segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O DESAMPARO

Para vos dar um exemplo que permita compreender melhor o desamparo, vou citar-vos um caso dum dos meus alunos que veio procurar-me nas seguintes circunstâncias: o pai estava de mal com a mãe, e tinha além disso tendências para colaboracionista; o irmão mais velho fora morto na ofensiva alemã de 1940, e este jovem com sentimentos um pouco primitivos, mas generosos, desejava vingá-lo. A mãe vivia sozinha com ele, muito amargurada com a semitraição do marido e com a morte do filho mais velho, e só nele achava conforto. Este jovem tinha de escolher nesse momento, entre o partir para Inglaterra e alistar-se nas Forças Francesa Livres – quer dizer, abandonar a mãe – e o ficar junto dela ajudando-a a viver. Compreendia perfeitamente que esta mulher não vivia senão por ele e que o seu desaparecimento – e talvez a sua morte – a mergulharia no desespero. Tinha bem a consciência que no fundo, concretamente, cada acto que praticasse em favor da mãe era justificável na medida em que a ajudava a viver; ao passo que cada acto que praticasse com o objectivo de partir e combater, seria um acto ambíguo que poderia perder-se nas areias, não servir para nada: por exemplo, partindo para Inglaterra, poderia ficar indefinidamente num campo espanhol ao passar por Espanha; podia chegar a Inglaterra ou a Argel e ser metido numa secretaria a preencher papéis. Por conseguinte, encontrava-se em face de dois tipos de acção muito diferentes: uma concreta, imediata, mas que não dizia respeito senão a um indivíduo; outra que dizia respeito a um conjunto infinitamente mais vasto, uma colectividade nacional, mas que era por isso mesmo mais ambígua, e que podia ser interrompida a meio do caminho. Ao mesmo tempo, hesitava em dois tipos de moral. Por um lado, uma moral de simpatia, de dedicação individual; por outro lado, uma moral mais larga, mas de uma eficácia mais discutível. Havia que escolher entre as duas. Quem poderia ajudá-lo a escolher? A doutrina cristã? Não. A doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o vosso próximo, sacrificai-vos pelos outros. Escolhei o caminho mais duro, etc., etc… Mas qual o caminho mais duro? Quem devemos amar como nosso irmão: o combatente ou a mãe? Qual a maior utilidade: essa, duvidosa, de combater num conjunto, ou essoutra precisa, de ajudar um ser preciso a viver? Quem pode decidir a priori? Ninguém. Nenhuma moral estabelecida pode dizê-lo. A moral kantiana afirma: não trates nunca os outros como um meio mas como um fim. Muito bem; se eu fico junto da minha mãe, trato-a como fim e não como meio, mas assim mesmo corro o risco de tratar como meio os que combatem à minha volta; e reciprocamente, se eu juntar-me aos que combatem, tratá-los-ei como um fim, e paralelamente corro o risco de tratar a minha mãe como um meio.
SARTRE, Jean-Paul, O Existencialismo é um Humanismo, 2004. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 210-211

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