quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O que é o modelo crença-desejo? III

Parte III
Outro exemplo, desta vez mais próximo daquilo que nos interessa: se perguntarmos a Lois Lane se ela ama o Super-Homem, ela dirá que sim. No entanto, se lhe perguntássemos se ela amava Clark Kent, ela dir-nos-ia que não (pelo menos antes de descobrir que eles são a mesma pessoa, o que, salvo erro, ocorre em "Super-Homem 2"). Como nós sabemos que as expressões "Super-Homem" e "Clark Kent" são co-extensivas, nós pensaríamos, à partida, que são sempre inter-substituíveis salva veritate. Dois termos são inter-substituíveis salva veritate quando podem ser trocados um pelo outro sem alterar o valor de verdade da frase em que ocorrem ("salva veritate" significa, precisamente, "preservando a verdade"). Por exemplo: se é verdade que o Super-Homem é invencível, então também é verdade que Clark Kent é invencível. Se é verdade que o Super-Homem tem um metro e noventa, também é verdade que Clark Kent tem um metro e noventa.
No entanto, as coisas mudam quando estamos a falar de contextos referencialmente opacos (ou "contextos intensionais"; é a mesma coisa). Um contexto é referencialmente opaco quando, por exemplo, determinar a referência dos termos que ocorrem numa frase não é suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Tome o exemplo da frase "Lois Lane ama Clark Kent". Ora suponha que nós sabemos a quem é que os termos "Lois Lane" e "Clark Kent" se referem e que também sabemos o que significa o verbo "amar". Será isso suficiente para determinar se a frase "Lois Lane ama Clark Kent" é verdadeira? Não. Pense nas semelhanças entre "Lois Lane ama Clark Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem". "Lois Lane" refere-se à mesma pessoa em ambas as frases. "Clark Kent" e "Super-Homem" também se referem à mesma pessoa. O verbo "amar" tem exactamente o mesmo significado. No entanto, parece que, de modo a determinar se cada uma das frases é verdadeira, não basta saber a referência de "Super-Homem" e "Clark Kent".
Isto mostra-se facilmente através do seguinte argumento. Lois Lane sabe a referência de "Clark Kent" (ela conhece-o porque trabalha com ele) e também sabe a referência de "Super-Homem" (ele já a salvou umas quantas vezes), ainda que não saiba que "Clark Kent" e "Super-Homem" são termos co-extensivos, isto é, que Clark Kent é o Super-Homem (e vice-versa, naturalmente). No entanto, responderia negativamente, caso lhe perguntássemos se amava Clark Kent, e afirmativamente, caso lhe perguntássemos se amava o Super-Homem. Por isso, a impressão que dá é a de que, para determinar o valor de verdade de "Lois Lane ama Clark Kent" e "Lois Lane ama o Super-Homem", não basta saber a extensão de "Clark Kent" e a extensão de "Super-Homem": também temos que saber a intensão de cada um dos termos.
(Um aparte: o leitor que esteja ao corrente da controvérsia entre Fregeanos (lê-se "Freguianos") e Millianos na filosofia da linguagem saberá que este problema da falha de inter-substitutividade salva veritate de termos co-extensivos em contextos referencialmente opacos é uma grande dor de cabeça para os Millianos.)
Agora vamos parar aqui um bocadinho para explicar o que é isso de "intensão", porque senão isto pode tornar-se tudo muito confuso. "Intensão" com "s" não deve ser confundida com "intenção" com "ç". A nossa intenção é aquilo que queremos fazer. Eu tenho a intenção de subir a escada, de abrir a porta, etc. "Intensão" é uma coisa diferente. Para se saber o que é "intensão", será melhor lembrar o que é a extensão. Lembra-se de eu dizer que "Super-Homem" e "Clark Kent" eram termos co-extensivos? Trocado por miúdos, isso quer dizer que têm a mesma extensão. A extensão de uma expressão referencial é, simplesmente, a coisa a que expressão se refere. A intensão é algo que está supostamente associado a expressões referenciais, mas que é distinto da extensão. O que essa intensão seja, porém, é coisa altamente polémica. Há quem diga que as intensões são significados. Há quem diga que são descrições definidas. Hoje em dia, há uma definição mais "janota": a intensão de um termo é uma função de um mundo possível w para a extensão do termo.
Estas polémicas são todas muito interessantes, mas não nos interessam para aqui. Aquilo que nos interessa é o seguinte. Parece que, quando estamos a lidar com predicados como "... tem um metro e noventa" e "... é invencível", a única coisa que conta para determinar o valor de verdade das frases que formemos, inserindo nomes próprios no espaço em branco, é a extensão desses nomes próprios. Se é verdade que Clark Kent tem um metro e noventa, e Clark Kent é o Super-Homem, então é necessariamente verdade que "O Super-Homem tem um metro e noventa". Neste caso, saber a extensão dos dois termos basta para determinar o valor de verdade das frases. Estamos, por isso, num contexto extensional, ou referencialmente transparente (que é, obviamente, o oposto de contexto intensional, ou referencialmente opaco)
Quando estamos a falar de frases como "Lois Lane ama Clark Kent", parece que estamos a entrar num contexto referencialmente opaco, dado que saber a extensão de "Clark Kent" não parece ser suficiente para determinar o valor de verdade dessa frase. Se "Clark Kent" tivesse uma intensão, e essa intensão fosse qualquer coisa como "colega de trabalho a quem Lois Lane dá pouca atenção", já seria possível determinar o valor de verdade da frase "Lois Lane ama Clark Kent": seria falsa. Bom, suponho que o leitor já esteja um pouco perdido, nesta altura. Aonde quero eu chegar com tudo isto, afinal? Peço desculpa por esta incursão algo demorada pela filosofia da linguagem, mas tinha receio de que, se não o fizesse, aquilo que vou dizer a seguir poderia não ser entendido.

Pedro Madeira
Retirado de http://www.intelectu.com/

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