terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A teoria moral de Kant iii


Parte III
O critério da universalizabilidade
Irei descrever agora a ideia de Kant segundo a qual a razão (e não o desejo) determina o que está certo e o que está errado fazer. Não esqueças que a lei moral (tal como a lei científica) terá de ser universal. Isto significa que a acção moral terá de incorporar uma máxima universalizalizável. Para decidir se estará certo realizar uma acção particular, Kant diz que deves perguntar se queres que a tua máxima se torne uma lei universal. A universalizabilidade é a base de todos os imperativos categóricos — de todas as prescrições morais. Os actos morais podem ser universalizados; oa actos imorais não.
É importante perceber o que este teste implica. É um erro pensar que Kant diz que deves perguntar se seria bom ou mau que todos realizassem a acção que tens em mente. A ideia acerca das acções imorais não é que seria mau que todos as realizassem; a ideia é que é impossível que todos as realizem (ou que é impossível para ti querer que todos as realizem). Tal como os exemplos de Kant ilustrarão há, por assim dizer, um teste lógico para saber se uma acção é moral.
Quatro exemplos
No livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant aplica esta ideia a quatro exemplos. O primeiro descreve um homem cansado da vida que tenciona suicidar-se. O homem considera a máxima de pôr termo à vida se continuar a viver produziria mais dor que prazer. Kant diz que é duvidoso se este princípio de amor-próprio possa tornar-se uma lei universal da natureza. Imediatamente se vê uma contradição num sistema natural cuja lei fosse destruir a vida, dada a convicção de que a especial função de tal sistema é promover o aperfeiçoamento da vida. Neste caso, tal sistema natural não poderia existir. Logo, esta máxima não pode tornar-se lei universal da natureza e assim contradiz o princípio supremo de todo o dever.
Kant sugere que é impossível existir um mundo no qual todos os seres vivos decidem cometer suicídio quando as suas vidas prometem mais dor que prazer. Dado que não pode existir um mundo desses, é errado o indivíduo do exemplo de Kant cometer suicídio. O acto é errado porque não pode ser universalizado.
O segundo exemplo diz respeito a cumprir promessas. Precisas de dinheiro e ponderas se o pedes emprestado. A questão é se seria permissível prometeres pagar o empréstimo mesmo que não tenhas a intenção de o fazer. Kant argumenta que a moralidade exige que cumpras a promessa (e por isso que não peças dinheiro emprestado com falsas intenções):
Dado que a universalidade da lei segundo a qual uma pessoa em dificuldade pode prometer o que lhe convier com a intenção de não cumprir a promessa tornaria impossíveis a própria promessa e o fim que ela persegue; nenhuma pessoa acreditaria no que lhe foi prometido e tais vãs intenções apenas a fariam rir.
O que Kant está a dizer é que cumprir promessas não poderia estabelecer-se como prática se todos os que fizeram promessas tinham a intenção de não as cumprir. O que quer dizer que tal prática pode existir apenas porque as pessoas habitualmente são dignas de confiança. Mais uma vez, a razão de sermos obrigados a cumprir as nossas promessas é que seria impossível um mundo no qual todos fizessem promessas com a intenção de as quebrar. A universalizabilidade é a prova de fogo.
O terceiro exemplo tem o propósito de mostrar que cada um de nós tem a obrigação de desenvolver os seus talentos. Por que devemos nós "alargar e desenvolver os nossos dons naturais"? Em vez disso, por que não escolher uma vida de "ociosidade, complacência e prodigalidade"? Cada pessoa tem de escolher a primeira porque, afirma Kant, "como ser racional, a pessoa necessariamente deseja que todas as suas faculdades devam ser desenvolvidas, uma vez que lhe foram dadas para todas as espécies de propósitos possíveis."
O quarto exemplo é o de um homem a quem a vida sorri mas que vê outros terem vidas de grande privação. Terá ele a obrigação de os ajudar? Kant concede que a humanidade poderia existir num estado em que alguns vivem bem enquanto outros sofrem. Mas afirma que nenhum agente racional pode desejar um mundo assim:
Ora, se bem que seja possível existir uma lei universal da natureza de acordo com esta máxima, é todavia impossível desejar que tal princípio deva estabelecer-se em toda a parte como lei da natureza. Porque uma vontade que assim decidisse entraria em conflito consigo própria, uma vez que podem surgir frequentemente circunstâncias em que a pessoa precisaria do amor e simpatia dos outros e, devido a tal lei da natureza que emana da sua vontade, privar-se-ía de toda a esperança de ajuda que deseja.
A ideia de Kant não é que este padrão não possa ser universal, mas que nenhum agente racional poderia desejar que fosse universal.
Avaliação dos exemplos de Kant
Destes exemplos, o mais fraco é talvez o primeiro. Não é impossível existir um mundo em que todos os doentes terminais sujeitos a um grande sofrimento cometem suicídio. E também não parece haver qualquer razão para que um agente racional não pudesse desejar que todas as pessoas poupassem a si próprias a inevitabilidade de uma morte dolorosa.
O segundo exemplo é um pouco mais plausível. A prática do cumprimento de promessas parece confiar no facto de que as pessoas habitualmente acreditam nas promessas que lhes são feitas. Se as pessoas nunca tivessem a intenção de cumprir as suas promessas poderia tal prática persistir? Kant diz que não. Todavia, talvez seja possível imaginar circunstâncias engenhosas nas quais esta conclusão pudesse ser contornada. Convido-te a fazer este exercício.
Talvez alguma coisa possa também ser dita do argumento de Kant acerca do nosso dever de ajudar os outros. Cada um de nós precisa de alguma espécie de ajuda em algum momento da vida. Por consequência, cada um de nós desejaria evitar uma situação em que ninguém nos daria a ajuda de que precisamos. Logo, não podemos desejar que ninguém deva jamais fornecer ajuda. Isto significa que seria errado da nossa parte conduzir a vida recusando completamente prestar ajuda aos outros. Mais uma vez, a razão pela qual seria errado é que não podemos desejar que o padrão seja universal.
Que argumento apresenta Kant no quarto exemplo a respeito do dever de desenvolvermos os nossos talentos? Talvez o raciocínio seja semelhante àquele que é usado por Kant na discussão do dever de ajudar os outros. Eu quero que os outros desenvolvam os talentos que me serão benéficos; por exemplo, quero que os médicos aperfeiçoem as suas competências, uma vez que um dia precisarei deles. Mas isto significa que eu não posso desejar que todos descuidem o desenvolvimento dos seus talentos. Segue-se supostamente que eu tenho o dever de desenvolver os meus talentos.
Já sublinhei antes que o critério de universalizabilidade não pergunta se seria bom que todos realizassem a acção que o agente pensa realizar. A questão de Kant é saber se seria possível que todos realizassem a acção, ou se seria possível desejar que todos devessem realizar a acção.
Se tivermos isto em mente, é duvidoso se Kant pode chegar às conclusões pretendidas a respeito dos últimos dois exemplos sem uma explicação que tenha em conta as consequências. É claramente possível que o mundo seja um lugar em que ninguém ajuda os outros e ninguém desenvolve os seus talentos. Trata-se de um estado de coisas lamentável, e não de um estado de coisas impossível. O que pensar da segunda opção — poderia um agente racional desejar que as pessoas não ajudem os outros ou não desenvolvam os seus talentos?
Isso depende do que se quer dizer com "racional". Se racional significa instrumentalmente racional, então não parece haver qualquer impossibilidade. Como diz Hume, posso ser perfeitamente claro no meu raciocínio meios/fim (e por isso ser instrumentalmente racional) e ter os desejos mais bizarros que podes imaginar. Por outro lado, há um sentido de "racional" segundo o qual um agente racional não desejaria que o mundo fosse um lugar em que as pessoas não ajudam os outros ou não desenvolvem os seus talentos. Um agente racional não o desejaria devido às consequências que tais comportamentos teriam. Num mundo assim haveria muito sofrimento, alienação e desespero; a vida seria desolada.
A conclusão que retiro é que não é claro como podem ser feitas as análises de Kant dos últimos exemplos sem considerar as consequências que resultariam de tais acções se tornarem universais.

Elliott Sober

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