quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral iii

Parte iii
Não somos responsáveis por acções não-causadas
Vejamos agora o segundo argumento importante a favor do libertarianismo ― que apenas o libertarianismo torna racional a ideia de responsabilidade moral. Supõe que o Silva decide roubar o Banco de Portugal e que ninguém o forçou a fazê-lo (pelo que a sua acção não envolve qualquer compulsão). Para serem consistentes, os libertarianos têm de dizer que só temos justificação para considerar o Silva moralmente responsável pela sua acção se ela não foi causada, nem mesmo pelos seus próprios motivos, desejos ou objectivos.
O problema é que os libertarianos têm ossos no armário. Só faz sentido considerar uma pessoa moralmente responsável por escolhas que resultem pelo menos em parte de necessidades ou desejos que tentou satisfazer fazendo essas escolhas! Esta inversão impressionante da pretensão libertariana é de crucial importância. Para ver a sua força, imagina que és livre em sentido libertariano. Isto é, imagina que as tuas escolhas não são causadas, nem mesmo pelos teus desejos, motivos ou objectivos. Supõe que vais a descer a rua principal quando de súbito puxas de uma pistola e matas alguém a sangue frio. Se te perguntassem por que fizeste essa coisa horrível, que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste fazê-la, porque se soubesses a razão, saberias o que te tinha motivado a fazê-la e, assim, saberias (em parte) a causa de o teres feito. (Algumas pessoas diriam que o teu desejo não foi a causa da acção mas antes um efeito do mesmo processo fisiológico que causou a acção.)
Para perceber a ideia, imagina que dizes que mataste porque querias mostrar que te poderias libertar das limitações vulgares das acções humanas, querias quebrar a regra contra o assassinato unicamente para mostrar que podes fazê-lo (tal como há uns anos algumas pessoas corriam nuas unicamente para provar que o podiam fazer). Por conseguinte, o teu desejo de provar isto seria (parte de) a causa da tua acção. Para que o assassinado seja uma acção verdadeiramente livre, nenhum desejo destes ou de qualquer outro tipo pode ter causado a tua escolha. Assim, se te perguntassem por que razão fizeste aquele acto, terias de responder que não tinhas qualquer razão e te limitaste a escolher fazê-lo.
Portanto, se o libertarianismo estivesse correcto, o que escolhes fazer não poderia ser causado pelo teu carácter ou resultar de algum dos teus desejos, motivos ou valores. Não poderia ser causado pela inveja, pelo teu desejo de provar algo, pelo desejo de vingança ou qualquer outra coisa. Não poderia, por conseguinte, ter qualquer ligação efectiva contigo ou com quem tu és. Assim, se as tuas escolhas fossem verdadeiramente não-causadas, seria um erro elogiar-te, censurar-te, recompensar-te ou punir-te pelo que escolhes fazer, o que é precisamente o inverso de aquilo que os libertarianos pretendem.
Podemos escolher livremente os nossos desejos e motivos?
Confrontados com objecções deste tipo, alguns libertarianos admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos, mas defendem que podemos escolher livremente os nossos desejos e motivos ou, pelo menos, decidir com base em quais agir.
Mas é isto correcto? Em primeiro lugar, como mostramos antes, todas as provas parecem indicar que os nossos desejos e motivos são tão causados como tudo o resto. E, em segundo lugar, se fôssemos realmente livres para escolher coisas como desejos, não haveria nenhuma razão para escolhermos um desejo em vez de outro. Não teríamos mais razões para desejar o amor do que o ódio, tartes de maçã do que veneno, a vingança do que crianças ou a vida do que a morte.
Para ver que as coisas são assim, imagina que és livre de escolher os teus próprios desejos, objectivos e motivos ― não com base nos que tens agora, mas a partir do zero. Digamos que escolhes um conjunto A de desejos em vez de um outro conjunto B. Supõe que o conjunto A contém o desejo de assassinar a tua avó e que o fazes. Se te perguntassem por que desejaste fazer uma coisa tão horrível, o que poderias responder? Unicamente que não tens qualquer ideia da razão por que escolheste esse desejo, porque se soubesses a razão, saberias o que te teria motivado a fazê-lo, e estamos a assumir que começaste do zero, isto é, que escolheste sem ter quaisquer desejos ou motivos anteriores. Portanto, se fosses completamente livre para escolher os teus próprios desejos e motivos, livre até dos desejos e motivos que tens efectivamente agora, os desejos que escolherias não teriam a mínima ligação contigo, como defendemos antes. (Não serviria de nada dizer que poderias escolher livremente os teus próprios desejos com base nos desejos que já tens, porque nesse caso os novos desejos alegadamente "escolhidos livremente" derivariam na realidade dos antigos e não da tua escolha livre.)
Podemos nós escolher resistir aos nossos desejos e motivos?
Confrontados com objecções deste tipo, alguns libertarianos admitem que aquilo que queremos é influenciado pelos nossos desejos e motivos e que não podemos escolher os nossos desejos e motivos independentemente dos que já temos. Mas eles argumentam que podemos escolher livremente resistir a agir com base nos nossos motivos e desejos imorais empregando a nossa força de vontade (ou empregando mais força de vontade) e, portanto, somos moralmente responsáveis pelas acções realizadas para satisfazer esses desejos. (Por exemplo, diz-se frequentemente que não nos podemos libertar dos desejos da carne, mas podemos dominar estes desejos se nos esforçarmos bastante.)
Mas a experiência diária assim como as teorias psicológicas indicam que a quantidade de força de vontade que podemos empregar para resistir à tentação de fazer uma acção imoral depende da força relativa do desejo de cometer a acção má comparada com o desejo de fazer aquilo que é moralmente correcto. Por exemplo, se Silva resistirá ou não à tentação de fazer amor com a mulher (que também está disposta) de um amigo depende da força do seu desejo de fazê-lo comparada com o seu desejo de ser leal ao amigo ou de evitar o que acredita ser errado. É-nos tão impossível escolher livremente a intensidade dos nossos desejos quanto escolher livremente os próprios desejos.
Pensa por um momento no que seria escolher a intensidade dos nossos desejos. Supõe que o desejo de Silva por sexo é o dobro da intensidade do seu desejo de ser leal ao seu amigo e que ele escolhe duplicar a intensidade do desejo de ser leal. Se lhe perguntassem por que razão escolheu aumentar a intensidade do seu desejo de ser leal, o que poderia dizer? Tão somente que não tinha qualquer ideia da razão pela qual o escolheu. Em particular, ele não poderia apelar a nenhum motivo ou desejo de o fazer, porque estamos a assumir que escolheu livremente aumentar o seu desejo, o que significa que escolheu fazê-lo sem um motivo ou desejo como causa para o fazer.
Ou então supõe que ele escolhe duplicar a sua vontade de poder, isto é, escolhe resistir à tentação de pecar com duas vezes mais força. Uma vez mais, se lhe perguntassem por que razão escolheu fazê-lo, que poderia ele responder? Ele não poderia apelar a nenhum motivo ou desejo de tentar com mais força porque estamos a assumir que ele escolhe livremente tentar com mais força.
Estamos presos à conclusão de que as nossas escolhas e acções têm de derivar dos nossos desejos e motivos ou, mais exactamente, do nosso carácter. É óbvio que podemos escolher livrarmo-nos, ou intensificar, um desejo particular, mas apenas baseados em outros desejos e motivos que tenhamos. De outro modo, fazê-lo não teria nenhuma ligação com quem somos ― teria caído do céu ― e certamente que não teríamos nenhuma responsabilidade por o ter feito.Parece, então, que o libertarianismo não é satisfatório.

Howard Kahane
Retirado de http://www.filedu.com/

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