segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Duas perspectivas sobre o problema do mal iii


Parte III
Seja como for, é impossível não estranhar que uma explicação teísta, como a de Swinburne, afirme a omnipotência, a perfeita liberdade e a omnisciência de Deus, e, ao mesmo tempo, afirme limites para estas três supostas faculdades (que, por definição, são ilimitadas) de Deus.
Swinburne, como já se disse, antecipa estas objecções, afirmando que os seres humanos, por terem livre arbítrio e não estarem absolutamente determinados nas suas decisões e acções, têm esta liberdade, que faz com que Deus não possa saber o que cada pessoa vai fazer no momento seguinte. Segundo Swinburne, foi Deus que, na sua omnipotência, deu aos humanos este livre arbítrio, antevendo as consequências disso, como o não poder saber aquilo que um qualquer ser humano fará no momento seguinte. É como se Deus arriscasse dar o livre arbítrio aos humanos, mesmo sabendo que deixaria de saber quais as suas intenções em cada momento. O filósofo também adverte que esta é a sua perspectiva, e não a defendida pelas tradições cristã e judaica. Qualquer ateísta terá, pelo menos, de reconhecer a prudência e a coerência que Swinburne procura dar à sua explicação, ainda que estas questões não tenham uma resposta absolutamente convincente.
No seguimento da defesa da sua perspectiva, se até aqui ainda não tinha referido a bondade de Deus, é ainda no primeiro capítulo do livro que Swinburne diz:
Supostamente, Deus é perfeitamente bom. O facto de ser perfeitamente bom segue-se do facto de ser perfeitamente livre e omnisciente. (p. 21)
Esperar-se-ia que o filósofo, à semelhança do que disse quanto às três qualidades de Deus referidas anteriormente, afirmasse a perfeita bondade de Deus seguida de um limite (eventualmente lógico), até porque, segundo Swinburne, a perfeita bondade de Deus "segue-se do facto de ser perfeitamente livre e omnisciente", duas qualidades que, como já se viu, não são, também de acordo com o mesmo, absolutamente ilimitadas. Porém, Swinburne afirma a perfeita bondade de Deus sem reservas, dizendo que, na sua omnisciência, Deus conhecerá as verdades morais — aquilo que é verdadeiramente bom ou mau, e que o filósofo afirma existirem enquanto tal, uma vez que há um forte consenso em geral quanto ao que é bom e quanto ao que é mau. Por outro lado, há outra questão que pode ser lançada: será forçoso que um ser omnisciente e perfeitamente livre tenha que ser sumamente bom?
Swinburne diz que Deus, conhecendo o que é verdadeiramente bom, fará sempre aquilo que é bom e não o contrário. Portanto, Deus é perfeitamente bom. Sendo Deus perfeitamente bom, Deus é uma autoridade moral. Para Swinburne, se todos temos o dever de retribuir o bem que nos fazem a quem no-lo faz, e se Deus nos deu o bem que é a existência (entre outros), então temos o dever de lhe retribuir esse bem, fazendo aquilo que Deus nos diz para fazer. Assim, Deus, sendo perfeitamente bom e sendo uma autoridade moral, e porque nos beneficia, cria em nós um conjunto de obrigações morais e tem o poder e a autoridade para nos prescrever esta ou aquela acção, que assim temos o dever de cumprir. Porque é perfeitamente bom e porque sabe o que é verdadeiramente bom, Deus nunca nos pedirá uma acção má.
Quanto aos actos bons, Swinburne refere-se às obrigações que temos e aos actos bons aos quais não estamos obrigados, mas que podemos voluntariamente realizar. Se o fizermos, estaremos a proceder bem, embora estejamos sempre limitados, dado que não podemos, por mais que queiramos, beneficiar ao mesmo tempo todos aqueles que precisam de ajuda. Se apenas cumprirmos as nossas obrigações, embora tal não tenha nenhum mérito especial, estaremos também a agir bem. Aquilo que não devemos é falhar ao cumprimento das nossas obrigações.
Para Swinburne, Deus tem também várias obrigações e pode realizar vários actos bons que excedam as suas obrigações, tendo, na sua omnipotência, poder para isso, excepto quando, como já se viu, tal não é logicamente possível. Ora, para Swinburne, é logicamente impossível para Deus realizar todos os actos bons possíveis que superem as suas obrigações. Diz o filósofo que a perfeita bondade de Deus "consiste em cumprir as suas obrigações, em não praticar actos maus e em realizar muitíssimos actos bons." (p. 26) E, uma vez mais, impõe-se a objecção: se Deus é omnipotente e se é perfeitamente bom, por que não lhe será possível realizar todos os actos bons imagináveis, mas apenas alguns? E, neste caso, qual é o limite lógico que impede Deus de o fazer? Swinburne diz que "Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis, pois esse mundo não pode existir — qualquer mundo pode ser melhorado" (p. 26); mas, se "Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis", se Deus não pode criar um mundo que seja tão bom quanto possível, como é que se pode afirmar que Deus é omnipotente e perfeitamente bom? A objecção ainda se pode acentuar mais: se Deus é conhecedor das verdades morais, ou seja, sabe tudo aquilo que é verdadeiramente bom, então saberá como o mundo poderia ser o melhor possível, ou mesmo como o mundo poderia ser perfeitamente bom, à imagem da própria perfeita bondade de Deus. Ora, se assim é, e se Deus é omnipotente, então porque razão "Deus não pode criar o melhor dos mundos possíveis"? Neste ponto, já nenhum ateísta poderá admitir esta argumentação de Swinburne como credível.
O problema do mal começa a desenhar-se a partir desta deficiente explicação teísta (mesmo uma tão séria como a de Swinburne). Se Deus tem todas estas qualidades que os teístas afirmam que tem, ou seja, é omnipotente e perfeitamente bom (entre outras), então como pode permitir que haja tanto mal no mundo? É esta questão que Swinburne aborda num capítulo da sua obra que dedica para responder à questão "Porque é que Deus permite o mal". Como teísta que é, é a partir desta posição que Swinburne procura explicar de que modo o problema do mal não implica a negação da existência de Deus como ser perfeitamente bom e justo.

Miguel Moutinho

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