segunda-feira, 2 de junho de 2008

(DES)ANIMALIDADE

O comportamento humano tem sido “des-moralizado”, arrastado para baixo do seu pedestal sagrado e dissecado no laboratório. A tarefa mais importante para a filosofia no mundo moderno é ressuscitar a pessoa humana, salvá-la da ciência trivializada, e substituir o sarcasmo que somos meros animais com a ironia que o não somos. O que é exactamente aquilo que nos distingue dos outros animais? Se há aspectos que nos unem aos animais (nomeadamente aos animais superiores), há capacidades que nós detemos e os animais inferiores não. Ao contrário dos animais inferiores, temos uma necessidade e uma capacidade para justificar as nossas crenças e acções, e para entrar em diálogo com os outros. Vejamos algumas dessas distinções.
1. Cães, macacos e ursos têm desejos, mas não fazem escolhas. Quando treinamos um animal, fazemo-lo induzindo novos desejos, não levando-o a ver que tem que mudar os seus modos. Nós, por contraste, podemos escolher fazer o que não queremos, e querer fazer o que não escolhemos. Por causa disto, podemos discutir uns com os outros o que é certo ou melhor fazer, ignorando os nossos desejos.
2. As crenças e desejos de animais dizem respeito a objectos presentes: perigos percebidos, necessidades imediatas, etc. Eles não fazem julgamentos sobre o passado e o futuro, nem se lançam em planos de longo prazo. Os esquilos armazenam comida para o Inverno, mas são mais guiados pelo instinto do que por um plano racional. Os animais lembram-se de coisas, e desse modo retêm crenças sobre o passado: mas sobre o passado como ele afecta o presente. Os animais lembram apenas o que é incitado pela experiência presente; não “lêem o passado”, mas “vivem num momento de percepção”.
3. Os animais relacionam-se uns com os outros, mas não como nós fazemos. Rosnam e fintam, até que os seus territórios estejam seguros; mas não reconhecem direito de propriedade, nenhuma soberania, nenhum dever para ceder. Não se criticam uns aos outros, nem se lançam no raciocínio prático de ajudar e aceitar ajuda. Se um leão mata um antílope, os outros antílopes não têm consciência de uma injustiça feita à vítima, e não têm pensamentos de vingança.
4. Os animais não têm imaginação. Podem pensar sobre o real, e ser ansiosos quanto ao que o real implica. Mas não podem especular sobre o possível, e ainda menos sobre o impossível.
5. Os animais não têm sentido de estética: apreciam o mundo, mas não como um objecto de contemplação desinteressada.
6. As paixões dos animais são circunscritas, de toda a espécie de maneiras. Não sentem indignação, apenas raiva; não sentem remorsos, apenas medo do chicote; nem sentem amor erótico nem verdadeiro desejo sexual, apenas uma ligação muda e uma necessidade de acasalamento. As suas limitações emocionais são em grande medida explicadas pelas suas limitações intelectuais. São incapazes dos pensamentos de que os sentimentos superiores dependem.
7. Os animais não têm sentido de humor e não são musicais. As hienas não riem, nem os pássaros realmente cantam; somos nós que ouvimos risos no cacarejo da hiena, e música no canto dos tordos.
8. Os animais não têm discurso, e são por conseguinte despojados de todos esses pensamentos, sentimentos e atitudes que dependem do discurso para a sua expressão. Claro que os animais emitem frequentemente ruídos e fazem gestos que se parecem com a linguagem. Mas esses ruídos e gestos não têm o tipo de organização que torna a linguagem na coisa notável e transformadora da mente que ela é.
SCRUTON, Roger, Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, 2007. Lisboa: Guerra e Paz Editores S.A., pp. 71-74

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