sábado, 13 de setembro de 2008

Os instrumentos do ofício v

Parte V
O a priori e o empírico
Uma vez estabelecido que um argumento é válido, a nossa atenção deve virar-se para as afirmações que constituem as premissas. Como poderemos determinar se são verdadeiras? A verdade de algumas afirmações tem de ser determinada empiricamente, isto é, pela observação. No caso de outras, não é necessário recorrer à observação. Chama-se a estas proposições «a priori». Uma proposição a priori é por vezes descrita como uma afirmação cuja verdade ou falsidade pode ser conhecida anteriormente a qualquer recurso à experiência. Contudo, esta caracterização não pretende sugerir que a experiência é irrelevante para a descoberta ou aprendizagem do que a proposição significa. No entanto, uma vez compreendido o significado de uma proposição a priori, não é necessária nenhuma prova obtida a partir da observação para justificar a alegação de que sabemos que a proposição é verdadeira ou falsa. Quando tivermos aprendido o suficiente para compreendermos o significado destas proposições e das palavras nelas contidas, poderemos saber se são verdadeiras sem recorrer a provas empíricas. A verdade destas afirmações pode ser conhecida a priori. As proposições analíticas e contraditórias examinadas anteriormente são todas exemplos de proposições desse tipo.
Em contrate com as proposições a priori estão todas aquelas de que só se pode saber que são verdadeiras ou falsas por intermédio de provas obtidas a partir da observação. Estas são proposições a posteriori ou empíricas. As proposições seguintes são exemplos de proposições empíricas:
Eu tenho uma cabeça.
A Lua tem crateras.
Alguns cogumelos são venenosos.
Todas as mulas são estéreis.
Estas afirmações não são apenas empíricas mas também consideradas verdadeiras. Se substituíres as palavras «cabeça», «crateras», «cogumelos» e «mulas» por, respectivamente «cauda», «vinhas», «maçãs» e «vacas» nas quarto proposições anteriores, obterás quatro proposições empíricas que são consideradas falsas.
A priori/a posteriori, analítico/sintético, necessário/contingente
Neste capítulo aprendemos três formas de caracterizar as proposições que são de particular interesse para o filósofo: cada proposição é i) ou necessária ou contingente, ii) ou analítica ou sintética, iii) ou a priori ou empírica (a posteriori). Iremos agora ver brevemente como estas três distinções estão inter-relacionadas.
Primeiro, repara que estas três distinções pertencem a três aspectos distintos de uma proposição. A distinção necessário/contingente respeita ao estatuto modal da proposição. Dizer que uma afirmação é necessariamente verdadeira é dizer que tem de ser verdadeira ou que é verdadeira em todos os mundos possíveis. Uma proposição é contingentemente verdadeira no caso em que acontece ser verdadeira devido à forma como o mundo é. A distinção analítico/sintético respeita à base de verdade ou de falsidade de uma proposição. Dizer que uma proposição é analiticamente verdadeira é dizer que a sua verdade se funda apenas no significado dos termos e nas leis da lógica. Uma proposição é sinteticamente verdadeira precisamente quando a sua verdade não se funda exclusivamente no significado dos seus termos e nas leis da lógica. A distinção a priori/a posteriori diz respeito ao estatuto epistemológico de uma proposição. Dizer que uma proposição é verdadeira a priori é dizer que a sua verdade pode ser conhecida sem recorrer à experiência. Uma proposição é verdadeira a posteriori precisamente no caso em que a sua verdade pode apenas ser conhecida confiando na experiência.
Depois de termos destacado as diferenças entre estas três distinções, vejamos as suas semelhanças. A observação mais impressionante acerca destas três distinções é que elas parecem dividir o conjunto das proposições exactamente nas mesmas subclasses. Isto é, podemos usar cada uma das três distinções para dividir o conjunto de proposições em duas classes: uma consiste nas proposições necessárias, analíticas e a priori; a outra contém as proposições contingentes, sintéticas e a posteriori. Mas esta clara divisão das proposições em dois grupos não é universalmente aceite. Os dissidentes mais notáveis foram Immanuel Kant e, nos nossos dias, Saul Kripke. Kant defendeu que algumas proposições são necessárias, sintéticas e a priori; por exemplo, "Todo o acontecimento tem uma causa". Desde então "o problema do sintético a priori" ocupou uma posição razoavelmente central no palco filosófico. Recentemente, Kripke defendeu que algumas proposições são necessárias, sintéticas, e a posteriori. "A água é H2O", "O calor é energia molecular", e outras identidades teóricas semelhantes são exemplos destas necessidades a posteriori.
Indução
Os argumentos que não são argumentos dedutivos válidos e que não preservam necessariamente a verdade são tradicionalmente chamados argumentos indutivos. Quando examinamos o grande número de coisas em que acreditamos, rapidamente descobrimos que a indução é a garantia da maior parte delas. Raramente extraímos da observação premissas das quais possamos deduzir validamente a verdade das proposições a posteriori em que acreditamos. A dedução falha quase sempre, mas os poderes da razão humana não são contidos pelos limites do raciocínio dedutivo. Quando um argumento dedutivo não é suficientemente forte para defender as nossas crenças, e apesar disso as provas são fortes, então a indução é usada para satisfazer as nossas necessidades. Por isso, temos de ter alguma compreensão deste tipo de argumentação.
Força indutiva
Num argumento indutivo, as premissas são indícios a favor da conclusão ou hipótese. Ao contrário do que acontece nos argumentos dedutivos sólidos, nos quais as premissas implicam as conclusões, os indícios num argumento indutivo sólido não implicam a hipótese que é deles inferida. O que é então um argumento indutivo sólido? Uma condição de solidez é que as provas sejam proposições verdadeiras. Esta condição é partilhada com os argumentos dedutivos sólidos. Mas se os indícios não implicam logicamente as hipóteses deles inferidas, o que é que nos argumentos indutivos corresponde à condição de validade dos argumentos dedutivos?
Alguns filósofos duvidam de que haja uma resposta satisfatória e, por consequência, rejeitam completamente a ideia de uma lógica indutiva. Contudo, tendo dado nota da controvérsia que impregna este assunto, tentaremos no entanto formular uma segunda condição de solidez para os argumentos indutivos.
Apesar de uma inferência indutiva dos indícios para as hipóteses não preservar necessariamente a verdade — isto é, apesar de ser logicamente possível que os indícios sejam verdadeiros e a conclusão falsa — esta inferência é apesar disso sólida se é razoável pensar que a inferência preserva a verdade; isto é, se é razoável pensar que a hipótese é verdadeira se os indícios o forem. Um argumento dedutivo sólido é aquele em que as premissas são verdadeiras e em que, se as premissas são verdadeiras, a conclusão tem de ser verdadeira. Um argumento indutivo sólido é aquele em que os indícios são verdadeiros e em que, se as premissas são verdadeiras, então é razoável aceitar a hipótese como verdadeira. Deste modo, a segunda condição de solidez de um argumento indutivo, a que chamaremos «força indutiva», pode ser expressa da seguinte maneira: se os indícios são verdadeiros, é razoável aceitar a hipótese também como verdadeira. Um argumento indutivo sólido é aquele em que os indícios são verdadeiros e que é indutivamente forte.
Verdade e crença razoável
O termo «razoável» é aqui usado num sentido especial. A questão de saber se é razoável pensar que uma proposição é verdadeira depende dos nossos propósitos. Pode fazer alguém feliz pensar que Deus existe, e, se o propósito é obter a felicidade pensando coisas dessas, talvez seja para essa pessoa razoável pensar, tendo em vista o fim, que é verdade que Deus existe. Mas isto não tem absolutamente nada a ver com argumentos indutivos ou o género de razoabilidade que eles exigem para que sejam sólidos. Em vez disso, o género de razoabilidade que um argumento indutivo sólido exige tem de ter como únicos fins a verdade e evitar o erro. Um argumento indutivo sólido tem de ser tal que, se os indícios forem verdadeiros, é razoável, para os fins que consistem na aceitação de hipóteses verdadeiras e no evitar a aceitação de hipóteses falsas, a aceitação da hipótese inferida como verdadeira.
Contudo, deve-se fazer notar que os fins de aceitar proposições verdadeiras e evitar a aceitação de falsas são de certa forma opostos. De facto, a forma mais simples de evitar a aceitação de proposições falsas é não aceitar qualquer proposição. Procedendo assim, não aceitamos nada que seja falso. Por outro lado, para aceitar o que é verdadeiro, a forma mais simples é aceitar todas as proposições, porque fazendo-o aceitaremos todas as proposições verdadeiras. Claro que o problema em aceitar todas as proposições, mesmo que o pudéssemos fazer, está em que aceitaríamos tantas proposições falsas quantas verdadeiras. Analogamente, o problema com a não aceitação de quaisquer proposições é que dessa forma renunciaríamos à possibilidade de aceitar proposições verdadeiras. O problema está em descobrir um equilíbrio entre estes dois fins de aceitar o que é verdadeiro e, ao mesmo tempo, evitar aceitar o que é falso.
Força e competição
Todos os argumentos indutivos correm assim o risco de não conseguirem preservar a verdade, isto é, de levarem ao erro. O que torna o risco de erro aceitável é a possibilidade de obter uma hipótese que seja verdadeira em vez de uma hipótese rival que seja falsa. Podemos obter uma descrição melhorada da força indutiva realçando a importância do conceito de competição entre hipóteses como uma característica da indução. A razoabilidade de obter uma proposição verdadeira depende das outras proposições com que compete e da probabilidade da afirmação do indício.
Examinemos um argumento indutivo que em tempos levou filósofos e cientistas a concluírem que o universo foi concebido por um agente. Para compreendermos o argumento indutivo que conduz a esta conclusão, lembra-te que antes da teoria da evolução ter sido concebida, a existência de seres humanos constituía um problema intelectual fundamental. Embora tivéssemos teorias da matéria que davam adequadamente conta de muitas das características do universo físico, a existência de seres humanos continuava ser desconcertante. A existência de animais apresentava um contraste marcante com a matéria inerte, mas, embora alguns filósofos pretendessem olhar os animais como mecanismos físicos complexos, aplicar a mesma conclusão aos seres humanos era repugnante. Talvez a principal razão para esta aversão fosse a existência de pensamento consciente e de cogitação racional. Um filósofo que pretendesse rejeitar a ideia de que os animais inferiores pensam e raciocinam teria dificuldade em negar que ele próprio estava a pensar e a raciocinar enquanto o fazia. Por este motivo, a existência de seres humanos, seres pensantes e racionais, constituía efectivamente um fenómeno problemático. Naturalmente, surgiu a questão de saber como o explicar.
Podemos colocar esta questão perguntando que hipótese seria racional aceitar como verdadeira por indução a partir dos indícios. Para alguns pensadores, parecia haver apenas duas hipóteses rivais. Uma era que os seres surgiram por puro acaso cósmico ou acidente. A outra era que os seres humanos surgiram como resultado de algum desígnio ou plano. Por isso, para estes pensadores, as duas hipóteses seguintes competiam pela aceitação neste contexto:
1. Os seres humanos surgiram por acaso.
2. Os seres humanos surgiram por desígnio.
Não é surpreendente que, uma vez que estas eram as hipóteses a escolher, tendo em conta os indícios, a segunda e não a primeira tenha sido considerada mais provável. Pareceu extremamente improvável que algo tão extraordinariamente intricado e complexo como um ser humano pudesse existir por acaso. De facto, a organização intricada e complexa dos seres humanos pareceu notavelmente semelhante às características intricadas e complexas dos objectos projectados pelos seres humanos. Este argumento por analogia, que examinaremos outra vez adiante, era, claro, indutivo, mas também baseado num conjunto limitado de hipóteses alternativas. Com a competição limitada desta forma, não é surpreendente que alguns dos mais perspicazes e críticos pensadores do passado olhassem a hipótese 2 como a que devia ser inferida indutivamente a partir dos indícios.
Ora, o leitor astuto pode ter notado que, para falar com rigor, uma pessoa que considere as hipóteses 1 e 2 deveria, para ser sagaz, considerar também uma outra hipótese, a saber, a hipótese de que nem 1 nem 2 são correctas. Assim, poderíamos também considerar a hipótese negativa seguinte:
3. Os seres humanos surgiram devido a algo diferente do acaso ou do desígnio.
A omissão desta hipótese da competição justifica-se devido à sua natureza não informativa. Não oferece qualquer explicação dos fenómenos observados. Se procuramos uma hipótese para explicar a existência do homem, embora a hipótese 3 possa muito bem ser verdadeira, ela não compete por esse papel.
Uma proporção bastante menor de filósofos e cientistas teria hoje considerado persuasiva a inferência indutiva da hipótese 2 a partir dos indícios. Mas uma razão para isso é que hoje não consideramos que estas duas hipóteses sejam as únicas alternativas em competição. Há, claro, a hipótese evolucionista
4. Os seres humanos surgiram por evolução.
Aqui é mais importante não confundir a hipótese informativa 4 com a hipótese não informativa 3. A hipótese 3 é logicamente implicada pela 4, mas a justificação de 3 depende completamente da força do argumento indutivo a favor de 4. Depois da hipótese evolucionista ter sido concebida, a competição incluiu não apenas 1 e 2 mas também 4. Uma vez que muitos cientistas e filósofos, talvez a maior parte, consideraram a hipótese 4 como a mais provável das três em competição, consideraram a indução dessa hipótese a partir dos indícios como persuasiva.
É importante chamar a atenção para a diferença entre a hipótese 3 e a hipótese 4. A primeira é negativa e não explica o fenómeno em questão, a existência de seres humanos. A última, pelo contrário, oferece uma teoria muito sofisticada e abrangente, a teoria da evolução, como uma explicação para o fenómeno. Por esta razão, alguém que não considerasse a hipótese 3 como um competidor consideraria a hipótese 4 como um competidor, e, na verdade, um competidor bem sucedido. Os argumentos precedentes levam a algumas conclusões importantes. Primeiro, a força de um argumento indutivo depende, em parte, das outras proposições com as quais a hipótese do argumento compete. Em segundo lugar, as outras proposições com as quais a hipótese do argumento compete dependem das hipóteses que foram imaginadas e, desta forma, do contexto da investigação.
A força indutiva como competição bem sucedida
Concluímos que a força indutiva depende essencialmente do contexto conceptual do raciocínio no qual se formulam as hipóteses. Podemos dar uma definição de força indutiva em termos da noção de competição como se segue: um argumento indutivo dos indícios para a hipótese é indutivamente forte se, e apenas se, a hipótese é tal que, de todas as hipóteses em competição, tem a maior probabilidade de ser verdadeira com base nos indícios. Assim, a questão de saber se é racional aceitar uma hipótese como verdadeira, se os indícios forem verdadeiros, é determinada pelo facto de essa hipótese ser ou não a mais provável, face aos indícios, de todas com que compete.
A conclusão a que chegámos dota-nos com uma metodologia para testar a força de um argumento indutivo. Confrontado com um argumento indutivo, devemos fazer duas perguntas críticas:
Com que afirmações compete a hipótese do argumento?
É a hipótese mais provável que todas as outras com que compete?
Apenas no caso de a resposta à segunda questão ser afirmativa podemos considerar o argumento persuasivo. Além disso, não há qualquer teste automático ou regra formal pela qual possamos fornecer uma resposta a qualquer destas questões. Para responder à primeira, temos de usar todas as capacidades intelectuais à nossa disposição. A incapacidade em considerar a rival de uma hipótese pode levar-nos a aceitar uma hipótese que seja pouco razoável aceitar. Contudo, se procurámos rivais cuidadosamente e se considerámos com seriedade a probabilidade de cada uma, podemos, a título experimental, considerar um argumento indutivamente forte quando a conclusão é a mais provável de todas as rivais que conseguimos conceber.A procura de um competidor mais provável para refutar a força indutiva é como a busca por um contra-exemplo para refutar a validade dedutiva. A incapacidade em encontrar um contra-exemplo não prova que não há nenhum. Analogamente, a incapacidade em encontrar uma hipótese rival mais provável não prova que não há nenhuma. Além disso, estes métodos de refutação são tão eficazes quanto a pessoa que os emprega. No fim, quando tivermos de decidir se devemos aceitar que um argumento é dedutivamente válido ou indutivamente forte, não dependeremos de nenhum procedimento automático, mas da nossa inteligência e integridade. Isto não é um defeito. Todo o progresso na ciência e nas humanidades depende em última instância destes elementos. Nenhuma metodologia transcende ou ultrapassa o intelecto humano.

Cornman, Lehrer e Pappas
Retirado de http://www.criticanarede.com/

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá o meu nome é Luís Afonso e sou um leitor assíduo do seu blogue. Penso já ter deixado um comentário numa outra vez.
O objectivo do comentário de hoje é alertar para a possivel desmotivação para a leitura resultante da colocação de posts longos como este onde estou a comentar. Digo isto porque eu próprio fico sem vontade de me lançar à leitura de um texto com uma letra tão pequena e no qual não vejo o fim, apesar do assunto tratado ser de algum interesse.
Faço este reparo com as melhores das intenções e sei que se considerar esta situação um obstáculo para os leitores a irá resolver do melhor modo possível.

Um Abraço,

Luís Afonso

Hermes disse...

Obrigado Luís Afonso pelo seu comentário que será tido em conta.
António Paulo