segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Kant: o princípio da acção moral


A teoria ética de Kant oferece-nos um princípio da moral que deve poder ser aplicado a todas as questões morais. Kant enuncia-o de diferentes maneiras com o objectivo de esclarecer as suas implicações. Partiremos de um caso simples, de senso comum, para esclarecer essas diferentes formulações:
Silva reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50 €. Apanhou-a e … que fez?
Avaliemos três decisões possíveis de Silva
a) Ficou com os 50 €.
b) Devolveu os 50 € para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.
c) Devolveu os 50 € pelo simples facto de pertencerem ao cliente.
O princípio do desinteresse
A acção a) é claramente imoral. Silva ficou com os 50 € por causa do seu interesse. Quanto à acção b), o senso comum diria que é hipócrita ou interesseira, por Silva devolver os 50 € apenas por isso ser do seu interesse. De facto, o princípio da decisão em b) foi o mesmo que em a) ― o interesse. Pôr o seu interesse acima de tudo, como princípio das acções, é imoral. Assim, só a acção c) é moralmente correcta, já que Silva ultrapassou os seus interesses e agiu de forma desinteressada.
O nosso juízo sobre cada uma das possíveis decisões de Silva foi guiado pelo princípio do desinteresse:
"Age desinteressadamente."
A teoria de Kant não impede que a pessoa satisfaça os seus interesses ― afinal também era do interesse de Silva decidir o que fazer com os 50 € e, apesar de não ter sido esse o motivo da acção c), também ganhou a consideração do cliente. O acto deve ser desinteressado mas se, para além disso, satisfizer interesses, tanto melhor para o agente; se contrariar interesses, paciência.
O princípio da imparcialidade
Podemos enunciar o princípio do desinteresse de outra maneira:
"Decide com imparcialidade."
Aprovamos moralmente as decisões e as acções quando o sujeito, como no caso c), decide como um juiz imparcial. Nos casos a) e b) Silva permitiu que os seus interesses lhe roubassem a imparcialidade.
É provável que Kant, neste aspecto, se afaste um pouco do senso comum. O senso comum pode pensar que "imparcialidade" será considerar igualmente "cada um dos interesses envolvidos" ou, então, ajuizar sobre cada caso atendendo ao "interesse de todos". Mas os "interesses das partes envolvidas" podem ser igualmente imorais. Quanto ao “interesse de todos” pode nem existir (afinal é típico os interesses estarem em conflito…) e, se existir, será, como todos os interesses, contingente, caprichoso como a humanidade, e a moral não pode estar sujeita a caprichos. Imparcialidade para Kant significa decidir independentemente de quaisquer interesses. De facto, Kant pensava, em parte de acordo com o senso comum, que o progresso moral também ajuda à felicidade e aos interesses mais dignos das pessoas. Mas ele sabe que a harmonia entre a moral e a felicidade não é certa e que se a acção moral gerar felicidade será por acréscimo ou efeito secundário.
O princípio do dever
Se a pessoa não deve agir por interesse, então deve agir por obrigação, por dever. A acção a) foi em tudo contrária ao dever. A acção b) está em conformidade com o dever, porque Silva fez o que deveria ter feito, mas foi feita por interesse e não por dever. Só a acção c), a única a ter toda a nossa aprovação moral, foi feita por dever. Assim, o princípio da moralidade pode ser enunciado deste modo:
"Age apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou fins."
Devemos ter em mente que falamos de decisões e acções morais. Se um papel inútil na minha secretária me incomodar, é do meu interesse deitá-lo para a reciclagem e, ao fazê-lo, não estou a violar o princípio dos deveres; mas se atirar o papel para o quintal do vizinho, deixo de cumprir o dever de respeitar as pessoas…
Os deveres morais e as convenções sociais
Os princípios do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e têm as mesmas implicações. Isto permite esclarecer o que são deveres morais:
O dever é uma regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial.
Assim, podemos evitar o erro, bastante difundido, de supor que os deveres morais são criações ou convenções sociais. Dois argumentos contribuem para este erro. O primeiro parte do facto de alguns dos "deveres morais" de uma sociedade serem diferentes dos de outras, para concluir, erradamente, que todos os deveres são convenções sociais. O segundo argumento parte do facto de muitas vezes cumprirmos os deveres contrariados, como se fôssemos obrigados por uma autoridade externa, para concluir que não podem ter origem em nós mas sim numa autoridade externa.
Ora, a teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito entre o dever, que é a ordem que damos a nós mesmos ("Sê honesto!" ― ordenou Silva a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever ("Mas os 50 € davam-me jeito…" ― hesitou Silva), explica porque o dever parece ter uma origem numa autoridade exterior que nos contraria.

Júlio Sameiro

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