A morte é um objecto filosófico paradoxal. Num sentido ela não é nada – um grande vazio; não há, portanto, nada a dizer, nada a temer. Noutro sentido, ela é tudo. Afecta sem remissão a totalidade dos seres vivos, e o homem, isolado no seu rochedo, sabe que é mortal. Como nenhuma outra, a existência humana está encoberta por esta sombra inexpugnável. Logo que penso na morte, nada mais me ocorre senão esta lei comum a todos os organismos que faz com que a vida, se acabe ao fim de um determinado lapso de tempo. Trata-se, num dos limites da escala, do efémero ou do bômbice-da-amoreira, que não vivem mais do que algumas horas, nunca mais do que um dia, ou, no outro limite da escala, do embondeiro, do teixo ou do pinheiro, que podem viver alegremente vários séculos, o ser vivo, homem incluído, está sempre condenado a desaparecer. A morte não é uma passagem sabe-se lá para que região supra-sensível ou etérea, mas o fim irrevogável da existência, uma muralha insondável contra a qual o ser vivo se pulveriza.Como qualquer organismo, o homem é mortal por natureza. É a lei do ser vivo. Tudo o que vive perece, inelutavelmente. Considerada assim, a morte é um mal indubitável, uma vez que apaga o ser em proveito do nada. E não me parece que possa haver maneira de a tornar amável, a não ser que ela permita evitar um mal maior ainda. Pode acontecer que eu me sacrifique se a minha morte permitir que outras vidas sejam salvas. Pode acontecer que eu decida pôr fim aos meus dias se a vida se tornar insuportável. De resto, no quadro da vida vulgar, parece-me difícil imaginar algo que torne a morte desejável, de tal maneira que se um génio maligno, em cada manhã, ao nascer do Sol, me deixasse escolher entre morrer ao anoitecer ou no espaço de um ano, eu optaria sempre pela mais longa continuidade da vida: no que me diz respeito, eu escolheria continuar a viver indefinidamente, adiando sempre a hora da minha morte, tão longe quanto possível do meu presente.As relações entre a vida e a morte podem, pelo menos parece, ser abordadas de duas maneiras. À primeira vista, podemos considerar que a vida e a morte são estranhas uma à outra por natureza e estão constantemente de costas voltadas, sem coexistência possível. Pode bem acontecer que um dia venha a encontrar-me num hospital numa situação desesperada, no último fio, que, por muito ténue que seja, me manterá vivo. À semelhança do ser e do não-ser, a vida e a morte não admitem graus, designam dois universos não miscíveis e sem matizes, perfeitamente estanques. Mas também podemos considerar, pelo contrário, que a morte e a vida, longe de se oporem, estão intimamente ligadas e que, de certo modo, a morte se inscreve no coração da vida. Não só porque cada dia que passa é um dia a menos para viver, mas também porque cada dia que passa se aproxima um pouco mais da morte. Nesta perspectiva, a vida é uma morte lenta, uma doença, um vírus que nos corrói e nos gangrena. Pouco a pouco, o bebé que eu era transforma-se em cadáver.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição,2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 103-104
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