sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Roteiro de posições acerca do livre-arbítrio iii

Parte III
Libertismo
Considerarei em primeiro lugar o libertismo; o filósofo C. A. Campbell (1897-1974) é o libertista no qual irei centrar a minha atenção. Antes de descrever de que modo Campbell defende o libertismo, permitam-me que faça notar que falar em "libertismo" a propósito de livre-arbítrio é uma doutrina completamente diferente da concepção a que é dado um nome semelhante em filosofia política. Os liberais em filosofia política argumentam que o estado não deve interferir no mercado ou noutras esferas da vida. Esta é uma concepção normativa - uma tese acerca do modo como as coisas devem ser. O libertismo enquanto concepção acerca do livre-arbítrio é uma tese descritiva, e não normativa. Defende que somos agentes livres e que o determinismo é falso. O libertismo não afirma que esta é uma coisa boa ou má.
Habitualmente, os libertistas pensam que se pode saber por introspecção que pelo menos algumas das nossas acções não são determinadas pelos nossos desejos, crenças e outras características psicológicas. Por exemplo, no livro Selfhood and Godhood (Allen and Unwin, 1957), Campbell sublinha que por vezes praticamos acções que nada têm a ver com a nossa personalidade. Quando isto acontece, diz, é falso que as nossas acções sejam determinadas pelo nosso carácter.
Tenho duas objecções a apresentar a esta linha de pensamento. Em primeiro lugar, não há razões para confiar plenamente na introspecção. As ideias que formamos ao olhar para "dentro de nós próprios" podem ser incompletas e imprecisas. Podem ser incompletas porque podem existir factos a nossos respeito dos quais não temos consciência - factos que a introspecção não detecta. Além disso, a introspecção pode ser imprecisa porque há mecanismos psicológicos que distorcem sistematicamente o modo como nos apresentamos a nós próprios. Freud captou bem estas ideias. A propósito da última categoria, argumentou que algumas das nossas crenças e desejos provocar-nos-iam um grande sofrimento caso tivéssemos consciência de que os temos. Enquanto "mecanismo de defesa", a introspecção devolve-nos uma imagem falseada sobre o que realmente pensamos e queremos. Embora esta concepção seja tipicamente freudiana, importa notar que muitas outras abordagens em psicologia a aceitam. Existe um amplo consenso quanto à ideia de que a introspecção não deve ser tomada ingenuamente.
A concepção de Campbell está sujeita a uma dificuldade adicional. Campbell afirma que quando agimos em desacordo com a nossa personalidade não somos determinados pela nossa mente. Discordo. Considere-se uma pessoa normalmente cobarde que é capaz de agir corajosamente numa dada ocasião. Será plausível que o acto corajoso não tenha explicação na mente da pessoa? Isto é muito dúbio. Suspeito que há aspectos da mente da pessoa que tiveram um papel a desempenhar. Talvez uma combinação de circunstâncias raras a tenha levado a exibir coragem de uma forma que até aí fora impossível. Logo, não vejo que a existência de acções contrárias à nossa personalidade possa pôr em causa o determinismo.
Campbell pressupõe que a expressão "agir contrariamente à personalidade" significa que a acção não é causada pela personalidade do agente. Mas isto é não compreender o que a expressão significa. Quando uma pessoa que habitualmente se comporta de maneira cobarde age corajosamente, podemos dizer "Evidentemente, isso fazia parte dela". Isto parece indicar claramente que "agir contrariamente à personalidade" não é a mesma coisa que agir sem uma causa.
Campbell aceita o incompatibilismo, pensa que a introspecção mostra que por vezes produzimos actos livres e, portanto, concluiu que o determinismo tem de ser falso. Sugeri que o argumento da introspecção contra o determinismo é muito fraco. Se pensamos que o determinismo e a liberdade são incompatíveis, não vejo como a impressão introspectiva de sermos livres pode ser decisiva. O psicólogo comportamentalista B. F. Skinner, escreveu um livro chamado Beyond Freedom and Dignity (Knopf, 1971). Skinner é um incompatibilista; de facto, é um determinista radical. A sua concepção é que a imagem introspectiva que temos de nós próprios como agentes livres é ilusória. Eis uma ideia reconfortante - um conto de fadas que contamos a nós mesmos. Discordo do determinismo radical de Skinner. A questão, no entanto, é que Skinner tem toda a razão ao não se deixar levar pelas aparências a respeito da introspecção.
Se eu pensasse que o incompatibilismo é verdadeiro, tentaria descobrir se as acções humanas são determinadas. Fá-lo-ia verificando o que a ciência tem a dizer sobre o determinismo, e a psicologia sobre as causas do comportamento. Campbell aceita o incompatibilismo mas argumenta na direcção oposta. Decide, apoiado na introspecção, que algumas das nossas acções são livres e conclui que não podem ser causalmente determinadas. Esta, parece-me, é a ordem errada pela qual estas questões devem ser abordadas. Note-se que a posição de Campbell, tal como a apresentei, não argumenta a favor do incompatibilismo. Campbell pressupõe que o incompatibilismo é verdadeiro. E utiliza este pressuposto como uma premissa para defender que as nossas acções não são causalmente determinadas.

Elliott Sober
Retirado de http://www.criticanarede.com/

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