sexta-feira, 13 de novembro de 2009

DETERMINISMO


A defesa que Clarence Darrow fez de Leopold e Loeb ocorreu no primeiro grande julgamento criminal em que se usou a ideia moderna de que a nossa personalidade resulta da "hereditariedade-mais-ambiente" para alegar que os réus não eram responsáveis pelas suas acções. Contudo, Darrow não foi o primeiro a duvidar de que o destino está nas nossas mãos.
Aristóteles preocupou-se com a possibilidade de as leis da lógica implicarem que não temos controlo sobre o que fazemos. Toda a proposição, raciocinou, tem de ser verdadeira ou falsa. Por isso, neste momento ou é verdade que amanhã vamos vestir uma camisa azul, ou é falso que amanhã vamos vestir uma camisa azul. Se isso é verdade, então nada podemos fazer para o evitar — afinal, isso irá acontecer. Se isso é falso, então nada podemos fazer para que aconteça, pois isso não vai acontecer. Seja como for, o futuro está estabelecido e não temos poder para o mudar. Isto tornou-se conhecido por problema do Fatalismo. De Santo Agostinho em diante, os teólogos compreenderam que o pressuposto da omnisciência de Deus cria uma dificuldade similar. Se Deus sabe tudo, sabe o que vamos fazer amanhã. Mas, se Deus já sabe o que vamos fazer amanhã, então não podemos agir de outra forma.
Embora o problema do Fatalismo seja sério, não constitui o desafio mais preocupante à liberdade humana. A ameaça maior provém do Determinismo, que já era conhecido no mundo antigo, mas só se tornou preeminente com a ascensão da ciência moderna. Dizer que um sistema é determinista é afirmar que tudo o que nele acontece resulta de causas anteriores, e que logo que as causas ocorrem os efeitos têm de se seguir inevitavelmente, dadas as circunstâncias circundantes e as Leis da Natureza. Provavelmente, vemos o edifício em que vivemos como um sistema determinista. Se as luzes se apagam, pensamos que isso tem de ter uma causa. Supomos que, logo que a causa ocorreu, o efeito tinha de se seguir. Se o electricista nos dissesse "isso pura e simplesmente aconteceu", sem qualquer razão, essa afirmação violaria a nossa concepção do funcionamento das coisas.
Com a ascensão da ciência moderna, tornou-se comum conceber o universo inteiro como um grande sistema determinista. A natureza consiste em partículas que obedecem às leis da física, e tudo o que acontece é governado pelas leis causais invariáveis.
A expressão mais vívida desta ideia foi-nos dada pelo matemático francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827). Em 1819, Laplace afirmou que, se um observador supremamente inteligente conhecesse a localização e a velocidade exactas de todas as partículas do universo, bem como todas as leis da física, conseguiria prever sem margem para dúvidas todos os estados futuros do universo. Nada o surpreenderia; ele saberia tudo antes de as coisas acontecerem. Obviamente, nós não conseguimos fazer tais previsões, mas isso deve-se apenas ao facto de não termos a informação e a inteligência necessárias.
O universo inclui-nos. Fazemos parte da natureza e aquilo que acontece dentro da nossa pele está sujeito às mesmas leis físicas que tudo o resto. Os movimentos dos nossos braços, pernas e língua são desencadeados por acontecimentos que ocorrem no nosso cérebro, que por sua vez são causados por outros acontecimentos físicos. Deste modo, o observador perfeito de Laplace conseguiria prever as nossas acções da mesma forma que prevê tudo o resto. Na verdade, recuando o suficiente na cadeia causal, ele conseguiria prever, mesmo antes de termos nascido, se amanhã vamos ou não usar uma camisa azul. Pode parecer-nos que fazemos as escolhas livre e espontaneamente, mas Laplace defendeu que a nossa "liberdade" é apenas uma ilusão criada pela nossa ignorância. Como não nos apercebemos das causas subjacentes ao nosso comportamento, presumimos que este não as tem.
O que serão exactamente "as causas subjacentes ao nosso comportamento"? Como Clarence Darrow observou, as causas "últimas" podem ser remotas. Porém, as causas imediatas são acontecimentos que ocorrem no nosso cérebro. Os acontecimentos neurológicos causam tanto os nossos estados mentais como os movimentos do nosso corpo.
A ideia de que os nossos estados conscientes são causados por acontecimentos neurológicos não é mera especulação. Realizam-se por vezes cirurgias cerebrais apenas com anestesia local, pelo que o paciente pode dizer ao cirurgião que experiências está a ter enquanto várias partes do seu cérebro são sondadas. Como vimos no Capítulo 6, esta técnica foi introduzida há mais de meio século pelo Dr. Wilder Penfield, que a descreveu vividamente no seu livro The Excitable Cortex in Conscious Man (1958). Desde então, os neurocirurgiões utilizam a técnica de Wilder. Sabem que, se sondarmos um lugar, o paciente sentirá um formigueiro na mão; se sondarmos outro lugar, o paciente sentirá o cheiro do alho; se sondarmos outro lugar ainda, ele pode ouvir uma canção dos Guns N' Roses.
Também é possível induzir acções com a estimulação eléctrica do cérebro. Jose Delgado, que desenvolveu a sua investigação na Universidade de Yale há quatro décadas atrás, descobriu que, estimulando várias regiões do cérebro, conseguia causar todos os tipos de movimentos corporais, incluindo franzir as sobrancelhas, abrir e fechar os olhos, mover a cabeça, os braços, as pernas e os dedos. Quando começou a experimentar este procedimento, usando gatos e macacos, reparou que os animais não se mostravam surpreendidos nem assustados quando o seu corpo se movia. Aparentemente, os animais sentiam os movimentos como se estes fossem voluntários. Num caso particular, a estimulação do cérebro de um macaco fê-lo levantar-se e andar. O efeito repetiu-se várias vezes, e em cada uma delas o animal começou a vaguear, sem surpresa nem desconforto, como se tivesse decidido passear um pouco.
Alguns filósofos diriam que o procedimento de Delgado não causa acções, mas apenas movimentos corporais. As acções implicam razões e decisão, e não apenas movimentos. Mas isto não é tudo. Quando Delgado fez a sua experiência com seres humanos, eles foram ainda mais complacentes do que os animais — além de terem realizado os movimentos sem surpresa nem medo, também deram razões para os terem realizado. Num paciente, a estimulação eléctrica do cérebro produziu "um virar de cabeça e um deslocamento lento do corpo para cada um dos lados numa sequência bem orientada e aparentemente normal, como se o paciente estivesse à procura de algo". Repetiu-se isto seis vezes ao longo de dois dias, o que confirmou que a estimulação produzia efectivamente o comportamento. Mas o paciente, que ignorava a estimulação eléctrica, considerava a actividade espontânea e justificava-a com razões. Quando lhe perguntavam "O que está a fazer?", ele respondia "Estou à procura dos meus chinelos", "Ouvi um barulho", "Estou impaciente" ou "Estava a olhar para debaixo da cama".
Será que as nossas decisões também são produzidas por disparos de neurónios? Há também alguns resultados experimentais sobre isto, que se devem ao cientista alemão H. H. Kornhuber. Suponha-se que ficamos quietos e que, durante o próximo minuto, vamos mover espontaneamente o dedo. Subjectivamente, podemos estar bastante certos de que a decisão de mover o dedo está inteiramente sob o nosso controlo. Mas suponha-se agora que nos ligam alguns eléctrodos ao couro cabeludo e nos pedem para repetir a acção. Um técnico que esteja a olhar para uma electroencenfalografia seria capaz de observar um padrão característico de actividade cerebral quando movemos o dedo. A actividade cerebral inicia-se um segundo e meio antes do movimento, e inicia-se antes de tomarmos a decisão. Olhando para o monitor, o técnico sabe assim que vamos mover o dedo antes de nós o sabermos. A uma escala reduzida, ele é como o observador perfeito de Laplace. Kornhuber realizou esta experiência pela primeira vez nos anos 70 do século passado.

James Rachels

Tradução de Pedro Galvão, retirado de Problemas da Filosofia, de James Rachels, (Lisboa: Gradiva - Colecção Filosofia Aberta, 2009, pp. 159-163)

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