O quarto exemplo de Kant: a máxima da indiferença
1. Para examinar o outro exemplo mais plausível da utilização do procedimento de quatro passos, volto-me para o quarto exemplo (Fundamentação II:38 [423]). A máxima a ser testada é aquela que expressa indiferença relativamente às necessidades e à felicidade dos outros que nos solicitam a nossa ajuda e assistência.
Nesse caso, as intenções pessoais e legisladoras são perfeitamente compatíveis: podemos efectivamente querer seguir a nossa máxima do passo 1 no mundo da intenção legisladora. Mas ao invés, temos que decidir, na medida em que somos membros do mundo social ajustado associado segundo a máxima do passo 1, se, como seus membros, podemos querer esse mundo. Esta é a contradição no teste de vontade (o qual Kant ilustra através o segundo par de exemplos), em contraste com a contradição no teste de concepção (o qual Kant ilustra com o primeiro par de exemplos). No passo 1, a máxima do agente é:
Nada devo fazer para ajudar os outros quando estes necessitarem, ou auxiliá-los na aflição, ao menos que no momento seja racional que o faça, em função dos meus próprios interesses.
O mundo social associado a esta máxima é um mundo social no qual ninguém alguma vez faz alguma coisa para ajudar os outros quando estes precisam, ou para os auxiliar na aflição. E isto é verdade para qualquer pessoa no passado, no presente e no futuro. Este é o estado de equilíbrio relevante; temos de supor que este estado é efectivo, por assim dizer, como qualquer outra ordem da natureza, perpetuamente, tanto no passado como no futuro. Além disso, Kant aceita como garantido que qualquer pessoa no estado do mundo ajustado conhece as leis da conduta humana decorrentes da generalização de máximas. Assim, mantêm-se as condições de publicidade e de perpetuidade.
2. Ora, existe uma dificuldade na comprensão da contradição no teste da vontade. Kant diz que não podemos querer o mundo social ajustado associado à máxima da indiferença porque presumivelmente podem surgir nesse mundo diversas situações em que precisamos do amor e da simpatia dos outros. Nessas situações, através de uma lei originada na nossa própria vontade, ter-nos-íamos privado a nós próprios daquilo de que necessitamos e requeremos. Sugere que seria irracional querermos um mundo social no qual todos, como que por uma lei da natureza, sejam indiferentes aos nossos apelos por ajuda e assistência, a não ser que, claro, fosse do seu interesse próprio fazê-lo.
A dificuldade em questão torna-se evidente logo que percebemos que o teste que Kant aplica à máxima da indiferença parece demasiado forte, na medida em que rejeita todas as máximas conducentes a qualquer forma do preceito de ajuda mútua. A razão disto é que um tal preceito nos ordena por vezes que ajudemos aqueles que estiverem em dificuldade. Mas podem surgir situações em não queiramos de facto ajudar os outros, a não ser que o preceito envolvido seja bastante trivial. As nossas circunstâncias podem ser tais que fazê-lo, dados os nossos planos actuais, seja extremamente inconveniente. Novamente, através de uma lei originada na nossa própria vontade, ter-nos-iamos impedido de fazer o que bem entendamos.
A dificuldade geral é: em qualquer mundo social ajustado, todos os preceitos morais se oporão às nossas intenções e planos ponderados e aos nossos desejos naturais pelo menos em algumas ocasiões; nesses casos serão contrários à nossa vontade. Com efeito, uma função das normas morais é precisamente este tipo de oposição adequada à situação. Assim, o teste do procedimento do IC, tal como Kant o apresenta, parece exigir uma revisão.
3. Esta dificuldade não é fácil de descartar, mas duas coisas podem preservar o pensamento fundamental de Kant.
Primeiramente, temos de dar mais substância à vontade dos agentes ideais quando decidem se podem desejar um mundo social ajustado. O que querem tais agentes? Que prioridades devem ter, se é que devem ter algumas?
Em segundo lugar, devemos especificar melhor o ponto de vista a partir do qual estas decisões acerca dos mundos sociais são tomadas: Que tipo de informação têm os agentes ideais e o que podem pressupor acerca da sua posição e do seu papel num mundo social ajustado?
Consideremos o conteúdo da vontade de um agente ideal: penso que uma saída (e não digo que seja a única) é desenvolver uma concepção apropriada do que podemos chamar "as verdadeiras necessidades humanas", uma expressão que Kant usa muitas vezes na Metafísíca dos Costumes (6:393, 432 ss., 453 ss.)2. Acredito que Kant diz que temos determinadas necessidades humanas verdadeiras, certas condições necessárias, cuja satisfação é necessária para que os seres humanos usufruam das suas vidas. O dever que temos para connosco é o de tentar assegurar estas necessidades, mas uma forma de avareza induz-nos a violar este dever (Metafísica dos Costume 6:432). Devemos então querer (desde que as circunstâncias o permitam) um mundo social no qual essa garantia prevaleça. Kant sugere aquilo que designa de "a máxima do interesse comum", que pode ser entendida do modo seguinte:
Devo ajudar os outros de uma forma que satisfaça as suas verdadeiras necessidades quando estiver numa posição que o permita, mas não de um modo que implique ficar eu mesmo necessitado.
Kant acredita então que temos este dever universal, na medida em que somos todos membros da espécie humana (Metafísica dos Costume 6:453): "seres racionais com necessidades, ligados por uma natureza e residência comum com o propósito de nos ajudarmos uns aos outros".
Considerado o que se afirmou em cima, é evidente que entre um mundo social ajustado associado com o preceito da indiferença e outro associado com o preceito de assistência mútua, como agentes ideais só podemos querer este último: só esse mundo garante a satisfação das nossas verdadeiras necessidades humanas, devendo ser esta a prioridade de todo ser racional e prudente. Como parte do procedimento do IC, devemos supor que temos tais necessidades e que elas são mais ou menos idênticas para todos.
Ao aplicar o procedimento do IC assim revisto, compreendemos que qualquer preceito geral restringirá as nossas acções motivadas pelos nossos desejos em algumas ou talvez bastantes circunstâncias. Devemos comparar mundos sociais alternativos e avaliar as consequências gerais de preferirmos um desses mundos em detrimento do outro. Para que possamos fazer isso, devemos ter em consideração o equilíbrio díficil dos seus efeitos prováveis ao longo do tempo relativamente às nossas necessidades. Para que essa ideia funcione, mesmo no tipo de caso aqui discutido, precisamos de uma certa noção dessas necessidades. Creio que Kant defende que temos "verdadeiras necessidades humanas" (ou necessidades básicas) não apenas de comer, beber e descansar, mas também de educação e cultura, bem como de várias condições essenciais para o desenvolvimento e exercício da nossa sensibilidade e consciência moral, e para os poderes da razão, do pensamento e capacidade de julgar. Não analisarei aqui esta possibilidade.
1. Para examinar o outro exemplo mais plausível da utilização do procedimento de quatro passos, volto-me para o quarto exemplo (Fundamentação II:38 [423]). A máxima a ser testada é aquela que expressa indiferença relativamente às necessidades e à felicidade dos outros que nos solicitam a nossa ajuda e assistência.
Nesse caso, as intenções pessoais e legisladoras são perfeitamente compatíveis: podemos efectivamente querer seguir a nossa máxima do passo 1 no mundo da intenção legisladora. Mas ao invés, temos que decidir, na medida em que somos membros do mundo social ajustado associado segundo a máxima do passo 1, se, como seus membros, podemos querer esse mundo. Esta é a contradição no teste de vontade (o qual Kant ilustra através o segundo par de exemplos), em contraste com a contradição no teste de concepção (o qual Kant ilustra com o primeiro par de exemplos). No passo 1, a máxima do agente é:
Nada devo fazer para ajudar os outros quando estes necessitarem, ou auxiliá-los na aflição, ao menos que no momento seja racional que o faça, em função dos meus próprios interesses.
O mundo social associado a esta máxima é um mundo social no qual ninguém alguma vez faz alguma coisa para ajudar os outros quando estes precisam, ou para os auxiliar na aflição. E isto é verdade para qualquer pessoa no passado, no presente e no futuro. Este é o estado de equilíbrio relevante; temos de supor que este estado é efectivo, por assim dizer, como qualquer outra ordem da natureza, perpetuamente, tanto no passado como no futuro. Além disso, Kant aceita como garantido que qualquer pessoa no estado do mundo ajustado conhece as leis da conduta humana decorrentes da generalização de máximas. Assim, mantêm-se as condições de publicidade e de perpetuidade.
2. Ora, existe uma dificuldade na comprensão da contradição no teste da vontade. Kant diz que não podemos querer o mundo social ajustado associado à máxima da indiferença porque presumivelmente podem surgir nesse mundo diversas situações em que precisamos do amor e da simpatia dos outros. Nessas situações, através de uma lei originada na nossa própria vontade, ter-nos-íamos privado a nós próprios daquilo de que necessitamos e requeremos. Sugere que seria irracional querermos um mundo social no qual todos, como que por uma lei da natureza, sejam indiferentes aos nossos apelos por ajuda e assistência, a não ser que, claro, fosse do seu interesse próprio fazê-lo.
A dificuldade em questão torna-se evidente logo que percebemos que o teste que Kant aplica à máxima da indiferença parece demasiado forte, na medida em que rejeita todas as máximas conducentes a qualquer forma do preceito de ajuda mútua. A razão disto é que um tal preceito nos ordena por vezes que ajudemos aqueles que estiverem em dificuldade. Mas podem surgir situações em não queiramos de facto ajudar os outros, a não ser que o preceito envolvido seja bastante trivial. As nossas circunstâncias podem ser tais que fazê-lo, dados os nossos planos actuais, seja extremamente inconveniente. Novamente, através de uma lei originada na nossa própria vontade, ter-nos-iamos impedido de fazer o que bem entendamos.
A dificuldade geral é: em qualquer mundo social ajustado, todos os preceitos morais se oporão às nossas intenções e planos ponderados e aos nossos desejos naturais pelo menos em algumas ocasiões; nesses casos serão contrários à nossa vontade. Com efeito, uma função das normas morais é precisamente este tipo de oposição adequada à situação. Assim, o teste do procedimento do IC, tal como Kant o apresenta, parece exigir uma revisão.
3. Esta dificuldade não é fácil de descartar, mas duas coisas podem preservar o pensamento fundamental de Kant.
Primeiramente, temos de dar mais substância à vontade dos agentes ideais quando decidem se podem desejar um mundo social ajustado. O que querem tais agentes? Que prioridades devem ter, se é que devem ter algumas?
Em segundo lugar, devemos especificar melhor o ponto de vista a partir do qual estas decisões acerca dos mundos sociais são tomadas: Que tipo de informação têm os agentes ideais e o que podem pressupor acerca da sua posição e do seu papel num mundo social ajustado?
Consideremos o conteúdo da vontade de um agente ideal: penso que uma saída (e não digo que seja a única) é desenvolver uma concepção apropriada do que podemos chamar "as verdadeiras necessidades humanas", uma expressão que Kant usa muitas vezes na Metafísíca dos Costumes (6:393, 432 ss., 453 ss.)2. Acredito que Kant diz que temos determinadas necessidades humanas verdadeiras, certas condições necessárias, cuja satisfação é necessária para que os seres humanos usufruam das suas vidas. O dever que temos para connosco é o de tentar assegurar estas necessidades, mas uma forma de avareza induz-nos a violar este dever (Metafísica dos Costume 6:432). Devemos então querer (desde que as circunstâncias o permitam) um mundo social no qual essa garantia prevaleça. Kant sugere aquilo que designa de "a máxima do interesse comum", que pode ser entendida do modo seguinte:
Devo ajudar os outros de uma forma que satisfaça as suas verdadeiras necessidades quando estiver numa posição que o permita, mas não de um modo que implique ficar eu mesmo necessitado.
Kant acredita então que temos este dever universal, na medida em que somos todos membros da espécie humana (Metafísica dos Costume 6:453): "seres racionais com necessidades, ligados por uma natureza e residência comum com o propósito de nos ajudarmos uns aos outros".
Considerado o que se afirmou em cima, é evidente que entre um mundo social ajustado associado com o preceito da indiferença e outro associado com o preceito de assistência mútua, como agentes ideais só podemos querer este último: só esse mundo garante a satisfação das nossas verdadeiras necessidades humanas, devendo ser esta a prioridade de todo ser racional e prudente. Como parte do procedimento do IC, devemos supor que temos tais necessidades e que elas são mais ou menos idênticas para todos.
Ao aplicar o procedimento do IC assim revisto, compreendemos que qualquer preceito geral restringirá as nossas acções motivadas pelos nossos desejos em algumas ou talvez bastantes circunstâncias. Devemos comparar mundos sociais alternativos e avaliar as consequências gerais de preferirmos um desses mundos em detrimento do outro. Para que possamos fazer isso, devemos ter em consideração o equilíbrio díficil dos seus efeitos prováveis ao longo do tempo relativamente às nossas necessidades. Para que essa ideia funcione, mesmo no tipo de caso aqui discutido, precisamos de uma certa noção dessas necessidades. Creio que Kant defende que temos "verdadeiras necessidades humanas" (ou necessidades básicas) não apenas de comer, beber e descansar, mas também de educação e cultura, bem como de várias condições essenciais para o desenvolvimento e exercício da nossa sensibilidade e consciência moral, e para os poderes da razão, do pensamento e capacidade de julgar. Não analisarei aqui esta possibilidade.
John Rawls
Retirado de Textos de Apoio ao Manual A Arte de Pensar, Didáctica Editora
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