O argumento metafísico. Existe outro argumento para apreciar, nomeadamente a ideia de que a ética não pode ser objectiva porque os «valores» não existem enquanto parte do mundo objectivo.
Se fizermos um inventário do mundo, anotando todas as coisas que existem, poderemos fazer uma listagem muito longa que mencione pedras, rios, montanhas, plantas e animais. Encontraríamos edifícios, desertos, grutas, ferro e ar. Olhando para cima, veríamos estrelas e galáxias. Obviamente, nunca conseguiríamos concluir essa lista. A vida é demasiado curta, existem demasiadas coisas no universo e somos demasiado ignorantes. Mas julgamos saber, pelo menos aproximadamente, que tipos de coisas existem. Existem objectos físicos, feitos de átomos, que obedecem às leis da física, da química e da biologia; e existem seres conscientes, como nós próprios, que talvez sejam apenas outro tipo de objecto físico. Um inventário completo seria apenas uma lista mais longa dos mesmos tipos de coisas, ou pelo menos, é isso que pensamos.
Mas, entre todas essas coisas, onde estão os valores? Em lado nenhum, parece ser a resposta. Os valores não existem, pelo menos da mesma forma que as pedras e os rios. Considerado à margem dos sentimentos e dos interesses humanos, o mundo parece não incluir quaisquer valores. David Hume exprimiu esta ideia com clareza:
Considere qualquer acção julgada viciosa: o assassínio deliberado, por exemplo. Examine-a de todas as perspectivas e veja se consegue encontrar essa questão de facto, ou existência real, a que se chama vício. Seja qual for a forma como a considere, encontrará apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe qualquer outra questão de facto no caso. O vício escapar-lhe-á inteiramente enquanto considerar o objecto. Nunca o irá encontrar, até que vire a sua reflexão para o seu próprio peito e encontre um sentimento de reprovação, que sugere em si, relativo a essa acção. Encontramos aqui uma questão de facto, mas esta consiste num objecto dos sentimentos, e não da razão.
Obviamente, podem existir outros seres conscientes que também tenham sentimentos e interesses – animais não humanos, por exemplo, e talvez habitantes de outros planetas. Porém, eles estarão na mesma posição que nós. Não encontrarão quaisquer valores no mundo que os rodeia. Só as suas «paixões, motivos, volições e pensamentos» farão surgir os seus próprios valores.
Outros filósofos desenvolveram este tema. (…) À semelhança de Hume, Nietzsche nega que existam factos morais. «Não existem fenómenos morais», escreve, «existem apenas interpretações morais dos fenómenos». Deste modo, a forma correcta de pensar sobre a ética não é focar a moralidade, concebida como um objecto unificado, mas estudar as moralidades, os sistemas de valores historicamente contingentes que foram criados por povos diferentes em épocas diferentes. O próprio Nietzsche dedica um espaço considerável a analisar a «moralidade dos escravos», que é a moralidade dominante na cultura ocidental. Despreza a moralidade de escravos por glorificar qualidades humanas como a humildade, a abnegação e a obediência. Afirma que esta não é digna dos homens nobres, e defende que a substituamos por uma ética que sublinhe a assertividade e o domínio.
Este é o «argumento metafísico»: as opiniões éticas não podem ser objectivamente verdadeiras ou falsas porque não existe uma realidade moral a que possam corresponder ou não corresponder. Esta é a diferença profunda entre a ética e a ciência. A ciência descreve uma realidade que existe independentemente dos observadores. Se os seres sencientes deixassem de existir, o mundo permaneceria inalterado nos restantes aspectos – continuaria a existir e não deixaria de ser precisamente como a ciência o descreve. No entanto, se não existissem quaisquer seres sencientes, não existiria qualquer dimensão moral na realidade. Podemos resumir o argumento desta forma:
1. Existem verdades objectivas na ciência porque existe uma realidade objectiva – o mundo físico – que a ciência descreve.
2. 2. Mas não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Não existe «aí fora» algo que a ética possa descrever.
3. Logo, não existem verdades objectivas na ética.
Uma vez mais, podemos perguntar se isto é correcto. É verdade, julgo eu, que não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Contudo, não se segue daqui que não possam existir verdades objectivas na ética. A ética pode ter uma base objectiva de outra forma.
Uma investigação pode ser objectiva de duas formas:
- Uma investigação pode ser objectiva porque existe uma realidade independentemente que esta descreve correcta ou incorrectamente. A ciência é objectiva neste sentido.
-Uma investigação pode ser objectiva porque existem métodos de raciocínio fiáveis que determinam a verdade e a falsidade no seu domínio. A matemática é objectiva neste sentido. Os resultados matemáticos são objectivos porque são demonstráveis com os tipos relevantes de argumentos.
A ética é objectiva no segundo sentido. Não descobrimos se uma opinião ética é verdadeira comparando-a com uma espécie de «realidade moral». Para compreender a tolice desta noção, basta tentar imaginar como seria fazer essa comparação. Descobrimos antes o que é certo ou o que se deve fazer examinado as razões ou os argumentos que, numa dada questão, podem ser avançados a favor de cada um dos lados – é certo fazer aquilo que está apoiado pelas melhoras razões para o fazer. Basta que possamos identificar e avaliar as razões a favor e contra os juízos éticos e que cheguemos a conclusões racionais.
Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva ( Colecção Filosofia Aberta, pp. 251-5)
Se fizermos um inventário do mundo, anotando todas as coisas que existem, poderemos fazer uma listagem muito longa que mencione pedras, rios, montanhas, plantas e animais. Encontraríamos edifícios, desertos, grutas, ferro e ar. Olhando para cima, veríamos estrelas e galáxias. Obviamente, nunca conseguiríamos concluir essa lista. A vida é demasiado curta, existem demasiadas coisas no universo e somos demasiado ignorantes. Mas julgamos saber, pelo menos aproximadamente, que tipos de coisas existem. Existem objectos físicos, feitos de átomos, que obedecem às leis da física, da química e da biologia; e existem seres conscientes, como nós próprios, que talvez sejam apenas outro tipo de objecto físico. Um inventário completo seria apenas uma lista mais longa dos mesmos tipos de coisas, ou pelo menos, é isso que pensamos.
Mas, entre todas essas coisas, onde estão os valores? Em lado nenhum, parece ser a resposta. Os valores não existem, pelo menos da mesma forma que as pedras e os rios. Considerado à margem dos sentimentos e dos interesses humanos, o mundo parece não incluir quaisquer valores. David Hume exprimiu esta ideia com clareza:
Considere qualquer acção julgada viciosa: o assassínio deliberado, por exemplo. Examine-a de todas as perspectivas e veja se consegue encontrar essa questão de facto, ou existência real, a que se chama vício. Seja qual for a forma como a considere, encontrará apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe qualquer outra questão de facto no caso. O vício escapar-lhe-á inteiramente enquanto considerar o objecto. Nunca o irá encontrar, até que vire a sua reflexão para o seu próprio peito e encontre um sentimento de reprovação, que sugere em si, relativo a essa acção. Encontramos aqui uma questão de facto, mas esta consiste num objecto dos sentimentos, e não da razão.
Obviamente, podem existir outros seres conscientes que também tenham sentimentos e interesses – animais não humanos, por exemplo, e talvez habitantes de outros planetas. Porém, eles estarão na mesma posição que nós. Não encontrarão quaisquer valores no mundo que os rodeia. Só as suas «paixões, motivos, volições e pensamentos» farão surgir os seus próprios valores.
Outros filósofos desenvolveram este tema. (…) À semelhança de Hume, Nietzsche nega que existam factos morais. «Não existem fenómenos morais», escreve, «existem apenas interpretações morais dos fenómenos». Deste modo, a forma correcta de pensar sobre a ética não é focar a moralidade, concebida como um objecto unificado, mas estudar as moralidades, os sistemas de valores historicamente contingentes que foram criados por povos diferentes em épocas diferentes. O próprio Nietzsche dedica um espaço considerável a analisar a «moralidade dos escravos», que é a moralidade dominante na cultura ocidental. Despreza a moralidade de escravos por glorificar qualidades humanas como a humildade, a abnegação e a obediência. Afirma que esta não é digna dos homens nobres, e defende que a substituamos por uma ética que sublinhe a assertividade e o domínio.
Este é o «argumento metafísico»: as opiniões éticas não podem ser objectivamente verdadeiras ou falsas porque não existe uma realidade moral a que possam corresponder ou não corresponder. Esta é a diferença profunda entre a ética e a ciência. A ciência descreve uma realidade que existe independentemente dos observadores. Se os seres sencientes deixassem de existir, o mundo permaneceria inalterado nos restantes aspectos – continuaria a existir e não deixaria de ser precisamente como a ciência o descreve. No entanto, se não existissem quaisquer seres sencientes, não existiria qualquer dimensão moral na realidade. Podemos resumir o argumento desta forma:
1. Existem verdades objectivas na ciência porque existe uma realidade objectiva – o mundo físico – que a ciência descreve.
2. 2. Mas não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Não existe «aí fora» algo que a ética possa descrever.
3. Logo, não existem verdades objectivas na ética.
Uma vez mais, podemos perguntar se isto é correcto. É verdade, julgo eu, que não existe qualquer realidade moral comparável à realidade do mundo físico. Contudo, não se segue daqui que não possam existir verdades objectivas na ética. A ética pode ter uma base objectiva de outra forma.
Uma investigação pode ser objectiva de duas formas:
- Uma investigação pode ser objectiva porque existe uma realidade independentemente que esta descreve correcta ou incorrectamente. A ciência é objectiva neste sentido.
-Uma investigação pode ser objectiva porque existem métodos de raciocínio fiáveis que determinam a verdade e a falsidade no seu domínio. A matemática é objectiva neste sentido. Os resultados matemáticos são objectivos porque são demonstráveis com os tipos relevantes de argumentos.
A ética é objectiva no segundo sentido. Não descobrimos se uma opinião ética é verdadeira comparando-a com uma espécie de «realidade moral». Para compreender a tolice desta noção, basta tentar imaginar como seria fazer essa comparação. Descobrimos antes o que é certo ou o que se deve fazer examinado as razões ou os argumentos que, numa dada questão, podem ser avançados a favor de cada um dos lados – é certo fazer aquilo que está apoiado pelas melhoras razões para o fazer. Basta que possamos identificar e avaliar as razões a favor e contra os juízos éticos e que cheguemos a conclusões racionais.
Problemas da Filosofia, James Rachels, Gradiva ( Colecção Filosofia Aberta, pp. 251-5)
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