domingo, 19 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio iv

Parte IV
Duas teorias deterministas moderadas
Irei começar por expor a teoria compatibilista da liberdade apresentada por David Hume. A ideia é que uma acção é praticada livremente se o agente podia ter actuado de outra forma, caso o tivesse desejado. Suponha que aceita uma oferta de emprego para o verão. Hume afirma que você agiu livremente se tivesse podido declinar a oferta, caso pretendesse fazê-lo. Pela mesma ordem de ideias, quando alguém entrega a carteira a um ladrão ao ouvi-lo dizer "O dinheiro ou a vida!", essa pessoa está a agir de livre vontade se for verdadeiro que caso tivesse preferido morrer em vez de permanecer vivo, podia ter recusado entregar a carteira. Portanto, a teoria de Hume é que as acções livres são aquelas que estão sob o controlo causal das crenças e desejos do agente. Quando uma crença está sob o controlo do agente, parece ser verdade que se o agente tivesse tido um outro conjunto de desejos, também poderia ter seleccionado e praticado uma acção diferente. A teoria de Hume é compatibilista porque defende que uma acção é livre se se encontra causalmente relacionada de uma maneira particular com as crenças e desejos do agente.
O que seria, de acordo com a teoria de Hume, uma acção não livre? Suponha que quer sair de uma sala mas não é capaz visto que está pregado ao chão. Neste caso, não é livremente que permanece na sala. É obrigado a manter-se nela quer queira quer não. A sua acção não se encontra sob o controlo das suas crenças e desejos.
Eis outro exemplo de acção não livre. Suponha que o submeti a uma operação ao cérebro. Desliguei as suas crenças e desejos dos nervos que enviam impulsos para o resto do seu corpo. Também lhe implantei um transmissor de rádio para que o seu corpo receba as minhas instruções. Agora são as minhas crenças e desejos que ditam o que você faz e diz. Nesta situação, o seu corpo tornar-se-ia um robô - seria um escravo da minha vontade. Faria o que eu quero porque é esse o meu desejo. Você poderia ser visto a beber água, a depositar dinheiro na minha conta bancária, e assim por diante. Mas não faria nenhuma destas coisas de livre vontade. A teoria de Hume explica por que razão neste caso as suas acção não seriam livres.
Primeira objecção à teoria de Hume: o comportamento compulsivo
Penso que a principal objecção à teoria de Hume pode ser encontrada em casos de comportamento compulsivo. Pense-se no cleptomaníaco que discutimos na lição anterior. Um cleptomaníaco é um ladrão cujo desejo de roubar é invencível. Um cleptomaníaco pode querer roubar mesmo sabendo que vai ser apanhado e castigado. Mesmo possuindo um pleno conhecimento de que roubar lhes trará sofrimento em vez de ajuda, continua a roubar.
Os cleptomaníacos são apanhados nas malhas de uma obsessão. São escravos de um desejo que não diminui ao compreenderem que agir em função dele lhes faz mais mal do que bem. Há ladrões que não são cleptomaníacos, é claro. Este tipo de ladrão pode tentar roubar algo, mas a decisão de o fazer seria afectada pela informação acerca das hipóteses de ser apanhado e castigado. Nada disto faz qualquer diferença para o cleptomaníaco. O cleptomaníaco está emparedado; o seu desejo não é sensível a considerações de interesse próprio.
Penso que o cleptomaníaco não rouba de livre vontade. Contudo, este caso satisfaz os requisitos de Hume para ser considerado um comportamento livre. Os cleptomaníacos querem, acima de tudo, roubar coisas. Ao roubar, estão a seguir os seus desejos. Se não tivessem querido roubar, não o teriam feito. As acções do cleptomaníaco estão, pois, sob o controle das suas crenças e desejos. O problema é que há algo nesses desejos e no modo como funcionam que impede o cleptomaníaco de ser livre. A teoria de Hume define liberdade em termos da relação que se verifica entre crenças e desejos, por um lado, e as acções por outro. Para Hume, as acções livres são controladas pelos desejos do agente. O comportamento compulsivo constitui uma objecção à teoria de Hume. É a natureza daquilo que o cleptomaníaco deseja que o impede ser livre. Isto sugere que a teoria compatibilista não deve ignorar as ligações anteriores na cadeia causal acima.
Segunda objecção à teoria de Hume: a sala fechada de Locke
Há um segundo problema, mais subtil, com a explicação de Hume. No seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), John Locke (1632-1704) descreveu um homem que decidiu de livre vontade permanecer numa sala com o objectivo de aí conversar com um amigo. Sem que o soubesse, a porta da sala foi fechada à chave. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção sem que tenhamos liberdade para agir de modo diferente. O homem mantém-se na sala por sua livre vontade, embora seja falso que podia ter agido de outra forma caso tivesse escolhido fazê-lo.
Se a maneira como Locke descreve este caso é correcta, a teoria de Hume está errada. Para que alguém pratique uma acção de livre vontade não é essencial que pudesse ter praticado qualquer outra acção caso o tivesse desejado. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção mesmo não tendo liberdade para agir de outra maneira. Um acto é livre devido à razão que leva a praticá-lo; a teoria de Hume não consegue explicar em que deverá consistir um processo que subjaza às acções livres.
Eis outro exemplo que ilustra o que Locke tem em vista. Imagine uma qualquer acção que tenha sido praticada livremente. Suponha que ontem à noite, por exemplo, o João assistiu de livre vontade a um concerto. Agora imagine que se tivesse decidido não ir ao concerto teria sido raptado e, contra a sua vontade, teria na mesma sido levado ao concerto. Enquanto deliberava, desconhecia o que se preparava. O que conta é que o João assistiu ao concerto de livre vontade, embora não pudesse ter feito outra coisa.Para se compreender onde Locke quer chegar convém comparar o homem fechado na sala (embora não o saiba) com o cleptomaníaco. O modo de pensar do cleptomaníaco indica que os seus processos de pensamento funcionam mal. Algo na sua mente impede-o de ser livre. Mas nada há de errado na mente do homem do exemplo de Locke, embora não seja livre de agir de certas maneiras.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

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