quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio v


Parte V
Há ainda uma última objecção ao argumento do desígnio, que tem a ver com o problema do mal. É pela palavra de Fílon que, uma vez mais, Hume discute os vários pontos do argumento do desígnio, desta vez referindo-se ao problema do mal, com a clara intenção de, ao referi-lo, ridicularizar o argumento inicial:
«Numa palavra, Cleantes, um homem que siga a vossa hipótese é talvez capaz de afirmar ou de conjecturar que o universo surgiu a dado momento de algo como o desígnio; mas, além dessa posição, não poderá asseverar uma circunstância única e pode depois fixar todos os pontos da sua teologia com toda a licença da fantasia e do hipotético. Este mundo, que ele saiba, tem muitas falhas e imperfeições, comparado com um padrão superior; e foi apenas a primeira tentativa rude de uma qualquer divindade infantil, que mais tarde o abandonou, envergonhada com o seu deficiente desempenho; é a obra apenas de uma divindade dependente e inferior, e é objecto de troça dos seus superiores; é o produto da idade avançada e da senilidade de uma qualquer divindade aposentada, e desde a sua morte tem continuado por inércia, a partir do primeiro impulso e força activa que dele recebeu. [...] E, pela minha parte, não posso pensar que um sistema de teologia tão selvagem e instável seja preferível a nenhum.» (Op. Cit., pp. 37-38)
Fílon ridiculariza, de facto, o argumento do desígnio: dado que o mundo é tão cheio de imperfeição e de mal, a ter sido criado segundo o desígnio de uma divindade, essa divindade só poderia ser ou inexperiente ou estar já incapacitada. Obviamente, estas duas hipóteses não se põem com seriedade. Servem apenas para mostrar como o argumento do desígnio acaba por ser a melhor objecção contra si mesmo: se se infere do mundo e da sua ordem, tal como o conhecemos, a existência de Deus que o criou segundo um plano que ele próprio concebeu, isso implica que esse Deus não pode ser perfeitamente bom e sumamente justo, como os teístas normalmente o qualificam. E este é o problema do mal: se Deus existe e se é o criador do mundo, e se entre as suas qualidades se contam a omnipotência e a perfeita bondade, então porque é que há mal (e tanto mal, diga-se!) no mundo? Se é certo que há mal no mundo, não é certo que Deus exista sequer, sendo ainda menos certo que seja omnipotente e perfeitamente bom. O que é certo é que, exista ou não, ou é omnipotente, ou é perfeitamente bom, não podendo ter ambas as qualidades. Os ateístas afirmam que Deus não é nem uma coisa nem outra, pois não existe. E, considerando as objecções tão fortes que são apresentadas contra os tão implausíveis argumentos teístas, será pelo menos mais prudente aceitar as teses ateístas.
Para finalizar, o argumento do desígnio — nomeadamente a analogia do relojoeiro — levanta esta espada de dois gumes aos teístas: se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é grande, para reforçar a sua tese da semelhança entre os desígnios e as obras dos humanos e de Deus, então isso implica que as características de Deus se assemelhem de tal modo às humanas, que a imperfeição, a finitude e as limitações várias terão que estar incluídas neste rol de semelhanças. Ora, daqui segue-se que um Deus tão parecido com os humanos, e, por consequência, tão limitado e imperfeito como estes últimos, não poderia ter construído o mundo. Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações em que precisa de se apoiar. Por outro lado, se o teísta afirma que a semelhança entre os humanos e Deus é remota, para não correr este risco que acabamos de apontar, então isso implica reconhecer que a analogia é de facto frágil e remota, e implica também que não podemos, desse modo, saber quais as características de Deus; logo, não sabemos se ele teria ou não sido capaz de conceber e criar o mundo (para além de nem sequer sabermos se existe). Logo, o argumento do desígnio é refutado por uma das afirmações que precisa de preservar também para ser mantido. O que descobrimos é que, de uma maneira ou de outra, considerando esta e as objecções que já apresentei e analisei anteriormente, o argumento do desígnio não nos oferece, de facto, uma explicação séria e fiável, sendo, pelo contrário, ilógico porque inconsistente, cientificamente errado e contraditório, e auto-refutante.
Conclusão
Procurei apresentar e discutir o argumento do desígnio na sua formulação tradicional, baseando-me para isso nos célebres Diálogos sobre a Religião Natural de David Hume, em que o autor trata este argumento de uma forma reconhecidamente rigorosa. A todas as objecções que o próprio David Hume apresentou ao argumento do desígnio, juntei alguns pontos críticos meus e baseei-me em alguns pontos críticos de apoio apresentados por John L. Mackie, Simon Blackburn, Richard Dawkins e pelo próprio Richard Popkin, na sua introdução aos Diálogos.
Espero que este trabalho seja elucidativo e que permita perceber como é que o argumento do desígnio é formulado, quais as suas implicações, as objecções que lhe são levantadas, e por que razão, afinal, falha no seu objectivo: não prova a existência de Deus. Espero também que este trabalho possa ser um instrumento de reflexão para que cada um possa chegar às suas próprias conclusões sobre o problema analisado.
Miguel Moutinho

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