John Rawls
Universidade de Harvard
O procedimento em quatro passos do imperativo categórico
1. É importante reconhecer que a lei moral, o imperativo categórico (IC) e o procedimento do imperativo categórico são três coisas diferentes.
A lei moral é uma ideia da razão. Especifica um princípio que se aplica a todos os seres razoáveis e racionais (ou, para abreviar, seres razoáveis) quer sejam ou não, como nós, seres finitos com necessidades. Serve para Deus, para anjos e para seres razoáveis em quaisquer outras partes do universo (se existirem), bem como para nós.
O imperativo categórico, sendo um imperativo, dirige-se apenas àqueles seres razoáveis que, por serem finitos com necessidades, experimentam a lei moral como uma restrição. Como seres assim definidos, experimentamos a lei moral dessa forma e, por isso, o imperativo categórico especifica como essa lei se deve aplicar a nós (Fundamentação ll:12-15 [412-414]).
Para que o imperativo categórico seja aplicável à nossa situação, deve adaptar-se às nossas circunstâncias na ordem da natureza. Essa adaptação é realizada pelo procedimento do IC, na medida em que leva em conta as condições normais da vida humana por intermédio da formulação da lei da natureza (Fundamentação ll:33 [421]).
2. Considerando estas observações como prefácio, estabelecerei agora o procedimento do IC em quatro passos1. No primeiro passo, temos a máxima do agente, que é, suponhamos, racional do ponto de vista do agente: isto é, a máxima é racional dada a situação do agente e as alternativas disponíveis, em conjunto com os desejos, habilidades e crenças do agente (consideradas racionais nas circunstâncias). Kaant considera máxima como um princípio subjectivo: um princípio segundo o qual o sujeito age (Fundamentação ll:30n. [421]). Quando a máxima do agente é racional do seu ponto de vista, como supomos aqui, ela pode ser considerada subjectivamente válida.
Deve pressupor-se também que a máxima é sincera, quer dizer, reflecte as verdadeiras razões que o agente tem para a acção pretendida, na medida em que este, que presumimos lúcido, as descreveria com franqueza. O procedimento do IC aplica-se, então, a máximas a que os agentes lúcidos e racionais chegaram em vista do que consideram ser as características relevantes das suas circunstâncias. Devemos acrescentar que o procedimento se aplica igualmente bem a máximas às quais os agentes racionais e sinceros poderiam chegar (mas não chegaram), dadas as circunstâncias normais da vida humana.
Para concluir: a máxima do agente no primeiro passo é tanto sincera como racional. É um imperativo hipotético particular (que se deve distinguir do imperativo hipotético); e uma vez que usa o pronome da primeira pessoa, digamos que expressa a intenção pessoal do agente de agir segundo a máxima. Tem a seguinte forma padrão:
1) Devo fazer X nas circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z. (Aqui, X é uma acção e Y é um fim, um estado de coisas.)
Observe-se que a máxima inclui a claúsula "a fim de" e refere-se, assim, a um fim. Para Kant, todas as acções têm fins (Metafísica dos Costumes, Intro. 6:384 ss.). A natureza da cláusula de frase é importante na distinção entre deveres de justiça e outros tipos de deveres, mas deixarei isso de lado aqui.
3. O segundo passo generaliza a máxima do primeiro passo; o resultado é o que podemos chamar um preceito universal (mas não segundo a terminologia de Kant) que se aplica a todos. Quando esse preceito passa no teste do procedimento do IC, é uma lei prática, um princípio objectivo válido para todo ser racional (Fundamentação II:30n. [421]). Assim, temos:
2) Todos devem fazer X nas circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z.
No terceiro passo, devemos transformar o preceito universal expresso de 2 numa lei da natureza para obter:
3) Todos fazem sempre X nas circunstâncias C a fim de realizar Y, como se por uma lei da natureza (como se uma tal lei tivesse sido implantada em nós por um instinto natural) (Fundamentação II:37 [422-423]).
O quarto passo é o mais complicado; levanta questões que não podemos discutir aqui em detalhe. A ideia intuitiva é a seguinte:
4) Devemos acrescentar a (como se fosse) lei da natureza do passo 3 às leis da natureza existentes (tal como são por nós compreendidas) e então examinar o melhor que pudermos qual seria a ordem da natureza uma vez dado tempo suficiente aos efeitos da lei recentemente acrescentada para se concretizarem.
Presume-se que uma nova ordem natural resulta do acréscimo da lei do passo 3 às outras leis da natureza, e que essa nova ordem natural estabeleceu um estado de equilíbrio cujos traços relevantes somos capazes de conceber. Passaremos a designar essa nova ordem natural um "mundo social ajustado". Pensemos também neste mundo social como um mundo associado à máxima do passo 1, e imputemos ao agente uma intenção legisladora, uma intenção de, por assim dizer, legislar um mundo como esse. Aqui, a ideia é que um agente ideal razoável, considerando se deve ou não agir segundo a máxima do passo 1, implicitamente aceita as exigências da razão prática pura representadas nos passos que conduzem até ao passo 4, inclusive.
4. O imperativo categórico de Kant pode agora ser exposto da forma seguinte: É-nos permitido agir segundo a máxima racional e sincera do passo 1 apenas se duas condições forem satisfeitas:
Primeiro, devemos ser capazes de, enquanto agentes sinceros, razoáveis e racionais, ter a intenção de agir segundo aquela máxima quando nos consideramos membros do mundo social ajustado que lhe está associada e, desse modo, agindo como se pertencessemos a esse mundo e estivessemos sujeitos às suas condições; e
Segundo, devemos ser capazes de querer esse mesmo mundo social ajustado e de aceitá-lo caso viéssemos a pertencer-lhe.
Por conseguinte, se não pudermos ao mesmo tempo querer esse mundo social ajustado e tencionar agir segundo aquela máxima na qualidade de membros desse mundo, não podemos agir agora segundo a máxima, ainda que seja, por suposição, plenamente racional consideradas as nossas circunstâncias presentes. O imperativo categórico, tal como é representado pelo procedimento do IC, aplica-se-nos independentemente de quais possam ser as consequências da nossa conformidade com ele para os nossos desejos e necessidades naturais. Isto reflecte a prioridade da razão prática pura sobre a razão prática empírica.
Por fim, deve-se ter em mente que este modelo do procedimento do IC obtém-se da formulação da lei da natureza, e consiste em (Fundamentação 11:33 [421]):
Age como se a máxima de tua acção devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal da natureza.
Interpretamos essa formulação como uma intenção legisladora imputada: é como se tivéssemos o poder da razão legisladora e o exercício desse poder fosse uma condição para podermos agir conforme à nossa máxima. Cumpre verificar se podemos ou não fazer, no mundo social ajustado, o que agora tencionamos; e se podemos querer esse mundo."
Universidade de Harvard
O procedimento em quatro passos do imperativo categórico
1. É importante reconhecer que a lei moral, o imperativo categórico (IC) e o procedimento do imperativo categórico são três coisas diferentes.
A lei moral é uma ideia da razão. Especifica um princípio que se aplica a todos os seres razoáveis e racionais (ou, para abreviar, seres razoáveis) quer sejam ou não, como nós, seres finitos com necessidades. Serve para Deus, para anjos e para seres razoáveis em quaisquer outras partes do universo (se existirem), bem como para nós.
O imperativo categórico, sendo um imperativo, dirige-se apenas àqueles seres razoáveis que, por serem finitos com necessidades, experimentam a lei moral como uma restrição. Como seres assim definidos, experimentamos a lei moral dessa forma e, por isso, o imperativo categórico especifica como essa lei se deve aplicar a nós (Fundamentação ll:12-15 [412-414]).
Para que o imperativo categórico seja aplicável à nossa situação, deve adaptar-se às nossas circunstâncias na ordem da natureza. Essa adaptação é realizada pelo procedimento do IC, na medida em que leva em conta as condições normais da vida humana por intermédio da formulação da lei da natureza (Fundamentação ll:33 [421]).
2. Considerando estas observações como prefácio, estabelecerei agora o procedimento do IC em quatro passos1. No primeiro passo, temos a máxima do agente, que é, suponhamos, racional do ponto de vista do agente: isto é, a máxima é racional dada a situação do agente e as alternativas disponíveis, em conjunto com os desejos, habilidades e crenças do agente (consideradas racionais nas circunstâncias). Kaant considera máxima como um princípio subjectivo: um princípio segundo o qual o sujeito age (Fundamentação ll:30n. [421]). Quando a máxima do agente é racional do seu ponto de vista, como supomos aqui, ela pode ser considerada subjectivamente válida.
Deve pressupor-se também que a máxima é sincera, quer dizer, reflecte as verdadeiras razões que o agente tem para a acção pretendida, na medida em que este, que presumimos lúcido, as descreveria com franqueza. O procedimento do IC aplica-se, então, a máximas a que os agentes lúcidos e racionais chegaram em vista do que consideram ser as características relevantes das suas circunstâncias. Devemos acrescentar que o procedimento se aplica igualmente bem a máximas às quais os agentes racionais e sinceros poderiam chegar (mas não chegaram), dadas as circunstâncias normais da vida humana.
Para concluir: a máxima do agente no primeiro passo é tanto sincera como racional. É um imperativo hipotético particular (que se deve distinguir do imperativo hipotético); e uma vez que usa o pronome da primeira pessoa, digamos que expressa a intenção pessoal do agente de agir segundo a máxima. Tem a seguinte forma padrão:
1) Devo fazer X nas circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z. (Aqui, X é uma acção e Y é um fim, um estado de coisas.)
Observe-se que a máxima inclui a claúsula "a fim de" e refere-se, assim, a um fim. Para Kant, todas as acções têm fins (Metafísica dos Costumes, Intro. 6:384 ss.). A natureza da cláusula de frase é importante na distinção entre deveres de justiça e outros tipos de deveres, mas deixarei isso de lado aqui.
3. O segundo passo generaliza a máxima do primeiro passo; o resultado é o que podemos chamar um preceito universal (mas não segundo a terminologia de Kant) que se aplica a todos. Quando esse preceito passa no teste do procedimento do IC, é uma lei prática, um princípio objectivo válido para todo ser racional (Fundamentação II:30n. [421]). Assim, temos:
2) Todos devem fazer X nas circunstâncias C a fim de realizar Y a menos que Z.
No terceiro passo, devemos transformar o preceito universal expresso de 2 numa lei da natureza para obter:
3) Todos fazem sempre X nas circunstâncias C a fim de realizar Y, como se por uma lei da natureza (como se uma tal lei tivesse sido implantada em nós por um instinto natural) (Fundamentação II:37 [422-423]).
O quarto passo é o mais complicado; levanta questões que não podemos discutir aqui em detalhe. A ideia intuitiva é a seguinte:
4) Devemos acrescentar a (como se fosse) lei da natureza do passo 3 às leis da natureza existentes (tal como são por nós compreendidas) e então examinar o melhor que pudermos qual seria a ordem da natureza uma vez dado tempo suficiente aos efeitos da lei recentemente acrescentada para se concretizarem.
Presume-se que uma nova ordem natural resulta do acréscimo da lei do passo 3 às outras leis da natureza, e que essa nova ordem natural estabeleceu um estado de equilíbrio cujos traços relevantes somos capazes de conceber. Passaremos a designar essa nova ordem natural um "mundo social ajustado". Pensemos também neste mundo social como um mundo associado à máxima do passo 1, e imputemos ao agente uma intenção legisladora, uma intenção de, por assim dizer, legislar um mundo como esse. Aqui, a ideia é que um agente ideal razoável, considerando se deve ou não agir segundo a máxima do passo 1, implicitamente aceita as exigências da razão prática pura representadas nos passos que conduzem até ao passo 4, inclusive.
4. O imperativo categórico de Kant pode agora ser exposto da forma seguinte: É-nos permitido agir segundo a máxima racional e sincera do passo 1 apenas se duas condições forem satisfeitas:
Primeiro, devemos ser capazes de, enquanto agentes sinceros, razoáveis e racionais, ter a intenção de agir segundo aquela máxima quando nos consideramos membros do mundo social ajustado que lhe está associada e, desse modo, agindo como se pertencessemos a esse mundo e estivessemos sujeitos às suas condições; e
Segundo, devemos ser capazes de querer esse mesmo mundo social ajustado e de aceitá-lo caso viéssemos a pertencer-lhe.
Por conseguinte, se não pudermos ao mesmo tempo querer esse mundo social ajustado e tencionar agir segundo aquela máxima na qualidade de membros desse mundo, não podemos agir agora segundo a máxima, ainda que seja, por suposição, plenamente racional consideradas as nossas circunstâncias presentes. O imperativo categórico, tal como é representado pelo procedimento do IC, aplica-se-nos independentemente de quais possam ser as consequências da nossa conformidade com ele para os nossos desejos e necessidades naturais. Isto reflecte a prioridade da razão prática pura sobre a razão prática empírica.
Por fim, deve-se ter em mente que este modelo do procedimento do IC obtém-se da formulação da lei da natureza, e consiste em (Fundamentação 11:33 [421]):
Age como se a máxima de tua acção devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal da natureza.
Interpretamos essa formulação como uma intenção legisladora imputada: é como se tivéssemos o poder da razão legisladora e o exercício desse poder fosse uma condição para podermos agir conforme à nossa máxima. Cumpre verificar se podemos ou não fazer, no mundo social ajustado, o que agora tencionamos; e se podemos querer esse mundo."
Retirado de Textos de Apoio ao Manual do 10ºAno A Arte de Pensar
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