quinta-feira, 26 de junho de 2008

PODE UM MERCADOR SER AGRADÁVEL A DEUS?

Quando consideramos a outra fonte principal das ideias ocidentais, a tradição judaica e cristã, vemos que as antigas escrituras hebraicas condenam igualmente a cobrança de juros sobre empréstimos, mas propõem a este respeito bem como a muitos outros, uma ética tribal, adequada a um pequeno grupo de pessoas a viver entre outros grupos. Assim, no Deuteronómio, lemos:
Não emprestes ao teu irmão com juros, quer se trate de empréstimo em dinheiro, quer em alimentos ou qualquer outra coisa sobre a qual é costume cobrar juros.
Quando, muito mais tarde, o cristianismo surgiu entre o povo judeu, propôs uma ética universal. Todos sabemos que Jesus nos instou a amarmos os nossos inimigos; menos conhecido, hoje em dia, é o facto de ele nos ter dito igualmente para deixarmos de lhes cobrar juros.
Obedecendo a estes ensinamentos, as primeiras comunidades cristãs parecem ter possuído em comum a pouca propriedade que detinham. Os ensinamentos dos Doutores da Igreja eram coerentes com isto. As esmolas dadas aos pobres não eram uma questão de misericórdia, mas de justiça, pois a terra era encarada como algo que pertencia a todas as pessoas e ninguém tinha direito a mais do que lhe era necessário. Gregório Magno, numa passagem memorável, afirmou que, tal como há tarefas menores que sujam o corpo, como limpar os esgotos, também há outras que mancham a alma, e o câmbio é uma delas.
Não surpreende, pois, que a tradição cristã não veja com bons olhos o lucro. No século V, o Papa Leão I afirmou, numa carta dirigida ao bispo de Narbonne, que é difícil evitar o pecado no processo de compra e venda. Em 1139, o Concílio de Latrão condenou a usura – o que significa cobrar juros a dinheiro emprestado, por moderada que seja a taxa – como “ignominioso”. Quarenta anos mais tarde, outro Concílio de Latrão decidiu que os usurários tinham de ser excomungados, não podiam ter um enterro cristão e as suas oferendas e presentes seriam recusados. A proibição da usura deu igualmente um impulso fatal ao anti-semitismo: como os cristãos não podiam emprestar dinheiro, este papel passou a caber aos judeus, e o ódio sentido pela usura inflamou os preconceitos existentes relativos aos já desprezados “assassinos de Cristo”.
Algumas das justificações para a condenação da usura fazem um contraste intrigante com os nossos modos actuais de pensar. Um teólogo medieval, Tomás de Chobham, considerava a usura repreensível porque “o usurário pretende obter lucro sem qualquer trabalho e mesmo enquanto dorme, o que é contrário ao ensinamento do Senhor: ‘Ganharás o pão com o suor do teu rosto’.” Além disso, acrescenta Tomás, o usurário nada vende que verdadeiramente lhe pertença: vende apenas tempo, que pertence a Deus. Isto transformava o usurário num ladrão e, efectivamente, a usura é muitas vezes classificada como uma forma de assalto ou roubo. Mas era também comparada frequentemente com a prostituição, outra ocupação que era simultaneamente bem conhecida e vergonhosa. Tomás considerada a comparação injusta para a prostituta: ela, pelo menos, trabalhava para ganhar o dinheiro, embora o trabalho fosse ignominioso.
SINGER, Peter, Como Havemos de Viver – a ética numa época de individualismo, 1ª edição, 2006. Lisboa: Dinalivro, pp. 117-122

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