sexta-feira, 20 de junho de 2008

ÉTICA E INTERESSE PESSOAL ii

Subsistem dúvidas pessoais acerca da ética. Viver eticamente, supomos, será duro e desconfortável, envolverá sacrifício próprio e, em termos gerais, não será compensador. Vemos a ética como contrapondo-se ao interesse próprio: pressupomos que aqueles que fazem fortuna recorrendo a informações internas ignoram a ética, mas são bem sucedidos na satisfação dos seus interesses (desde que não sejam apanhados). Nós próprios fazemos o mesmo, ao aceitar um emprego na qual a remuneração é superior à de outro, mesmo significando isso que estamos a ajudar a fabricar ou promover um produto que não faz qualquer bem ou, na verdade, faz adoecer as pessoas. Por outro lado, considera-se que quem recusa oportunidades de subir na carreira devido a “escrúpulos” éticos sobre a natureza do seu trabalho, ou quem doa a sua riqueza a boas causas, está a sacrificar os seus interesses próprios de forma a obedecer aos ditames da ética. Ainda pior, podemos considerá-los palermas, desperdiçando todas as coisas boas de que poderiam usufruir, enquanto outros se aproveitam da sua generosidade inútil.
Esta ortodoxia corrente acerca do interesse próprio e da ética traça um quadro da ética como algo externo a nós, hostil mesmo aos nossos próprios interesses. Vemo-nos constantemente divididos entre o impulso de contribuir para o nosso interesse próprio e o receio de sermos apanhados a fazer algo que os outros condenarão, e pelo qual seremos punidos. Encontra-se também na ideia de que os seres humanos se situam no ponto intermédio entre o céu e a terra, partilhando o reino espiritual dos anjos ao mesmo tempo que estão aprisionados pela sua natureza corporalmente grosseira a este mundo das bestas. O filósofo alemão Immanuel Kant retomou esta ideia ao retratar-nos como seres morais apenas na medida em que subordinamos os nossos desejos físicos naturais às ordens da natureza universal que percebemos através da nossa capacidade de raciocínio. É fácil ver uma relação entre esta ideia e a visão de Freud das nossas vidas dilaceradas pelo conflito entre id e super-ego.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 46-48

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