sábado, 3 de abril de 2010

O QUE É A ARTE? ii


2. Estética e filosofia da arte
Aires Almeida
É, pois, como filosofia da arte que a partir de aqui irei falar de estética. A filosofia da arte é, por sua vez, formada por um conjunto de problemas acerca da arte, para a resolução dos quais concorrem diferentes teorias. Algumas dessas teorias e os argumentos que as sustentam serão aqui discutidos, nomeadamente aquelas teorias que têm um conteúdo aparentemente mais intuitivo, isto é, aquelas que colhem a adesão espontânea de grande parte das pessoas que se defrontam pela primeira vez de forma directa com o problema. São também as teorias mais antigas e que, embora com um menor poder explicativo, gozam de uma popularidade assinalável.
2.1. O problema da definição de «obra de arte»
O primeiro problema que qualquer teoria da arte tem de enfrentar é o problema da própria definição de «arte» ou de «obra de arte». Como podemos então definir «arte»? Para o saber temos de perceber antes o que é definir algo.
Tipos de definições
Há quem defenda que definir um conceito é dizer em que consiste e caso não saibamos defini-lo dessa maneira também não estamos em condições de o utilizar adequadamente. Defender isto é o mesmo que dizer que há apenas uma forma de definir conceitos, o que não é o caso. Ao contrário do que é vulgar pensar-se, não existe apenas um tipo de definições. Sabemos utilizar perfeitamente o conceito «azul» sem que, no entanto, o possamos definir dessa maneira. Não o saber definir dessa maneira não é o mesmo que o não poder definir. Para compreendermos isso é preciso distinguir dois tipos de definições: definições explícitas e definições implícitas.
Diz-se que uma definição é explícita quando apresentamos as condições necessárias e suficientes do conceito a definir. Mas o que são condições necessárias e suficientes? Oferecemos uma condição necessária de X se apresentarmos uma propriedade que qualquer objecto tem de ter para ser X. Por exemplo, se dissermos que uma mãe é alguém que já teve filhos, estamos apenas a referir uma condição necessária para alguém ser mãe (de facto ninguém pode ser mãe se não tiver tido pelo menos um filho); só que isso não é suficiente, pois há pessoas que já tiveram filhos, como é o caso dos homens com filhos, e que não são mães. A condição necessária aplica-se a todas as mães, mas não tem de se aplicar só às mães. Temos, pois, de definir «mãe» de tal maneira que a definição inclua as mães e só as mães, o que se faz indicando a condição suficiente. Uma condição suficiente de X é uma característica tal que se um qualquer objecto a possui, então esse objecto é X. Isso indica-nos que se trata de uma característica de X e apenas de X. A condição suficiente de X não nos garante, pois, a inclusão de tudo o que queremos incluir na definição de X. Para dar um exemplo, é condição suficiente viver no Algarve para viver em Portugal, embora essa não seja uma condição necessária. Afinal de contas, as pessoas que vivem no Minho também vivem em Portugal. Voltando ao meu primeiro exemplo, se quisermos dar uma definição explícita de «mãe» teremos de dizer qualquer coisa como isto: «alguém é uma mãe se, e somente se, é do sexo feminino e já teve filhos». Ser do sexo feminino e ter tido filhos são em conjunto propriedades suficientes para alguém ser mãe; mas cada uma delas em separado é apenas condição necessária.
Já numa definição implícita não temos de oferecer as condições necessárias e suficientes de um conceito. Exigir, por exemplo, as condições necessárias e suficientes do conceito de azul, é fazer uma exigência que não pode ser satisfeita. Penso que o mesmo acontece também com o conceito de filosofia. Daí o embaraço do professor de filosofia quando o aluno lhe pede que defina a disciplina que lecciona. Significa isso que não podemos definir tais conceitos? Se estivermos a pensar numa definição explícita, é claro que não. Mas é perfeitamente possível dar uma definição implícita, que é o que fazemos com as crianças quando lhes queremos ensinar as cores (e com os alunos quando nos perguntam o que é a filosofia) e o que provavelmente teríamos de fazer se nos aparecesse por aí algum extraterrestre interessado em compreender o que dizemos. Assim, para dar uma definição de X, usamos esse conceito em situações diferentes de tal modo que, ao fazê-lo, estamos a exemplificar as propriedades dos objectos que com X queremos identificar. Diríamos, então, ao extraterrestre que o céu (poderíamos até apontar) é azul, que o mar é azul, que as camisolas do Belenenses são azuis, e por aí em diante.
Definições e caracterizações
Mas acontece, ainda assim, que muitas das nossas definições implícitas nos deixam insatisfeitos. Precisamos de saber algo mais acerca dos conceitos definidos. Algo que seja relevante para a compreensão do conceito e que nos informe acerca das propriedades mais importantes dos objectos que fazem parte da sua extensão. Para isso é que servem as caracterizações, isto é, a apresentação das principais características daquilo que os conceitos referem. No caso da filosofia, o professor pode apontar exemplos de problemas, teorias e argumentos filosóficos. Estará assim a dar uma definição implícita de filosofia. Mas pode e deve ir mais longe, fazendo acompanhar a sua definição de uma caracterização. Nesse sentido, poderá referir o que distingue os problemas filosóficos dos problemas científicos e religiosos; as teorias filosóficas das teorias científicas, religiosas e artísticas, etc. É claro que tal caracterização nunca irá ser exaustiva nem pacífica, mas, concordemos ou não com ela, sempre clarifica aquilo que se tem em mente quando se usa tal conceito.
Utilização classificativa e valorativa de «arte»
Retomando o problema da definição de «arte», quero desde já esclarecer que o termo «arte» ou a expressão «obra de arte» são frequentemente usados em dois sentidos diferentes: o sentido classificativo e o sentido valorativo. No primeiro destes dois sentidos não se tem em conta se uma determinada obra de arte é boa ou não, mas apenas se cai ou não debaixo da extensão do conceito de arte. Pretende-se apenas estabelecer se um certo objecto deve ser classificado como obra de arte. Ao classificarmos um veículo como automóvel nada dizemos acerca do seu valor como automóvel. Mas, às vezes, proferimos frases como «isto sim, é um automóvel», em que o significado de «automóvel» não é o mesmo que o apontado anteriormente. Estamos, neste caso, perante um exemplo da utilização valorativa de «automóvel», uma vez que com esta expressão queremos manifestar de forma positiva a nossa apreciação do veículo em causa, tal como o fazemos em relação a uma obra de arte ao afirmar «este quadro sim, é uma obra de arte». Aqui não estamos a classificá-la como obra de arte, mas a avaliá-lo como obra de arte boa. Estes dois usos são frequentemente confundidos e é imprescindível tê-los em mente quando se discutem as diferentes teorias da arte.
2.2. Definições explícitas de «arte»: as teorias essencialistas
Irão ser aqui brevemente discutidas três teorias da arte essencialistas. Trata-se de teorias que defendem uma ideia de arte intuitivamente partilhada por muitas pessoas, apesar das dificuldades que, como iremos ver, revelam quando são criticamente avaliadas.
Mas antes de avançar precisamos de esclarecer em que consiste uma teoria essencialista da arte. As teorias essencialistas defendem que existe uma essência de arte, ou seja, que existem propriedades essenciais comuns a todas as obras de arte e que só nas obras de arte se encontram. Ora as propriedades essenciais são diferentes das propriedades acidentais. Uma propriedade é essencial se os objectos que a exemplificam não podem deixar de a exemplificar sem que deixem de ser o que eram. Uma propriedade é acidental se, apesar de ser realmente exemplificada pelos objectos, poderia não o ser. Isso significa que as propriedades essenciais da arte são aquelas propriedades que não podem deixar de se encontrar nas obras de arte. São, portanto, exemplificadas por todas as obras de arte, reais ou meramente possíveis. Mas uma definição essencialista exige também que tais propriedades sirvam para distinguir a arte de outras coisas que não são arte. Daí que se procurem apenas identificar as propriedades essenciais que sejam individuadoras da arte. Por exemplo, uma propriedade essencial das obras de arte é a de terem um autor (pelo menos). Mas ter um autor não é uma propriedade individuadora da arte porque outras coisas que não são arte têm também essa propriedade essencial, como é o caso dos artigos de opinião dos jornais. Não seria por aí que iríamos identificar as obras de arte. Ora, se há propriedades comuns a todas as obras de arte e individuadoras das obras de arte, é então possível dizer quais são as suas condições necessárias e suficientes; quer dizer, é possível fornecer uma definição explícita de arte. Contudo, é preciso reconhecer que nem todas as definições explícitas são essencialistas.

Retirado de Textos de Apoio ao Manual A Arte de Pensar, 10ºAno - Didáctica Editora

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