quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Deontologia


A perspectiva deontológica da ética, por oposição ao consequencialismo, não concebe os agentes morais como meros instrumentos para a promoção de estados de coisas valiosos numa perspectiva impessoal. Para o deontologista, a moralidade não depende unicamente das consequências — existem outros factores que determinam a obrigatoriedade, permissividade ou impermissividade dos actos. Interessa primariamente aquilo que fazemos e não tanto aquilo que acontece no mundo, e como agentes morais temos a prioridade de evitar praticar o mal. Encontramos na ética de Kant a expressão clássica mais influente da deontologia.
Os deontologistas afastam-se de duas maneiras da visão estritamente consequencialista da ética. Por um lado, reconhecem opções (ou prerrogativas) centradas no agente, isto é, sustentam que os agentes morais não estão sob a obrigação permanente de maximizar o bem. Cada agente pode desenvolver projectos e compromissos puramente pessoais, utilizando os seus recursos sem atender ao maior bem. Embora costumem admitir um dever de beneficência, os deontologistas atribuem-lhe um alcance limitado: este dever rivaliza com outros deveres pelo menos tão fortes e não impõe exigências que ameacem a autonomia ou integridade do agente. (Nesta perspectiva há espaço para actos superrogatórios, ou seja, para actos louváveis nos quais o agente vai além daquilo que lhe era exigível em termos de promoção do bem.) Uma maneira influente de explicar a existência e os limites das opções centra-se na noção pouco precisa de custo para o agente. Quem recorre a esta noção pensa que, apesar de não termos a obrigação de maximizar o bem, é impermissível desperdiçar a oportunidade de produzir um bem significativo quando isso implica um custo insignificante para o agente.
Além de opções, os deontologistas reconhecem, por outro lado, restrições centradas no agente, admitindo no mínimo uma restrição geral contra maltratar os outros.
O dever de não matar pessoas inocentes é talvez a expressão mais forte e consensual desta restrição. Entender este dever como uma restrição centrada no agente implica defender não só que é errado matar uma pessoa inocente para benefício dos outros, mas também que é errado matá-la mesmo que isso seja necessário para impedir que outros agentes matem pessoas inocentes para benefício dos outros. Como Robert Nozick (1974) sugeriu, a racionalidade das restrições é questionável: se não violar uma restrição R é assim tão importante, como pode a preocupação em não violar R levar à recusa de violar R mesmo quando isso permitiria evitar um maior número de violações de R?
Além de enfrentarem o problema de justificar a existência de restrições, os deontologistas precisam de clarificar a sua força respondendo ao problema de saber se estas são ou não absolutas. Os absolutistas, como Kant, defendem que pelo menos algumas restrições nunca podem ser violadas — pensam, por exemplo, que matar uma pessoa inocente é errado sejam quais forem as consequências de não matar uma pessoa inocente. As situações em que o agente terá de violar uma restrição faça o que fizer constituem uma possibilidade embaraçosa para o absolutista, pois aparentemente nessas situações não haverá uma maneira correcta de decidir o que fazer. Além disso, o absolutismo parece ter consequências profundamente contra-intuitivas — a restrição contra maltratar parece implicar, por exemplo, que seria errado matar uma pessoa inocente mesmo que isso fosse necessário para evitar a morte de milhões de pessoas.
Perante este tipo de objecção, alguns absolutistas, como Alan Donagan (1977), sugerem que tais consequências contra-intuitivas decorrem de cenários demasiado fantasiosos para serem levados a sério no pensamento moral; outros tentam mitigar de alguma maneira o carácter absoluto das restrições. Charles Fried (1978), por exemplo, sustenta que em situações catastróficas o próprio pensamento moral colapsa e, portanto, aquilo que o agente fizer não será moralmente certo nem errado.
Os deontologistas moderados, como David Ross (1930) e muito outros, acreditam que as restrições dão origem não a deveres absolutos, mas a deveres prima facie. Isto significa que em algumas circunstâncias as restrições podem ceder — por exemplo, se o bem a realizar (ou o mal a mitigar) for suficientemente significativo, a restrição cederá e tornar-se-á permissível violá-la. Embora tenha a vantagem de não levar a um beco sem saída em casos de conflitos de deveres, esta perspectiva parece deixar-nos excessivamente entregues aos caprichos da intuição moral. Afinal, como poderemos determinar se o bem é suficientemente significativo ou qual o dever prima facie mais forte numa dada ocasião?

Pedro Galvão

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