segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O argumento do desígnio iv


Parte IV
Os teístas poderão objectar que este argumento de Fílon continua a deixar questões em aberto, como a causa da "geração animal ou vegetal", ou, para ser mais preciso, a reprodução biológica. Mas Fílon tem tanta legitimidade para parar a sua explicação neste argumento como têm os teístas para parar a sua explicação na conclusão da analogia do relojoeiro, isto, é que Deus existe. Afinal, podemos questionar tanto a causa da reprodução biológica — que Fílon não avança — como podemos questionar a causa de Deus — que Cleantes também não avança. A diferença, e Hume não a poderia prever, é que a causa da reprodução biológica viria a ser satisfatoriamente explicada pelo darwinismo; o mesmo não se pode dizer, no entanto, da hipótese teísta, uma vez que, até à actualidade, o mais que os teístas conseguiram avançar sobre a causa de Deus é que ele é causa de si mesmo, auto-explicativo. Ora, esta é uma explicação circular, ou seja, nada explica nem acrescenta ao nosso conhecimento. Mesmo que admitíssemos a existência de Deus e do seu desígnio como explicação para a causa do universo (explicação que a ciência dá como bastante mais simples, pela mera casualidade dos acontecimentos naturais), teríamos uma nova questão, certamente ainda mais difícil de explicar: sendo Deus um ser inteligente e omnipotente capaz de conceber o mundo segundo um determinado plano ou desígnio, então a sua causa e existência carecem de uma explicação porventura mais urgente do que a causa do universo. Qual é a causa de Deus e porque é que existe? É certo que os teístas não têm uma resposta para estas novas questões que eles mesmos levantam. Porquê, então, admitir a hipótese que apresentam, se nada tem de plausível? Mas vejamos o que diz Fílon ainda sobre a sua escolha da "geração animal ou vegetal" como explicação preferível:
«Se baseio o meu sistema de cosmogonia no primeiro, de preferência ao segundo, é por escolha minha. A questão parece-me completamente arbitrária. E, quando Cleantes me pergunta qual é a causa da minha grandiosa faculdade de geração animal ou vegetal, tenho igualmente o direito de lhe perguntar qual é a causa do seu grande princípio racional. [...] A julgar pela nossa experiência, limitada e imperfeita, a geração tem alguns privilégios sobre a razão; pois todos os dias vemos esta última surgir da primeira, mas nunca a primeira da última.» (Op. Cit., p. 47)
Como víamos atrás, a escolha pode ter sido arbitrária para Hume (ou para Fílon, neste caso), mas hoje não podemos dizer o mesmo, uma vez que, enquanto a hipótese teísta já nem de probabilidades se pode sustentar com muita segurança, já a hipótese científica, da qual Hume apresenta, sem saber (mas parece intuitivamente apostar estar certo), um esboço embrionário, está perfeitamente sustentada e merece toda a credibilidade.
Outra das objecções possíveis ao argumento do desígnio, e que voltam a mostrar o quão frágil e remota é a analogia do relojoeiro, assenta no facto de que, enquanto nós temos experiência da construção de relógios, casas, entre outras obras e segundo os mais diversos fins, não temos qualquer experiência da construção de universos, muito menos de qualquer desígnio respeitante a estes. Não tendo esta experiência e a informação crucial que dela resultaria para apoiar a analogia do relojoeiro, este argumento é claramente inválido. Veja-se o que diz Fílon sobre isto:
«Quando duas espécies de objectos foram sempre observadas a combinarem-se juntas, eu posso inferir, pelo hábito, a existência de uma onde quer que veja a existência da outra; e a isto chamo um argumento a partir da experiência. Mas onde este argumento possa ter lugar onde os objectos, como no caso presente [da analogia do relojoeiro], são singulares, individuais, sem paralelo ou semelhança específica, pode ser difícil de explicar. E dir-me-á algum homem com uma tranquilidade séria que um universo ordenado tem que surgir de algum pensamento ou sabedoria como a humana porque nós temos experiência disso? Para estabelecer este raciocínio seria preciso que tivéssemos experiência da origem dos mundos; e não é suficiente, certamente, que tenhamos visto barcos e cidades surgirem da sabedoria e inventividade humanas.» (Op. Cit., p. 20-21)
Realmente, a nossa experiência limitada não nos permite inferir daquilo que, dentro das nossas possibilidades e capacidades, temos experiência, realidades — como a existência de Deus, o seu desígnio e a realização construtiva deste — das quais não temos e não podemos ter qualquer experiência nem informação. Uma tal inferência seria completamente errada, como já vimos.

Miguel Moutinho

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