domingo, 29 de junho de 2008

A VOCAÇÃO DE LUTERO E A GRAÇA DE CALVINO

A crescente influência da classe comercial na Europa medieval colocou a perspectiva tradicional cristã sob uma pressão constante; mas foi o advento da religião protestante que estilhaçou definitivamente a antiga visão. Lutero via os padres como pessoas corruptas, que serviam os seus interesses e constituíam uma barreira entre o crente e Deus. Isto levou-o a rejeitar a divisão da comunidade cristã em castas: os padres e os vulgares leigos crentes. A apoiar esta divisão da cristandade católica havia a noção de que aqueles que se ordenavam tinham uma “vocação”, ao passo que os restantes, devido ao pecado de Adão, tinham de trabalhar. Opondo-se a esta visão, Lutero afirmou que cada um de nós tinha uma “vocação”; os mercadores e camponeses tinham-na, tal como os líderes religiosos, e ser bem sucedido na sua vocação era um dever religioso. Assim, era necessário abandonar completamente a velha ideia de que ser um mercador era inerentemente indigno e dificultava a salvação. Sem dúvida que o abandono desta visão também aproveitava aos rebeldes protestantes. Para resistirem ao poder da Igreja estabelecida, precisavam do apoio da classe média em ascensão, cuja riqueza e poder económico eram, na altura, na proporção inversa da estima que a Igreja lhes dedicava.
Um elemento característico da teologia de Calvino é a doutrina da predestinação, segundo a qual a salvação não pode ser merecida através de boas acções, e nem mesmo de uma vida moralmente irrepreensível, tendo, ao invés, de ser concedida por graça divina. Calvino via o êxito terreno como um sinal de graça. Os calvinistas, então, inverteram a anterior perspectiva cristã: a riqueza, longe de pôr em risco as possibilidades de salvação, era um sinal de salvação, e, quanto mais riqueza se tivesse, mais indubitável era o sinal.
Calvino ridicularizou a doutrina de Aristóteles de que o dinheiro se destina a ser meramente um meio de troca e, por conseguinte, não é natural usá-lo para ganhar mais dinheiro. Uma criança consegue ver, diz-nos Calvino, que o dinheiro fechado numa caixa é estéril. Mas os que pedem dinheiro emprestado não pretendem deixá-lo ocioso. Por exemplo, se o dinheiro compra um terreno, então o dinheiro gera mais dinheiro. Os mercadores pedem dinheiro emprestado para aumentar as suas existências em bens e, para eles, o dinheiro pode, muito correctamente, ser tão fértil como qualquer outro tipo de bem.
Igualmente convincente era a desdenhosa rejeição da casuística dos escolásticos que, nesta altura, tinham já desenvolvido muitas excepções à regra que proibia a usura. Calvino recuou até à Regra de Ouro: a usura é pecaminosa apenas se prejudicar o próximo. E quando é que a usura prejudica o próximo? Não se deve – pregava Calvino – esperar que um eclesiástico conheça todos os pormenores do negócio. Deixe-se que a consciência de cada crente seja o seu guia. Talvez aqui Calvino seja um pouco ingénuo acerca da natureza do negócio e da eficácia da consciência, não guiada por quaisquer princípios específicos, quando enfrenta o impulso para o lucro. Ou talvez ele estivesse sobretudo interessado em obter o apoio da comunidade mercantil para os seus ensinamentos. Na prática, o que dizia respeito à cobrança de juros, “deixe-se que a consciência de cada crente seja o seu guia” significava: vale tudo.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 127-130

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