessoas nos digam a verdade. Em segundo lugar, mentir é uma violação da confiança. Quando uma pessoa acredita em mim sem verificar o que digo, está a confiar em mim, pelo que, se lhe mentir, estarei a prejudicá-la de uma forma especial, tirando partido da sua confiança. É por esta razão que, quando nos mentem, sentimos isso como uma afronta pessoal. Por fim, podemos sublinhar que a regra contra mentir é uma regra social fundamental, no sentido em que nenhuma sociedade poderia existir sem ela. Se não presumirmos que as pessoas dizem a verdade umas às outras, a comunicação não poderá ter lugar. Na ausência de comunicação entre os seus membros, a sociedade não pode existir.
Deste modo, o juízo de que mentir é errado não é arbitrário. É apoiado por boas razões que vão bastante fundo. Suponha-se, no entanto, que uma pessoa não ficava satisfeita e queria saber por que razão importa que as pessoas sejam prejudicadas, que a confiança seja violada ou que a sociedade exista. Poderíamos dizer um pouco mais. Poderíamos sublinhar que as pessoas vivem pior quando são prejudicadas ou quando não podem confiar nos outros. Poderíamos sublinhar que todos ficaríamos muito pior se não pudéssemos viver com outras pessoas em sociedades cooperativas e pacíficas. Mas essa pessoa insiste: por que razão importa que as pessoas vivam pior? Aqui chegámos ao fim da linha. Do mesmo modo que o raciocínio científico termina no recurso a observações de factos físicos simples, o raciocínio ético termina em considerações sobre aquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior – ou, talvez, em considerações sobre aquilo que faz os seres sencientes viverem melhor ou pior.
Algumas pessoas pensam que isto justifica o uso da palavra «subjectiva» para descrever a ética – a ética é subjectiva porque, em última análise, diz respeito àquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior. Eu não usaria a palavra dessa forma, mas, como é evidente, os outros são livres de a usar como bem entenderem. Aquilo que importa é que fique claro o que se segue da nossa escolha terminológica. Se, ao dizermos que a ética é subjectiva, quisermos dizer apenas que, em última análise, esta é sobre aquilo que faz as pessoas viverem melhor ou pior, não se segue daqui que a ética seja arbitrária. Tão pouco se segue que as pessoas sejam livres de aceitar quaisquer juízos éticos de que gostem, ou que as opiniões de uma pessoa sejam tão boas como as de qualquer outra. A ética permanece uma questão racional e continua a ser objectivamente verdade que a ética exige algumas coisas e proíbe outras. Os juízos éticos podem ainda ser correctos ou incorrectos. Desta forma, a objectividade da ética é segura.

Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva (Colecção Filosofia Aberta, pp. 255-8)

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