sábado, 31 de outubro de 2009

O LEGADO DE SÓCRATES v


O Argumento do contrato social


O terceiro argumento de Sócrates é o mais importante. Enquanto reflecte sobre a sua obrigação de obedecer à lei, a ideia de contrato social, posteriormente colocada em destaque por figuras com Hobbes e Rousseau, surge pela primeira vez.
A ideia central do contrato social é a de que a sociedade assenta num acordo implícito que os seus membros estabelecem entre si. A sua vida em sociedade é um empreendimento cooperativo no qual cada um de nós obtém enormes benefícios, e em troca concordamos apoiar as instituições e as práticas que tornam possíveis esses benefícios.
Quais são ao certo os benefícios da vida em sociedade? Se trabalharmos juntos para manter uma ordem social estável, podemos ter indústria, educação, artes, comércio, agricultura, medicina e muito mais. Podemos viver em paz, ter amigos, ir a jogos de futebol e a concertos. Os benefícios são infindáveis. Mas essas coisas boas só poderão existir se as pessoas cooperarem na preservação do sistema que as produz. Se não o fizerem tudo se desintegrará e, como Hobbes disse, a vida será «solitária, pobre, sórdida, rude e curta».
Sócrates invoca o contrato social quando sustenta que, ao aceitar os benefícios da cidadania ateniense, prometeu obedecer às suas leis. Quando fala, Sócrates assume o ponto de vista das próprias leis:
«Qualquer ateniense, ao atingir a maturidade e ao ver por si próprio, a organização política do Estado, e assim as suas leis, tem o direito, caso não esteja satisfeito connosco, de pegar naquilo que possui e de partir para onde desejar. (...) Por outro lado, se qualquer um de vós escolher ficar quando pode ver como administramos a justiça e o resto da nossa organização pública, entendemos que, ao proceder assim, se dispôs efectivamente a fazer tudo o que lhe dissermos..»
«É então um facto», diriam (as Leis e a Constituição), « que estás a quebrar os acordos e compromissos que estabeleceste connosco, ainda que não os tenhas estabelecido sob compulsão ou falta de informação. E não foste forçado a decidir-te num prazo limitado: durante setenta anos, foste livre de deixar o país se não estavas satisfeito connosco ou sentias que a organização era injusta. (...) E agora, depois de tudo isto, não vais respeitar o teu acordo?»
Sócrates conclui, assim, que tem de respeitar o seu acordo, mesmo que isso implique a sua própria morte.
Será que este argumento é sólido? O contrato social é a explicação não religiosa da obrigação política mais influente que alguma vez se concebeu. Todavia, os críticos colocaram-lhe diversas objecções. A acusação principal é a de que o «o contrato» não passa de uma ficção. Poucos de nós começam a fazer parte da organização social através de um acordo. Os imigrantes, que juram respeitar a lei quando obtêm a cidadania, são excepção. Todos os outros pura e simplesmente nascem dentro do sistema. Dado que nunca pedimos para fazer parte dele, podemos muito bem interrogar-nos acerca da natureza do «acordo» que Sócrates tanto enfatiza.
O que se pode dizer em resposta? Para se defender a ideia de contrato social, precisamos da ideia de uma promessa ímplicita - uma promessa que não é proferida, mas que ainda assim decorre da nossa conduta. O argumento de Sócrates invoca este tipo de promessa ímplicita. Assumimos as obrigações de cidadania, diz-nos, não ao fazer um juramento, mas ao aceitar voluntariamente os seus benefícios e ao usar o sistema social para os nossos fins.
Porém, existe outro problema. Precisamos de perguntar, como fizemos em conexão com o argumento da destruição do Estado, qual é o alcance da obrigação que este argumento apoia. Será que o apelo ao contrato social apoia a conclusão de que temos que obedecer sempre à lei, ou apoia apenas a ideia de que geralmente devemos obedecer-lhe? Vale a pena salientar que os contratos nunca são inteiramente vinculativos - existem sempre circunstâncias sob as quais os contratantes ficariam livres das suas obrigações. Por exemplo, se eu fizer um acordo consigo, mas o leitor não cumprir a sua parte daquilo que foi acordado, eu fico livre da obrigação de cumprir a minha parte. Nenhuma pessoa razoável acredita que o dever de respeitar os nossos contratos se mantém em todas as circunstâncias.
A questão do destino de Sócrates fica novamente em aberto a partir do momento em que admitimos isto. Podemos aceitar que temos uma obrigação geral de obedecer às regras sociais e que essas obrigação se baseia no acordo mútuo de estabelecer as regras e de as observar. Mas suponha-se que uma pessoa inocente foi condenada à morte e que, enquanto aguardava a execução, tem a hipótese de fugir. Será que agirá erradamente se aproveitar a oportunidade? (Podemos pensar tanto em O Fugitivo como em Sócrates.) É difícil perceber como a fuga seria condenável em termos contratuais. Se o facto de o Estado estar a tentar matar-nos não nos liberta do nosso acordo, o que poderia fazê-lo? Afinal, admite-se que o Estado deve proteger-nos de ameaças injustas.
Deste modo, nenhum dos argumentos prova que Sócrates tinha de beber a cicuta. Mas isto deixa-nos com uma questão embaraçosa: como pôde Sócrates ter cometido um erro tão desastroso? Como é possível que não tenha visto que os argumentos eram inconclusivos? Parte da resposta pode residir no facto de estas questões serem novas e invulgares quando Sócrates as discutiu. A natureza da obrigação política pode ser um assunto antigo para nós, mas há 2400 anos Sócrates estava a explorá-lo pela primeira vez. Outra parte da resposta pode ser que os argumentos de Sócrates - especialmente o primeiro e o terceiro - não são assim tão maus. Revelam muito das razões pelas quais devemos obedecer à lei. O erro de Sócrates foi não ter distinguido a) a ideia de que geralmente devemos obedecer à lei b) da ideia de que temos de obedecer sempre à lei. Os seus argumentos apoiam a primeira ideia, mas Sócrates julgou erradamente que apoiavam a segunda.
Há uma razão para Sócrates não ter estabelecido esta distinção ou, pelo menos, para não a ter levado a sério. Tinha uma concepção da sua relação com Atenas e as suas leis que era profundamente diferente daquilo que podemos sentir ser a nossa relação com o «governo». À semelhança de outros gregos, Sócrates sentia-se profundamente ligado à sua cidade: não conseguia imaginar-se fora dela. A ideia de violar a sua relação com Atenas deve ter-lhe parecido impensável. No Críton ficamos a saber que ao longo dos seus setenta anos, excluindo algumas campanhas militares, Sócrates nunca saíu da cidade. Era ateniense de uma forma tão profunda como S. Paulo foi cristão.
Quanto à morte, Sócrates não a temia. Acreditava que, após a morte do seu corpo, a sua alma partiria para outro mundo em que as suas questões encontrariam por fim uma resposta. Muitas pessoas dizem que acreditam no paraíso, mas têm relutância em ir para lá. Sócrates não era uma dessas pessoas. Como Alcibíades diz no Banquete: «Ele é absolutamente único; não existe mais ninguém como ele, e não creio que tenha existido».


Problemas da Filosofia, James Rachels , Gradiva, Colecção Filosofia Aberta, pp. 20-25

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