domingo, 7 de março de 2010

A TEORIA POLÍTICA DE JOHN LOCKE


Anthony Kenny
Universidade de Oxford
Locke nasceu em 1632. Depois de se ter formado na Westminster School, fez o mestrado no Christ Church, Oxford, em 1658. Formou-se em medicina, tendo-se tornado o médico de Lord Shaftesbury, membro do círculo íntimo do rei Carlos II. Carlos regressara do exílio em 1660, numa onda de reacção popular contra a tirania e a austeridade do regime cromwelliano. No entanto, à medida que o seu reinado progredia, a realeza tornava-se cada vez menos popular, especialmente porque o herdeiro do trono, Jaime, o irmão do rei, era um católico firme. Shaftesbury chefiou o partido liberal, que procurava excluir Jaime da sucessão; teve de fugir do país, depois de, em 1683, ter estado implicado numa conspiração contra os irmãos reais. Locke acompanhou-o à Holanda e passou os anos de exílio a compor a sua mais importante obra filosófica, o Ensaio sobre o Entendimento Humano, publicado em diversas edições nos últimos anos da sua vida.
Em 1688, a "Gloriosa Revolução" afastou Jaime II e substituiu-o por Guilherme de Orange, fazendo assentar a monarquia numa nova base legal, com uma Carta de Direitos e um reforço dos poderes do Parlamento. Locke seguiu Guilherme para Inglaterra, tornando-se o teorizador do novo regime. Em 1609, publicou Dois Tratados sobre o Governo Civil, que se tornaram dois clássicos do pensamento liberal. Na década de 90, trabalhou na Câmara de Comércio, tendo morrido em 1704.
No primeiro dos seus Tratados, Locke descarta rapidamente a tese de Filmer a favor do direito divino dos reis. O erro fundamental de Filmer é negar que os seres humanos sejam naturalmente livres e iguais entre si. No segundo Tratado, apresenta o seu próprio ponto de vista acerca do estado de natureza, que contrasta de forma interessante com o de Hobbes.
Antes de haver estados capazes de promulgar leis, defende Locke, os homens têm consciência da existência de uma lei natural, que os ensina que todos os homens são iguais e independentes e que ninguém deve prejudicar outra pessoa na sua vida, saúde, liberdade ou propriedade. Estes homens, que não têm na Terra ninguém que lhes seja superior, encontram-se num estado de liberdade, mas não num estado de indisciplina. Além de estarem obrigados pela lei natural, os seres humanos possuem direitos naturais, em particular o direito à vida, à autodefesa e à liberdade. Também têm deveres, em particular o de não prescindirem dos seus direitos.
Um direito natural significativo é o direito de propriedade. Deus não confere propriedades particulares a indivíduos particulares, mas a existência de um sistema de propriedade privada faz parte dos planos de Deus para o mundo. No estado de natureza, as pessoas adquirem propriedade "misturando o seu labor" com os bens naturais, recolhendo água, apanhando frutos ou lavrando a terra. Locke considerava haver um direito natural, não apenas de adquirir, mas também de herdar propriedade privada.
Locke é, obviamente, muito menos pessimista do que Hobbes no que diz respeito ao estado de natureza. O seu ponto de vista assemelha-se bastante mais ao optimismo do posterior Ensaio sobre o Homem, de Pope.
Nem julgueis que no Estado de Natureza caminhavam cegamente;O estado de Natureza era o reino de Deus:O amor-próprio e a sociedade começaram com o seu nascimento,Sendo a união o laço entre todas as coisas e entre os Homens.Orgulho não havia; nem Letras, que aumentam o Orgulho;O Homem caminhava ao lado da besta, a sombra partilhando;A mesma era a sua mesa e a mesma a sua cama;Nenhum crime o cobria nem alimentava.No mesmo templo, de retumbante madeira,Os seres providos de voz cantavam hinos ao Deus de todos.
No estado de natureza, contudo, o homem apenas tem um domínio precário sobre qualquer propriedade mais substancial do que a sombra que partilha com os outros animais. Qualquer pessoa pode aprender os ensinamentos da Natureza; e quem transgride a lei da Natureza merece ser punido. Mas, no estado de natureza, cada um tem de ser o juiz do seu próprio caso, e poderá não existir alguém com poder suficiente para punir os prevaricadores. É isto que conduz à instituição do estado. "O grande e principal objectivo dos homens que se unem em comunidades e se submetem aos governos é a preservação da sua propriedade; e ao estado de natureza poderão faltar muitas coisas para se cumprir este desígnio."
O estado é criado recorrendo a um contrato social, em que os homens entregam a um governo os seus direitos, para se assegurarem de que a lei natural é levada à prática. Entregam a um poder legislativo o direito de fazer leis tendo em vista o bem comum e a um poder executivo o direito de executar estas leis. (Locke tem consciência da existência de boas razões para separar estes dois ramos do poder.) A decisão acerca da forma particular de poder legislativo e executivo deve ser tomada pela maioria dos cidadãos (ou, pelo menos, pela maioria dos detentores de propriedade).
O contrato social de Locke difere do de Hobbes em vários aspectos. Ao contrário do soberano de Hobbes, os governantes de Locke também participam no contrato inicial. A comunidade confia ao tipo de governo escolhido a protecção dos seus direitos; e, se o governo atraiçoar a confiança nele depositada, o povo pode afastá-lo ou alterá-lo. Se um governo agir arbitrariamente, ou se um ramo da governação usurpar o papel de outro, o governo será dissolvido, e a rebelião será justificada. É óbvio que Locke tem aqui em mente o regime autocrático dos reis Stuart e a Gloriosa Revolução de 1688.
Locke estava, implausivelmente, convencido de que os contratos sociais do tipo por ele descrito tinham sido acontecimentos históricos. Mas afirmava que a manutenção de qualquer governo, independentemente de como fosse constituído, dependia do consentimento permanente dos cidadãos de cada geração. Este consentimento, admite o filósofo, raramente é explícito; mas o consentimento tácito é dado por todos aqueles que usufruem dos benefícios da sociedade, quer aceitando uma herança, quer meramente viajando numa estrada. A cobrança de impostos, em particular, deve assentar no consentimento: "O poder supremo não pode retirar a nenhum homem nenhuma parte da sua propriedade sem o seu consentimento."
As ideias políticas de Locke não eram originais, mas a sua influência foi grande, e manteve-se muito depois de as pessoas terem deixado de acreditar nas teorias do estado de natureza e da lei natural que as sustentavam. Quem conhecer a Declaração de Independência e a Constituição Americana encontrará nelas um grande número de ideias, e até de expressões, de Locke.
Anthony Kenny
História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny. Trad. Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral (Temas e Debates, 1999).
Retirado de textos de Apoio ao Manual a Arte de Pensar -10º Ano - Didática Editora

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