quinta-feira, 9 de outubro de 2008

COMPATIBILISMO iii

Parte III
4. Se o passado tivesse sido diferente
Mas os compatibilistas têm consciência de que muitas pessoas não ficaram satisfeitas com esta concepção de livre-arbítrio como mera escolha ou decisão não constrangida. Por isso dão uma segunda resposta:
"Se ainda não estás satisfeito com esta concepção de livre-arbítrio, então não há dúvida que estás a pensar no livre-arbítrio de uma forma que não a simples capacidade de escolher ou decidir como se quer sem constrangimento. Deves estar a pensar no livre-arbítrio como algo mais "profundo". Como um tipo de controlo último sobre o que desejas ou queres em primeiro lugar: um controlo incompatível com a determinação da tua vontade por qualquer tipo de acontecimentos no passado relativamente aos quais não tens controle. Ora, os compatibilistas podem obviamente apreender este sentido profundo do livre-arbítrio, independentemente do que façamos, porque é incompatível com o determinismo. Mas, como compatibilistas, acreditamos que o tal sentido profundo de livre-arbítrio — ou qualquer tipo de livre-arbítrio que requer indeterminismo — é incoerente. Ninguém pode ter um livre-arbítrio neste sentido mais profundo."
Por que acreditam os compatibilistas que qualquer tipo de livre-arbítrio mais profundo que requeira indeterminismo tem de ser incoerente? Bem, se o determinismo significa (como significa), o mesmo passado, o mesmo futuro, então a negação do determinismo — o indeterminismo — deve significar: o mesmo passado, diferentes futuros possíveis. Mas se é isso que o indeterminismo significa — o mesmo passado, diferentes futuros possíveis — o indeterminismo tem consequências estranhas relativamente às escolhas livres. Considere-se o caso da Molly a deliberar sobre se deve integrar uma firma de advogados de Dallas ou de Austin. Depois de muito pensar, digamos, Molly decide que a firma de Dallas é o melhor meio para concretizar os seus planos e escolhe-a. Ora, se a sua escolha foi indeterminada, significa que podia ter escolhido outra coisa (poderia ter escolhido a firma de Austin) dado o mesmo passado — uma vez que é isso o que o indeterminismo exige: o mesmo passado, diferente futuros possíveis. Mas note-se o que esta exigência significa no caso da Molly: exactamente a mesma deliberação prévia, os mesmos processos mentais, as mesmas crenças, os mesmos desejos e outros motivos (nem a mínima diferença!) que conduziram Molly a preferir e a escolher a firma de Dallas, poderiam tê-la conduzido igualmente e em alternativa a escolher a firma de Austin.
Este cenário não faz sentido, afirmam os compatibilistas. Seria absurdo e irracional a Molly escolher a firma de Austin dados exactamente os mesmos motivos e o processo de raciocínio prévio que a conduziram de facto a acreditar que a firma de Dallas era a melhor solução para a sua carreira. Afirmar que a Molly "poderia ter escolhido diferentemente" nestas circunstâncias deve querer dizer outra coisa qualquer, dizem os compatibilistas — outra coisa como: se a Molly tivesse tido crenças e desejos diferentes, ou se tivesse raciocinado de maneira diferente, ou se outros pensamentos tivessem entrado na sua mente antes de ter escolhido a firma de Dallas, então talvez tivesse decidido a favor da firma de Austin e a tivesse escolhido. Mas esta interpretação mais sensível de "poderia ter agido de outra forma", dizem os compatibilistas, significa apenas que a Molly teria agido de outra forma, se as coisas tivessem sido diferentes — se o passado tivesse de alguma forma sido diferente. E esta afirmação, insistem, não entra em conflito com o determinismo. Com efeito, esta interpretação de "poderia ter agido de outra forma" encaixa perfeitamente na análise condicional ou hipotética do compatibilismo clássico — "Molly poderia ter escolhido de outra forma" significa "Ela teria escolhido de outra forma, se o tivesse desejado (se os seus processos mentais tivessem sido de alguma forma diferentes)". E tal hipotética interpretação de "poderia ter agido de outra forma" é, como vimos, compatível com o determinismo.
O primeiro pensamento relativamente a este argumento é que deve haver uma certa forma de avaliar a conclusão de que a escolha da Molly é indeterminada, e devia ser capaz de escolher de outra forma "dadas as mesmas circunstâncias passadas". Mas o que se passa é que não é fácil evitar esta conclusão. O indeterminismo, que é a negação do determinismo, significa "diferentes futuros possíveis, dado o mesmo passado." Se a Molly é realmente livre de escolher diferentes opções, ela deve ser capaz de escolher qualquer uma das possibilidades (a firma de Dallas e a firma de Austin), dadas as mesmas circunstâncias passadas até ao momento em que escolhe.
Não nos podemos enganar aqui sugerindo que se o passado tivesse sido ligeiramente diferente, então a Molly poderia ter escolhido diferentemente (escolhido a firma de Austin). Os deterministas e os compatibilistas podem dizer isto: porque insistem que a Molly poderia ter racionalmente escolhido diferentemente apenas se o passado tivesse de alguma forma sido diferente (por mais pequena que fosse a diferença). Mas aqueles que acreditam que as escolhas livres não podem ser determinadas têm de dizer que a Molly poderia ter escolhido diferentemente futuros possíveis, dado o mesmo passado no momento exacto em que escolheu. E isto faz parecer arbitrário e irracional escolher de outra forma nas mesmas circunstâncias.Em síntese: os compatibilistas têm uma dupla resposta à objecção de que a sua visão apreende a liberdade de acção, mas não o livre-arbítrio. Por outro lado, dizem, se "o livre-arbítrio" significa o que habitualmente entendemos por escolhas e decisões livres (do tipo que não são coagidas ou constrangidas), então o livre-arbítrio pode ser apreendido por uma análise compatibilista e pode então ser entendido como compatível com o determinismo. Por outro lado, se "o livre-arbítrio" tem um significado mais profundo — refere-se a um certo tipo de liberdade "mais profunda" da vontade que não é compatível com o determinismo — então a liberdade "mais profunda" da vontade é incoerente e é algo que, de qualquer forma, não podemos ter.

Robert Kane
Retirado de http://www.criticanarede.com/

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