domingo, 1 de junho de 2008

EXPLICAR AS ACÇÕES

Resta-nos agora examinar o tipo de explicação que uma acção requer. De que tipo de explicação se trata? Causas ou razões? Um carro, por exemplo, move-se porque é dotado de um motor e de um sistema mecânico que permite transmitir a energia desde o motor até às rodas (causa), ou porque um piloto a bordo deseja ir a qualquer lado (razão)?
A explicação pelas causas, por si só, não é suficiente para dar conta de uma acção, uma vez que negligencia a intencionalidade. Não basta afirmar que se deu lugar a um processo neurofisiológico para explicar o facto de Aristóteles apertar as suas sandálias. Ficarmo-nos por este tipo de explicação é reduzir a acção a um simples acontecimento, como a queda de uma folha ou de um fruto de uma árvore. Se Aristóteles aperta as suas sandálias, isso não é apenas porque as suas mãos e os seus dedos se movem de determinada maneira, mas porque ele deseja acabar de se arranjar antes de sair. A descrição pelas razões, por si só, também não é convincente. Enquanto tal, a intenção parece estéril. Pode dizer-se que existe qualquer coisa como uma intenção em acto, tal como podemos verificá-lo em várias situações da vida quotidiana: estender um braço, o antebraço e a mão em direcção a um pacote de batatas fritas, por exemplo.
Para que possamos dar conta das acções, tanto convém considerar as razões como as causas. Além da explicação da acção pelas causas neurofisiológicas e da sua decifração pelas razões descritivas ou interpretativas, convém considerar um nível intermédio que esclarece uma e outra – tanto os processos cerebrais que tornam o gesto eficiente como o objectivo perseguido pela realização desse gesto. Este nível de explicação corresponde à tese segundo a qual algumas razões também são causas. Uma só e mesma explicação pode, ao mesmo tempo, dar conta da inteligibilidade e da efectividade de uma acção.
Esta tese, aparentemente convincente, encerra várias dificuldades. Para serem credíveis, os seus partidários deverão dispor, sobretudo, de uma teoria sólida que permita explicar como é que aquilo que é mental, tal como uma ideia ou um desejo, poderá exercer uma influência sobre aquilo que é físico: os processos neurofisiológicos e os movimentos do corpo. Caso contrário, nada mais nos restará senão considerar o homem como um zombie (um autómato de carne sem consciência) ou como um organismo manietado ou cerebrocomandado.
A primeira parte da tese – o facto de o cérebro gerar os movimentos do corpo e os estados mentais – é aceite pela grande maioria dos teóricos de diversas disciplinas, da neurofisiologia à filosofia, do mesmo modo que vai ao encontro do senso comum. Por outro lado, a segunda parte da tese – o facto de o cérebro gerar os estados mentais, sem que estes exerçam qualquer influência sobre os estados cerebrais e, consequentemente, sobre os estados corporais – parece incongruente. Não se trata uma vez mais, de negar a existência dos acontecimentos mentais (teoria do homem-zombie), mas de recusar atribuir a estes acontecimentos qualquer poder. Nesta perspectiva, a noção de gesto intencional perde a sua substância. O homem seria a marioneta do seu cérebro. Seria o cérebro que, de uma maneira ou de outra, orquestraria às escuras os nossos gestos aparentemente intencionais, que nos daria a impressão de que certos estados mentais comandam esses gestos a que chamamos acções, ou seja, de que somos actores, o que segundo esta perspectiva é uma perfeita ilusão.
FERRET, Stéphane, Aprender com as Coisas – uma iniciação à filosofia, 1ª edição, 2007. Lisboa: Edições Asa, pp. 89-91

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