segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A PRIMEIRA FORMULAÇÃO DO IMPERATIVO CATEGÓRICO DE KANT ii


O segundo exemplo de Kant: a promessa enganosa
1. O segundo e o quarto dos quatro exemplos de Kant são, pelo menos à primeira vista, mais plausíveis do que os outros dois. Assim, ilustrarei de forma breve como os quatro passos do procedimento do IC se aplicam nesses casos. Começarei pelo segundo, o da promessa enganosa (Fundamentação 11:36 [422]).
Passo 1: Devo fazer uma promessa enganosa nas circunstâncias C (quer dizer, quando estou em dificuldades e a precisar de dinheiro, ainda que saiba que não posso pagar a dívida e que nem tenho a intenção de o fazer) a fim de promover os meus interesses pessoais.
Passo 2: Todos devem fazer uma promessa enganosa nas circunstâncias C, etc., tal como em cima.
Passo 3: Todos fazem (ou tentam fazer) uma promessa enganosa em circunstâncias C, etc. (como se por uma lei da natureza).
Passo 4: Acrescente a lei da natureza do passo 3 a outras leis da natureza (tal como as conhecemos) e conceba o estado de equilíbrio daí resultante. Este mundo social ajustado é um mundo no qual ninguém pode fazer uma promessa enganosa nas circunstâncias C, ainda que o queiram fazer.
Ora, a lei da natureza de 3 é psicológica: tentamos fazer uma promessa enganosa, como se por uma lei da natureza. No entanto, uma vez que outras leis em certas circunstâncias podem inibir a operação dessa lei, não dizemos sem rodeios que todos de facto fazem uma promessa enganosa. A prontidão de todos para o tentar fazer nessas circunstâncias pode ser considerado uma lei psicológica, mesmo que outras leis possam implicar na prática que seja de facto impossível fazer promessas enganosas.
A contradição no teste de concepção rejeita a máxima da promessa enganosa porque um agente racional não pode querer agir segundo essa máxima no mundo social da intenção legisladora. Isto segue-se do facto de que se os agentes racionais tencionam fazer alguma coisa, devem racionalmente acreditar que o podem fazer e que, consideradas as suas circunstâncias, têm o poder de o fazer. Uma intenção é um plano de um certo tipo: não é racional planear fazer o que sabemos que não podemos fazer.
2. O objectivo de apresentar as duas intenções que podem vir a revelar-se incompatíveis é encontrar um lugar para a afirmação de Kant de que a máxima do agente é contraditória, por ser inconsistente. Mas por que pensa Kant que no mundo social ajustado ninguém pode fazer uma falsa promessa? As suas observações são breves: diz que a universalidade da lei de 3 "faria da promessa e do próprio propósito de prometer em si mesmos impossíveis; visto que ninguém acreditaria no que lhes era prometido, mas ririam de declarações desse tipo, já que seriam meros fingimentos" (Fundamentação 11:36 [422]).
Ora, Kant pressupõe claramente como lei da natureza o facto de que as pessoas aprendem através da experiência e lembram-se do passado; assim, logo que se tornasse uma lei da natureza todos tentarem fazer promessas enganosas (em certas circunstâncias), a existência da lei passaria a ser do conhecimento público. Todos a conhecem e sabem que os outros a conhecem, e assim por diante. Não precisamos presumir que todas as leis da natureza são do conhecimento público; é óbvio que não o são. Mas como forma de interpretar as exigências do procedimento do IC em função da formulação da lei da natureza, não é inapropriado pressupor o reconhecimento público das leis da natureza postuladas, geradas por pessoas que agem segundo certas máximas.
Tornamos isto explícito ao dizer que no estado de equilíbrio do mundo social ajustado, as leis da natureza postuladas do passo 3 são publicamente reconhecidas como leis da natureza e devemos aplicar o procedimento do IC de maneira consequente. Refiramo-nos a este reconhecimento público das leis da natureza postuladas retiradas das máximas do passo 1 como a condição de publicidade dos preceitos morais universais. Kant via os preceitos aceitáveis deste tipo como pertencentes à legislação pública moral, que é o mesmo que dizer, de uma comunidade moral.
3. Outra condição é a seguinte: devemos pensar no mundo social ajustado como se tivesse há muito alcançado o seu estado de equilíbrio conjecturado. É como se sempre tivesse existido, existisse agora e existisse para sempre. Isto designa-se de condição de perpetuidade.
Não é como se o agente que opera através do procedimento do IC dissesse: "Quero que a minha máxima seja de agora em diante uma lei da natureza". Isso permitira algum tempo até que o estado de equilíbrio fosse alcançado e nesse intervalo o agente poderia ganhar uma fortuna considerável através da fraude. Mas Kant pede-nos claramente consideremos esse estado como existente agora: as pessoas riem-se com facilidade das tentativas de se fazer promessas enganosas. Não há lapso de tempo. Esta leitura é exigida igualmente pelo importante parágrafo 1:19 (403), mas não será aqui analisado.
John Rawls, retirado de textos de apoio ao Manual A Arte de Pensar, 10º Ano - Didáctica Editora

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